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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  n.32 Belo Horizonte nov. 2009

 

 

Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença

 

The paradoxes of the concept of resistance: from the same to the difference

 

 

Rodrigo Ventura1

Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como principal objetivo problematizar o conceito de resistência no discurso de Freud. Mediante a articulação com a obra filosófica de Michel Foucault, a hipótese deste artigo aponta para a possibilidade de pensar a resistência em si implicada na mudança subjetiva, ou seja, na produção do novo e da diferença no processo de subjetivação.2

Palavras-chave: Resistência, Diferença, Conflito pulsional, Compulsão à repetição.


ABSTRACT

The main objective of the present article is to question the resistance concept in Freud’s speech. By the articulation with Michel Foucault’s philosophical work, the hypothesis of this article points to the possibility of thinking the resistance in itself implicated in the subjective change, in other words, in the production of the new and the difference.

Keywords: Resistance, Difference, Instintual conflict, Compulsion to repeat.


 

 

Não se sabe do que o homem é capaz ‘enquanto ser vivo’, como conjunto de forças que resistem.
Michel Foucault

 

Introdução

É sempre em torno de alguma forma de mudança e transformação subjetiva que gira a experiência psicanalítica. Em outras palavras, é apostando no surgimento do novo e da diferença diante das fixações e inércias da psique humana que a psicanálise se afirma como uma terapêutica da alma.

Longe de um ideal de cura, a prática analítica está implicada na constituição de formas de subjetividade ou modos de existência que sejam capazes de lidar com os conflitos de força insuperáveis e inerentes à vida.

Em oposição à normalização e à submissão da subjetividade na atualidade, a psicanálise está irremediavelmente comprometida com o vir a ser das subjetividades, ou seja, com a produção do novo e da diferença no processo de subjetivação.

Entretanto, em oposição à produção do novo e da diferença, o conceito de resistência foi caracterizado ao longo de toda a obra freudiana como uma força que se manifesta como obstáculo à análise e, principalmente, contra toda e qualquer mudança ou transformação subjetiva decorrente do tratamento analítico.

Mesmo que, paradoxalmente, o trabalho de combate e superação da resistência do paciente seja fundamental para que qualquer mudança se torne possível, na leitura predominante da teoria psicanalítica, a resistência em si sempre apontou para a conservação do mesmo e para a evitação de qualquer tipo de mudança.

Nesse contexto, o principal objetivo deste trabalho é problematizar o conceito de resistência na obra freudiana, na tentativa de revelar outros paradoxos e outras vias de interpretação do mesmo. Mediante a articulação com o pensamento filosófico de Michel Focault, que define a resistência como uma força inventiva, móvel e produtiva na luta contra a submissão das subjetividades, tentaremos ler de maneira diferente essa noção em Freud.

É importante frisar que problematizar a resistência nos âmbitos da psicanálise não representa desconsiderar sua pertinência e importância teórica e clínica, mas sim apostar na capacidade de lançar luz sobre outros aspectos desse termo.

Na contramão da leitura tradicional da psicanálise e com a ajuda das lentes foucaultianas, a nossa hipótese de pesquisa consiste na possibilidade de pensar a resistência em si implicada na mudança subjetiva, ou seja, na produção do novo e da diferença no processo de subjetivação. Pretendemos indicar que, no próprio discurso freudiano, a resistência é mais paradoxal do que parece, visto que mais do que meio de mudança, esta também pode ser força de mudança em si.

 

O encontro de Freud com a resistência

No texto Os Estudos sobre a Histeria(1893-1895), é possível perceber Freud às voltas com uma de suas maiores realizações: a invenção de um instrumento teórico-clínico para análise da psique humana. No entanto, o que vale ser ressaltado nesse texto, em que é possível identificar os primeiros passos dessa invenção, não é simplesmente a história da superação de uma série de obstáculos que se colocaram em seu caminho, mas justamente a história da descoberta desses obstáculos. Segundo Birman (1981, p. 171): “um dos traços geniais de Freud é o de ter tido a coragem de transformar os obstáculos com que se defrontava em questões a serem resolvidas”. Assim como a hipnose, Freud também observou que a técnica da pressão podia falhar na tarefa de suscitar as lembranças esquecidas, apesar de toda a insistência empregada junto ao paciente. Quando isso acontecia, Freud percebia que havia encontrado uma oposição para penetrar em uma camada mais profunda da cadeia de representações.

Portanto, as dificuldades em utilizar a hipnose, bem como a técnica da pressão, revelaram a presença de um importante obstáculo à terapia analítica: a resistência dos pacientes, quando se tentava acessar as suas representações inconscientes.

A primeira vez que o termo resistência aparece na teoria freudiana é no relato do caso clínico da Srta. Elizabeth Von R: “No curso desse difícil trabalho, comecei a atribuir maior importância à resistência oferecida pela paciente na reprodução de suas lembranças” (FREUD, 1893-1895, p. 178).

A resistência aparece na clínica como força contrária a qualquer tentativa de rompimento do isolamento estabelecido pelo recalque a um conjunto de representações. Ou seja, sempre que o trabalho de análise se aproxima de uma representação recalcada, a resistência se manifesta, tentando impedir esse trabalho, como obstáculo à rememoração.

Nesse contexto, Freud reconhece que qualquer mudança no estado de seus pacientes exigiria um percurso muito mais laborioso do tratamento, haja vista o tempo e o esforço empregados no processo de superação do obstáculo imposto pela resistência ao trabalho de associação livre.

Por meio de meu trabalho psíquico, eu tinha de superar uma força psíquica nos pacientes que se opunha a que as representações patogênicas se tornassem conscientes. [...] A tarefa do terapeuta, portanto, está em superar, através de seu trabalho psíquico, essa resistência à associação (FREUD, 1893-1895, p. 283/284).

Diante do fenômeno clínico da resistência, Freud foi abandonando de vez a sugestão deliberada existente nas técnicas da hipnose e da pressão, passando a apostar no fluxo de associações livres do paciente, sem constrangimento, sem crítica e guiada pelo acaso. E ao perceber e conceituar teoricamente o fenômeno clínico da resistência, Freud abandonou as técnicas utilizadas até então em sua terapêutica e começou a trilhar um caminho singular rumo à criação da própria psicanálise.

Também nesse momento da obra freudiana, é possível observar a relação direta do conceito nascente de resistência com outros importantes elementos do edifício teórico da psicanálise, tais como: o recalque, a interpretação dos sonhos e, principalmente, a transferência.

Com relação ao recalque, a resistência pode ser considerada a manifestação exterior desse mecanismo de defesa, cuja função é manter fora da consciência uma representação ameaçadora. Quanto mais o trabalho analítico se aproxima de uma representação recalcada, maior e mais intensa é a resistência contra esse trabalho. Com relação aos sonhos, a resistência atua tanto no processo de formação do sonho, impondo a censura como agente deformador dele, como também dificultando, seja pelas dúvidas ou esquecimentos, o trabalho de interpretação deste sonho. Já em relação à transferência, é precisamente o silêncio que acomete o paciente, interrompendo o processo de associação livre, que faz Freud considerar a transferência como o pior obstáculo à análise, servindo inteiramente aos propósitos da resistência.

Desde essa época, Freud não tinha dúvidas em afirmar que tudo o que interrompe, atrapalha ou impede o trabalho analítico deveria ser considerado uma forma de resistência. Portanto, a resistência surge como obstáculo e força contrária diante de qualquer tentativa de tornar consciente algum conteúdo inconsciente e recalcado do paciente.

 

Na trilha da resistência

Seguindo a trilha da resistência até os últimos trabalhos de Freud, deparamo-nos inicialmente com o caso Dora, no qual Freud, em sua análise posterior do suposto fracasso desse caso clínico, começou a perceber a importância da transferência para o êxito terapêutico.

Fui obrigado a falar da transferência porque somente através desse fator pude esclarecer as particularidades da análise de Dora. O que constitui o seu grande mérito e que a fez parecer adequada para uma primeira publicação introdutória, a saber, sua transparência incomum, está ligado a seu grande defeito, que levou a sua interrupção prematura. Não consegui dominar a tempo a transferência... (FREUD, 1905, p. 113).

Se esse fenômeno é incontornável, visto que se produz em qualquer relação entre médico e paciente, ao mesmo tempo é indispensável para a condução de uma análise, já que sua escuta e interpretação são essenciais para o processo de cura. A transferência, a partir desse caso, estabelece-se, então, como principal resistência e principal aliada do tratamento psicanalítico: “A transferência, destinada a constituir o maior obstáculo à psicanálise, converte-se em sua mais poderosa aliada quando se consegue detectá-la e traduzi-la para o paciente” (FREUD, 1905, p. 112).

Entretanto, apenas nos artigos sobre a técnica, publicados entre 1911 e 1916, é que Freud definitivamente alça a transferência como conceito estratégico e aprofunda os diversos desdobramentos da relação entre a transferência e a resistência. Nesses artigos, é possível identificar a entrada em cena da repetição, que passou a ocupar um lugar importante na relação entre a resistência e a transferência, já que muitos pacientes, resistindo à regra fundamental da psicanálise, repetiam em ato uma recordação recalcada. Diante da compulsão à repetição, o analista tem que travar uma luta contínua, no campo da transferência, para tentar transformar a repetição em recordação.

O que nos interessa, acima de tudo, é, naturalmente, a relação desta compulsão a repetição com a transferência e com a resistência. Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual. [...] Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atuação (acting out) (repetição) substituirá o recordar (FREUD, 1914a, p. 166).

Continuando o nosso percurso, nos deparamos com a perda da hegemonia do ego como pólo exclusivo de resistência nos contornos finais do conceito de resistência na obra freudiana. No texto Inibição, sintoma e angústia (1926), Freud postula a existência de cinco formas de resistência espalhadas por todo aparelho psíquico, a saber: três formas de resistência ligadas ao ego (a resistência do recalque, a resistência de transferência e o ganho secundário da doença), a resistência do id (compulsão à repetição) e a resistência do superego (reação terapêutica negativa).

Por fim, analisando seus últimos trabalhos, especialmente o texto Análise terminável e interminável (1937), é possível observar que o tom pessimista de Freud se acentua quanto à eficácia da técnica psicanalítica e sua possibilidade de promover a cura. Nesse momento, percebemos Freud dando o testemunho de que a tarefa de superação das resistências é muito mais árdua e complexa do que ele próprio imaginava.

A partir dessa análise histórica, conseguimos perceber a centralidade do trabalho de combate e superação das resistências, ao longo de todo o desenvolvimento da obra freudiana. Se, no início, Freud afirma que: “A tarefa do terapeuta, portanto, está em superar, através de seu trabalho psíquico, essa resistência à associação” (FREUD, 1893-1895, p. 283/284), mais de vinte anos depois, essa posição é visivelmente acentuada: “Na verdade, chegamos a compreender, finalmente, que a superação dessas resistências constitui função essencial da análise. [...] A luta contra esta resistência faz parte de toda análise” (FREUD, 1916-1917, p. 298).

Tendo em vista que qualquer mudança no paciente teria que passar obrigatoriamente por esse combate incessante contra as suas resistências, identificamos que o aspecto fundamental desse conceito reside na luta contrária a qualquer mudança ou transformação subjetiva. Em outras palavras, as resistências de um paciente apontam primordialmente para a manutenção do status quo e conservação do mesmo, pois são “forças poderosas que se opõem a qualquer modificação na condição do paciente” (FREUD, 1916-1917, p. 300). Mais uma vez, Freud radicaliza sua posição no final de sua obra, sentenciando que “a coisa decisiva permanece sendo que a resistência impede a ocorrência de qualquer mudança – tudo fica como era” (FREUD, 1937a, p. 270).

Independentemente de qual instância psíquica resiste ou qual momento do desenvolvimento da obra freudiana seja considerado, a leitura predominante da teoria psicanalítica aponta para a resistência como luta pela conservação do mesmo e evitação do novo e da diferença na vida dos pacientes.

Nesse ponto, revela-se a característica paradoxal da noção de resistência. Ao mesmo tempo em que é obstáculo contra qualquer tipo de mudança psíquica, a resistência, desde que interpretada e elaborada, também é meio através do qual uma transformação subjetiva poderia acontecer. A resistência como meio de mudança, mas não como mudança em si.

Superar, lutar e combater são os verbos mais comumente utilizados por Freud para se referir ao trabalho do analista com as resistências do paciente, evidenciando o campo de batalha em que se transforma a prática analítica. É justamente este trabalho de superação das resistências do paciente que traz à tona as relações de poder que existem entre analista e paciente. Desde os primórdios da clínica psicanalítica, quando ainda utilizava as técnicas da hipnose e da pressão, passando pela sugestão que se manifestava também no plano da transferência, até o conceito de construção, observamos Freud tendo que lidar com a questão do poder em sua clínica.

 

Resistência e poder: a possibilidade de mudança

A partir do momento em que são evidenciadas as relações de poder na clínica psicanalítica, que transformou o setting analítico em um campo de batalha, é possível tentar estabelecer uma ponte entre a teoria freudiana e o pensamento de Foucault, mais especificamente o momento de sua obra denominado genealogia do poder.

Aqui, é importante esclarecer que o interesse nessa ponte reside na ressonância do discurso de Foucault sobre a teoria psicanalítica ou, em outras palavras, em como utilizar a obra de Foucault como chave para pensar de maneira diferente o conceito de resistência nos âmbitos teóricos da própria psicanálise. Não se trata de tentar encontrar Freud defendendo literalmente a hipótese desta pesquisa, mas de ler em Freud essa mesma hipótese, com a ajuda das lentes poderosas da filosofia foucaultiana.

De acordo com Foucault, o poder não possui uma essência ou uma natureza universal; o que existe são formas e relações localizadas e espalhadas de poder em um nível molecular da sociedade. Todos estariam imersos nas relações de poder, não sendo o poder algo que se possui, mas algo que se exerce em relações de várias naturezas, inclusive nas relações que se estabelecem na experiência psicanalítica.

Na visão foucaultiana, não haveria exterioridade entre as relações de poder e de resistência. Ambos frequentariam o mesmo campo de batalha. Não se trata de um contrapoder organizado em uma “grande recusa”, mas de resistências plurais e locais. Onde existisse poder, existiriam resistência e possibilidade de luta.

Esta resistência de que falo não é uma substância. Ela não é anterior ao poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente contemporânea [...] Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele (FOUCAULT, 1979, p. 241).

No entanto, a resistência é luta aqui e agora e não mera promessa de um futuro melhor. Segundo Foucault, historicamente, as várias formas de resistência articulam-se em três principais tipos de luta: i) contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa); ii) contra as formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; e iii) contra as formas de sujeição, ou seja, contra a submissão da subjetividade, sendo esta última a mais importante para ele na atualidade, tendo em vista que:

São lutas que questionam o estatuto do indivíduo: por um lado, afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais. Por outro lado, atacam tudo aquilo que [...] força o indivíduo a se voltar para si mesmo e o liga à sua própria identidade de um modo coercitivo (FOUCAULT, 1995, p. 235).

De acordo com Foucault, essas lutas não são nem a favor nem contra o indivíduo, mas sim batalhas contra os dispositivos de poder que confinam e fixam o indivíduo à sua própria identidade, subjugando-o e tornando-o “sujeito a”. Dessa forma, a resistência caracteriza-se essencialmente pela luta que é capaz de produzir novas formas de subjetividade através da recusa das individualidades que foram impostas historicamente. “A ideia não é descobrir quem somos, mas recusar quem somos e transformarmo-nos” (FOUCAULT, 1995, p. 235). Resistir é lutar contra duas formas principais de sujeição:

Uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências de poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela subjetividade se apresenta então como direito à diferença e direito à variação, à metamorfose (DELEUZE, 1998, p. 113).

Dessa maneira, é possível observar que o conceito de resistência na obra de Foucault mostra-se diretamente ligado ao processo de subjetivação, ou seja, à produção de formas de subjetividade ou modos de existência (modos de agir, sentir e dizer o mundo). Para esse filósofo, não se sujeitar é resistir e se abrir para outros e novos modos de ser sujeito e de estar no mundo.

 

Outros paradoxos da resistência

A partir desse momento, tentaremos estabelecer as condições de possibilidade para defender a nossa hipótese de pesquisa que, influenciada diretamente por Foucault, pretende apontar outros paradoxos da resistência na obra freudiana.

Porém, logo de início, aparece a seguinte e espinhosa questão: Como é possível estabelecer uma articulação entre o conceito de resistência na obra freudiana, que aponta primordialmente para a conservação do mesmo, com o conceito de resistência na obra foucaultiana, que se apresenta como luta pela transformação da subjetividade?

Ao longo deste trabalho, ficou claro que as relações de poder se exercem nas dimensões mais capilares, cotidianas e ordinárias das relações humanas, estando presente inclusive e principalmente na experiência analítica. Considerando que, na visão foucaultiana, onde há poder, há resistência e é justamente isso que se observa na obra freudiana, ou seja, a resistência se manifestando perante o poder do analista, é possível perceber um solo comum entre os conceitos de resistência das obras de Freud e Foucault. Esse solo comum, longe de tentar igualar ou submeter um conceito ao outro, estabelece as bases para arriscarmos defender a nossa hipótese de pesquisa.

Resta agora, sem desconsiderar a forma como a noção de resistência foi construída ao longo da obra freudiana, tentar encontrar, no próprio Freud, outras vias de leituras dessa noção. E para tal, decidimos ancorar a nossa hipótese de pesquisa no segundo dualismo pulsional da teoria psicanalítica: pulsão de vida (Eros) x pulsão de morte, evidenciando a relação entre esse dualismo e a resistência como compulsão à repetição.

Estando sempre mescladas em maior ou menor intensidade, Eros une e liga, enquanto a pulsão de morte desune e fragmenta. O processo de simbolização, que implicaria dar um sentido à força pulsional, estabelecendo circuitos para a pulsão mediante a sua inscrição no mundo em objetos de satisfação, está a serviço de Eros. Já a pulsão de morte trabalha para a fragmentação e a separação das sínteses instituídas por Eros.

Os dois princípios fundamentais de Empédocles – amor e discórdia – são, tanto em nome quanto em função, os mesmos que nossos dois instintos primevos – Eros e destrutividade, dos quais o primeiro se esforça para combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se esforça por dissolver e destruir as estruturas a que elas deram origem (FREUD, 1937a, p. 263).

A pulsão de morte não pode nunca ser erradicada, já que a pulsão por excelência, antes de ser capturada pelo psiquismo em suas cadeias de representações, é pulsão de morte. A única forma de se contrapor à pulsão de morte é a partir de Eros como princípio de afirmação da vida. Não é à toa que, em sua carta ao cientista Albert Einstein, discutindo os motivos pelos quais o homem faz a guerra, Freud afirma que:

Não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra. Nossa teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. (...) A psicanálise não tem motivo para se envergonhar se nesse ponto fala de amor (FREUD, 1933a, p. 205, grifo nosso).

Dessa forma, a vida teria sempre, como condição de possibilidade, a marca de Eros a se afirmar contra a morte iminente, anunciada pela força constante, insistente e repetitiva da pulsão de morte (BIRMAN, 2003). Porém, a pulsão de morte seria a condição de possibilidade para que Eros pudesse realizar seu trabalho, ou seja, para que Eros pudesse unir, seria necessária a fragmentação causada pela pulsão de morte. Sem o poder disruptivo e libertário da pulsão de morte, capaz de fragmentar as ordens e organizações instituídas por Eros, não é possível que outras e novas ligações possam ser constituídas.

Assim sendo, não se trata de eleger uma das pulsões como fonte da diferença, mas de valorizar a mescla e o conflito pulsional como responsáveis pelo movimento de desunião e união, de fragmentação e ligação. É exatamente esse movimento característico da dinâmica agonística das pulsões, ou seja, o dualismo pulsional, que é capaz de produzir o novo e a diferença no processo de subjetivação.

O conceito resistência, como compulsão à repetição, está diretamente relacionado ao dualismo pulsional, tanto como expressão da pulsão de morte, já que o que não está inscrito na cadeia de representações se repete indefinidamente e compulsivamente, quanto como expressão de Eros, em sua tentativa de ligação da energia livre e sem representação.

Vale lembrar que Freud não deduziu a pulsão de morte da agressividade, mas sim da compulsão à repetição. Segundo Freud, foi a “[...] compulsão à repetição que primeiramente nos colocou na trilha da pulsão de morte” (FREUD, 1920, p. 66).

A compulsão à repetição, como dupla face de Eros e Tânatos, ao mesmo tempo em que é uma tentativa de ligação, de encontrar destinos para o excesso de excitação do trauma e da pulsão de morte, também encarna a face demoníaca e os próprios limites dessa tarefa. Levar a pessoa a experimentar infinitamente de novo o rol de desgraças do trauma não garante a interrupção desse ciclo repetitivo, já que a inscrição do traumático no campo das representações não é garantida.

Tendo em vista que é na tentativa de ligação psíquica que um símbolo antes inexistente pode emergir, podemos afirmar que a repetição diferencial, ou seja, o surgimento do novo, em meio à repetição sempre da mesma coisa, acontece a partir do trabalho de Eros. Porém, esse trabalho só é possível em decorrência da pulsão de morte que, como pura força ainda não ligada a nenhuma representação, incita à repetição compulsivamente.

 

Conclusão

Inspirados diretamente por Foucault, é possível concluir que a resistência em si, como compulsão à repetição, também está implicada diretamente na produção do novo e da diferença no processo de subjetivação.

Alargando a interpretação dominante da noção de resistência na obra freudiana, esse paradoxo apontou que, além de ser meio através do qual a mudança é capaz de se processar, a resistência em si pode também ser considerada uma força de mudança subjetiva.

Como compulsão à repetição, a resistência não obedece apenas ao aspecto que foi identificado como central na obra freudiana - que a resistência é a luta para conservação do mesmo. Ao contrário, a compulsão à repetição problematiza o conceito de resistência em Freud, deslocando a resistência do mesmo para a diferença.

De acordo com o Novíssimo Dicionário Latino Português (1993), etimologicamente o verbo resistir vem do latim resistere, cuja raiz - sistere - também está presente nas palavras: desistência, insistência, persistência e existência.

Logo, se resistir pode, de fato, ser desistir, remetendo para o abandono do trabalho analítico, resistir também pode apontar para insistir, persistir e existir. Ao reinventar a própria vida nos arranjos pulsionais inéditos que a compulsão à repetição é capaz de produzir, resistir pode ser re-existir, ou melhor, existir de formas novas e diferentes.

Trabalhar na construção de destinos para a pulsão é trabalhar na invenção de novas possibilidades de expressão das excitações no universo psíquico e no campo da alteridade, ou seja, na criação de novas formas de subjetividade que sejam capazes de enfrentar os dispositivos de captura e fixação de identidades individuais. Nesse contexto, Birman (2006, p. 363) afirma que:

A invenção e a criação seriam então as resultantes maiores desse processo sempre recomeçado, na medida em que pressupõem, como sua condição concreta de possibilidade, a existência de uma subjetividade que possa ser permanentemente inventada e recriada contra um fundo homogeneizado de fixações estabelecidas

Longe de qualquer ideal de cura, uma prática psicanalítica comprometida com o vir a ser da subjetividade, com a produção de um estilo singular para a existência e com a invenção permanente da vida, deve acolher, no campo da transferência, toda e qualquer forma de resistência, para que os lampejos do novo e da diferença possam emergir no âmago do mesmo.

 

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Recebido: 02/07/2009
Aprovado: 02/09/2009

 

 

1 Psicanalista e membro efetivo do Circulo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro; engenheiro graduado pela PUC-Rio; pós-graduado em Filosofia pela PUC-Rio. Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
2 Este artigo é resultado do trabalho de pesquisa realizado no Mestrado de Teoria Psicanalítica da UFRJ orientado por Joel Birman.

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