SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número32Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferençaAlgumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  n.32 Belo Horizonte nov. 2009

 

 

Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror

 

Incest: path and deflect front of the horror

 

 

Stetina Trani de Meneses e Dacorso1

Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora
Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos
Estudos Psicanalíticos de Juiz de Fora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto propõe uma reflexão sobre as vicissitudes da organização psíquica de mulheres adultas que sofreram abusos sexuais na infância. Não há preocupação com a definição de estrutura. Para tal, utiliza-se de teóricos que pensaram sobre o assunto e de vinhetas clínicas para construir questões e hipóteses sobre as consequências na subjetividade dessas mulheres.

Palavras-chave: Incesto, Consequências psíquicas, Subjetividade dos abusados, Reação ao trauma, Violência erotizada, Grupo incestuoso.


ABSTRACT

This text propose a reflection on the vicissitudes of the psychic organization of adult women who support sexual abuse in the infancy. For such, use are the theorists Who reflect of this theme and clinical vignettes and questions assumptions about the subjectivity of this women.

Keywords: Incest, Psychic consequences, Subjetivity of abused, Reaction to trauma, Erotized violence, Incestuous group.


 

 

(...) porque um século de cartas e de experiência lhe ensinara que a história da família era uma engrenagem de repetições irreparáveis, uma roda giratória que continuaria dando voltas até a eternidade, se não fosse pelo desgaste progressivo e irremediável do eixo.
Gabriel García Márquez

 

A escolha deste tema se deve a vivências incestuosas que nos últimos anos têm chegado até à clinica. Os que vêm com essa dor são adultos que passaram pela seguinte situação: olhares, relações sexuais, bolinações... Nossa questão, sem preocupação com um diagnóstico de organização psíquica, é: como esses adultos administraram esse trauma? Que consequências provocam em suas relações amorosas? Para pensá-las, privilegiamos a escuta clínica singular: cada uma das situações e pessoas com sua especificidade. O tema é complexo, ficamos tentados a todo instante a analisar a dinâmica familiar, a organização psíquica do pai ou da mãe. Pensamos que, se assim o fizermos, é como se estivéssemos submetendo novamente ao silêncio aquele que foi violentado, em decorrência de sentimentos e dificuldades provocadas em nós pela escuta daqueles que sofreram situações de abuso. Em momentos de discussão do tema, vários colegas contribuíram ajudando-nos a pensar através de sua clínica e nos proporcionando novas articulações. O assunto é amplo e penoso.

Algumas questões surgidas na clínica e nas supervisões acadêmicas despertaram a nossa atenção. Foram pontos que requerem uma escuta, um pensar e uma troca maior. São: o traumático do abuso e a administração psíquica desse excesso excitatório e erógeno; a angústia de aniquilamento ou de morte; a manutenção da ternura e identificação com o abusador; relação de cuidado com a mãe que é, na maioria das vezes, uma figura ambígua e percebida como frágil.

A situação é angustiante também por aquilo que nos leva a ocupar o lugar de analista, isto é, o oferecimento de uma escuta da qual não se pode escapar. Referindo-se ao trabalho do analista e à transferência, Freud nos diz que chamamos o demônio e depois tememos e queremos que ele recue (1912). Ao ouvir sobre o incesto, nos deparamos com o demônio, mas, ao vê-lo, ficamos de frente ao “horror”.

Comecemos pensando o lugar do pai na família, na sua relação com a filiação no grupo. Julien (1997) esclarece que, na Roma Antiga, o pai exercia o poder absoluto em sua família – chefe da casa, se apodera da mulher e a faz conformar-se à condição legal de mãe; além disso, possui direito irrestrito sobre os filhos. Nesse período, a paternidade é autorreferencial. O patriarca autoriza-se como pai de uma criança, reconhecendo-o como filho. O que define a paternidade não é a consanguinidade. A paternidade é adotiva e voluntária. Com o advento da tradição judaico-cristã, o pai é aquele que o casamento designa. A criança tem por pai o marido da mãe. O direito de paternidade sobre a criança repousa não mais sobre o poder político ou religioso, mas sobre um laço prévio – a cerimônia de produção dos cônjuges.

Sigmund Freud, em Totem e Tabu (1913), relata o constructo mítico da horda primeva, quando se estabelece o tabu do incesto e a exogamia. Princípio das religiões, regras e deuses protetores – totens. Quando o mundo se mostra assustador, faz-se necessário que o ser humano se sinta de alguma forma protegido e com a sensação de que tem para o que, para quem e para onde recorrer na busca de proteção e garantias.

Nesse texto, Freud conclui que as duas proibições do totemismo, matar o pai e ter uma mulher do clã como objeto sexual, coincidiam com os dois crimes do Édipo: matou o pai e casou com a mãe. O pai morto é idealizado, garantindo o pacto entre irmãos; há a renúncia ao gozo sem limites, e todos podem exercer a sexualidade respeitando a regra comum. Esse constructo funda a civilização. O pai edipiano substitui o pai gozador, curvando-se ele também à lei que enuncia. A horda primeva é a origem do mito edipiano. A proibição instaura o desejo incestuoso. A tese freudiana é que o desejo de incesto é inerente ao homem e só um interdito, formulado como uma lei, pode afastá-lo dele (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Existe um funcionamento que se apresenta na maioria dos casos de abuso. As famílias se isolam do social. O “de fora” é o desconhecido que provoca angústia, porque, supomos, denuncia os ritos, leis, funções e papéis sociais. Razon (2007), baseado em pesquisas, também se deparou com essa situação. A autora analisou que o grupo não se submete a nenhuma regra, só àquelas oriundas de um pai totêmico, tirânico, aterrorizador e violento. Todo o grupo sucumbe à violência traumatizante, o grupo é fechado em si mesmo. Nenhum interdito articula as relações entre cada um dos protagonistas. Nesse universo, cada um desliza na pele do outro, nenhum limite psíquico e corporal existe.

Meu pai não gostava de ninguém na nossa casa. E nem a gente podia ir à casa das pessoas. Hoje, nós, irmãos, somos iguais. Gostamos de estar juntos e de amizade também. Mas quando começa a querer ver toda hora, ficar ligando, a gente logo se afasta (P., 39 anos, molestada pelo pai dos 9 aos 12 anos).

Em Totem e Tabu, Freud também aborda a questão da identificação, dos irmãos ao pai da horda, comunhão totêmica (com o pai e entre si pelo traço comum de ideal de ego), articulando aquela ao objeto perdido. Com a identificação, existe uma outra perspectiva para analisar a rivalidade entre irmãos (HERSOG; MOGROBI, 2006) no complexo de Édipo. O ideal da criança será processado a partir de exigências feitas e consequentes demonstrações de afeto dos pais quando a criança cumpre as exigências. Dessa forma, o ideal constitui um modelo a ser seguido e às expensas dos investimentos eróticos dos pais. A atividade erótica cede sua energia para formar o ideal que, por sua vez, censura os impulsos sexuais, mantendo-os recalcados.

O investimento objetal nos pais frustra-se diante da proibição cultural do incesto. Cedendo espaço às identificações, a criança molda-se, desta forma, à imagem dos objetos perdidos. Em Totem e Tabu, o pai é responsável pela coesão do grupo, mas em Psicologia das massas e análise do eu (1921), o representante paterno pode ser um projeto ou um líder, que vão constituir o ideal do grupo.

Allouch (2005) diz que o pai sedutor é escandaloso, porque aparece pedindo outra coisa nos circuitos da demanda. Ora, ele não o pode enquanto pai. Enquanto pai, sua demanda está bloqueada, congelada, fixada. O escândalo não se deve tanto a que o pai sedutor seduza, nem tanto ao mal que faz à criança ao erotizá-la: o escândalo se dá em que, ao seduzir, ele se destitui enquanto pai. A questão é que não há pai sedutor. Um pai sedutor se destitui enquanto pai, fica fora de seu si paterno. Pai sedutor=não há mais pai. Isso faz sentido na clínica? Que é o que nos interessa como clínicos? Pensamos que algumas questões de pacientes podem se encaixar nesta análise: “(...) ele era mulherengo, não precisava fazer isto comigo, por que o fez?(...) Eu tive pai até os nove anos, depois é outra pessoa..” Se analisarmos essas questões pelo olhar de Allouch, o pai se afasta de seu lugar de protetor e instala o pai da horda, o que usa de todas as mulheres,instalando o desamparo num período de vida no qual é impossível buscar a sensação ( e sabemos que é assim) de amparo por si mesmo, tendo de lidar com dois registros: pai e homem sedutor.

Ferenczi (1988) aborda a situação como linguagem da ternura e da paixão. Analisa que seduções incestuosas se produzem quando um adulto e uma criança se amam; a criança tem fantasmas lúdicos. O jogo toma uma forma erótica, porém permanece na ternura. Os adultos com predisposição psicopatológica vão confundir as brincadeiras das crianças com os desejos de uma pessoa com maturidade sexual. Deixam-se levar pelos atos sexuais sem pensar nas consequências. Primeiro, as crianças odeiam, depois se sentem física e moralmente sem defesa. Sua personalidade fraca não consegue reagir contra a autoridade impositiva dos adultos. O medo excessivo obriga as crianças a obedecer automaticamente, esquecendo-se de si e identificando-se com o agressor.

Uma situação emocional que chama a atenção e está presente na maioria dos casos de abuso é a ternura mantida em relação ao abusador. São duas ideias incompatíveis convivendo juntas: a raiva pela violência vivida e a manutenção da ternura. Pensei em algo como fragmentação, cisão. Ferenczi analisa esse estado emocional. Para o autor, ocorre uma introjeção do agressor, que desaparece como realidade externa, e torna-se intrapsíquico. O que é intrapsíquico pode, seguindo o princípio do prazer, ser modelado e transformado de maneira alucinatória positiva ou negativa. Assim, a ternura é mantida:

Meu pai era muito homem! Com orgulho, continua: Todos nós parecemos com ele: somos bravos, falamos claro, não mentimos e respondemos na hora (M., 42 anos, molestada pelo pai dos 10 aos 14 anos, família de 5 filhos: 4 mulheres e um rapaz).

Nos textos de Freud citados anteriormente, é analisada a submissão decorrente da própria fragilidade do ser humano, que vai amar e ceder àquele que alimenta e protege, amando-o pelo que recebe, procurando cumprir as exigências percebidas oriundas deste. Desamparo que não termina, mas que vai tomando outras feições e defesas ao longo da vida de cada um, utilizando-se dos vários objetos externos que, investidos das representações internas, vão propiciar uma sensação de segurança e proteção. Mas se faz necessário que se tenha podido confiar e acreditar, em algum momento, que alguém podia cumprir esse papel. É isso que nos faz acreditar seja lá no que for, senão o caminho fica muito árduo e solitário, quiçá impossível em algumas situações, na busca e crença de possíveis amparos.

Falhando os artifícios usados para possibilitar segurança, o desamparo vai provavelmente surgir, provocando o sentimento de perigo e, consequentemente, angústia. Em Inibição, sintoma e angústia (1926), a angústia é uma resposta à sensação de perigo, assim possui uma representação psíquica. O perigo analisado em nível da realidade num primeiro momento é visto posteriormente como a ameaça sentida por cada sujeito particularmente em sua vida psíquica.

Enquanto Freud vai desenvolvendo seu pensamento, a angústia surge vinculada ao temor de castração. Aí a pulsão funciona como perigo para o eu. O aparato psíquico possui uma barreira protetora para o excesso de excitação. Quando a carga excitatória é excessiva, rompendo esse aparato, o resultado é catastrófico para um psiquismo em organização. Aqui podemos levantar a teoria da sedução. Num segundo momento, Freud, em carta a Fliess, diz não acreditar mais em suas neuróticas e se refere à realidade psíquica em prol da realidade concreta, mas também menciona que todas as fantasias e representações psíquicas se apoiam em um dado de realidade. Assim, podemos pensar que o corpo foi violentado, não importando o tipo de violação que ocorreu, no sentido de trauma que nos referimos anteriormente, recebendo uma carga excessiva de erotização. Em psicanálise, vale a construção de cada um, mas nessas situações temos de lidar com uma situação factual. O aparelho perceptual é que permite a apreensão do mundo. Se ele foi invadido por um excesso, como o elabora, já que a partir daí a pulsão exigirá um trabalho à mente, forçando a construção de uma representação? Essa abordagem nos auxilia a pensar as representações construídas sobre as relações amorosas, a sexualidade, filiação. Em várias situações de abuso, a consequência desse excesso de erotização não foi o repúdio às relações amorosas, nem à sexualidade, como encontramos em vários teóricos que trabalharam o tema, mas uma sexualidade, talvez um pouco mais exacerbada, sem que possamos nos referir a traços de promiscuidade. O que chama a atenção, nesses casos, é o prazer em dizer que os filhos (homens e mulheres) puxaram ao pai no gostar de sexo. É algo a se analisar com mais profundidade e calma.

Se desviarmos o olhar por um momento para a mãe nessa situação, encontramos o trabalho de Mello Neto e Martinez (2002). Eles a analisam como o primeiro aparelho de para-excitação, como objeto de investimento libidinal. Se ela falha, a criança é jogada ao desamparo. Quando a mãe falha como escudo para o excesso de excitação, protegendo a criança desse excesso, deparamo-nos com questões angustiantes das mulheres que vêm à clinica com vivências de incesto e que demoram um tempo para formulá-las: “minha mãe desconfiava, percebia, sabia? Ou não? Como minha mãe não percebeu algo de errado comigo? Como ela não percebeu o que acontecia? Acho que ela não ia acreditar em mim...” Como entender que a mãe saísse e as deixasse a sós com um pai que tudo podia? Quando não havia limites a esse pai da horda! Essas frases são presentes em todos os casos.

Pensemos a angústia nesta situação articulada ao desamparo da criança diante de uma situação em que se encontra submetida ao objeto violentador. A angústia, como um sinal, pode ser analisada partindo das colocações clínicas como um estado emocional de alerta e ao mesmo tempo uma apreensão em relação ao contexto em volta: “ minha mãe saía e eu ficava sozinha com ele, não sei porque ela me deixava...aí eu corria para o quintal, para a rua, tinha que ficar me escondendo e ele chamando...e não podia contar para ninguém” (p. 38 anos).

Para pensar as possíveis consequências desse ter que dar conta de si sozinha, recorremos novamente a Ferenczi (1988) em seu texto Confusão de línguas entre adultos e crianças, e encontramos sua análise do estádio da ternura. O autor qualifica esse estádio como o período de amor objetal passivo, que é quando a identificação antecede ao amor objetal. Se nessa fase de ternura se impõe às crianças mais amor ou um amor diferente do que desejam, isso pode proporcionar as mesmas consequências patógenas que a privação do amor. São situações que podemos considerar como traumáticas, já que implicam um excesso excitatório num psiquismo infantil que não possui meios de elaboração. Ferenczi expõe consequências que também percebemos em nossa clínica. A aflição extrema e a angústia de morte parecem ter o poder de despertar e ativar subitamente disposições latentes, ainda não investidas e que esperavam a sua maturação em quietude. Após a agressão sexual, a criança pode desenvolver emoções de um adulto já maduro. Nessa situação, podemos falar de progressão traumática.

As pessoas relatam que sentem que algo lhes aconteceu, ficavam mais espertas, perceptivas, entendiam o mundo à sua volta e achavam as pessoas de sua idade muito “tolas e burrinhas”.

Ferenczi (1988) articula o abuso sexual com a angústia de morte e o sentimento de aniquilamento. Aqui me lembro de um texto de Costa (1984), em que ele analisa que é violenta toda experiência em que não se consegue prazer; levanta então, a questão do abuso sexual, em que uma situação da ordem da erogeneidade e eroticidade vai provocar uma angústia de morte, porque o sexual é usado para destruir, aniquilar, destituir o outro de sua vontade para submetê-lo.O ”estar paralisado” é uma afirmação constante nas pessoas que passaram por abuso sexual.

O fluxo pulsional em si não é angustiante, mas o é se o aparelho psíquico não consegue direcioná-lo, a angústia não é da pulsão, mas do quantum excitatório. No abuso sexual, a vítima tem desenvestido o objeto abusador e realiza movimentos defensivos no seu aparato psíquico que vai se unir ao estado de angústia realístico e ainda administra o quantum excitatório invasivo, oriundo da sexualidade destrutiva adulta.

O que corre perigo na violência sexual não é a identidade sexual do sujeito, mas é a desagregação do núcleo da identidade egoica, daí a angústia de morte, o aniquilamento. Lembramos aqui o conceito de a posteriori de Freud, quando o significado de uma vivência vem no “só depois”. Se retomarmos a teoria de sedução de Freud, num segundo momento, vamos trabalhar com a realidade psíquica e não com a realidade concreta. É uma leitura que nos auxilia a pensar a sexualidade aparentemente normal, que encontramos na clínica. Enquanto não é a identidade sexual atingida, mas sim uma desagregação egoica, encontramos em vários casos uma contenção na vida social: trabalho e casa. Existe sempre uma angústia circulando qualquer situação fora do contexto casa-trabalho, algo da ordem da tragicidade...

A angústia de morte provoca o sentimento de aniquilamento. Não existe uma representação que possa acalmar, não há uma descarga possível para a tensão que se estabelece perante a situação de alerta. Poderíamos nos referir a uma angústia realística. Afinal, a situação se repete e todos relatam um estado de expectativa: vai acontecer novamente, mas pode ser em qualquer noite, quando a família assiste à televisão, no momento do banho, quando vão ser colocados na cama para dormir....

Essa angústia pode ser considerada fóbica ou é de morte? Esse estado de alerta ocasiona uma angústia que ninguém consegue explicar. Mas a situação é da ordem do aniquilamento: são ameaçados para não falar, têm de suportar em silêncio os toques abusivos, sem ter para onde ou a quem recorrer. Nos relatos há um cuidado para proteger a mãe, de forma que ela não tome conhecimento da situação porque, senão, “sofreria demais”. Entre a ideia de que quem cuidava sabia e nada fez e o pensamento de alguém que deveria saber cuidar, mas é tão frágil que deve ser cuidado por aquele que realmente é frágil, as pessoas escolhem a última hipótese e fazem de tudo para que a primeira ideia fique distante de si. É interessante ressaltar que a clínica nos mostra que, quando a primeira ideia- da mãe que sabia, mas preferia não saber – começa a se apresentar à consciência, o que primeiro emerge é a raiva, uma raiva surda, constante e não muito intensa. E as filhas não compreendem por que afinal a mãe é frágil, que é a segunda ideia utilizada para explicar a não intervenção da mãe. O mais interessante ou triste, enfim, não sabemos se cabe um adjetivo, é que geralmente as filhas abusadas pegam para si o encargo de cuidar das mães na velhice. Essa raiva as faz sofrer muito. São situações muito angustiantes, porque de qualquer jeito o sofrimento é insuportável. Se a mãe é frágil, ficam sós com sua dor sem os cuidados; na outra situação, se a mãe preferia não saber, continuam com a dor do desamparo aumentado pela confirmação de que alguém não queria cuidar.

Em algumas situações, a angústia de morte que provoca um aniquilamento da identidade é resolvida construindo-se uma possibilidade de salvar pessoas que se encontram à sua volta. É uma construção que justifica a escolha de ser o objeto de abuso. Para que outros irmãos não o sofram, para que a violência não recaia sobre a mãe, para que ele fique calmo e não maltrate a família inteira, porque ela era a mais “forte”, portanto capaz de suportar as investidas. Prevalece a ideia da mãe frágil. E podem suportar o que sofreram construindo para si a imagem de fortes, decididas, protetoras.

Essas representações parecem provocar uma calma, um estado de sentimento indecifrável, que consideramos pertinente chamar de angústia. Angústia, aqui, como o sentimento indecifrável, sem uma nomeação, sem algo que o possa definir. Sem a representação que possa acalmar o sentimento da razão pela qual se está passando por aquela situação. No fundo, o que fica permeando a mente é como foi que foram escolhidas e por quê? Em algumas situações, a palavra que surgiu foi “eleita”.

Na primeira apresentação dessas ideias, houve discussões sobre se tínhamos casos de câncer no aparelho reprodutor em mulheres que sofreram abusos. Esse questionamento abre outra via também extensa e complexa! O corpo atuando, como dizia Freud, e não descarregando. O corpo erógeno citado por Costa (1984), quando o sexual é usado de forma destrutiva com desejos de morte num outro violentado. Não temos casos de câncer, mas de fortes dores no baixo ventre, que levaram a exames de todos os tipos ao longo de muitos anos, já que as dores começaram por volta dos quinze anos. Em momentos distintos da análise, foi questionado se as dores, quem sabe, não poderiam ser decorrentes de sofrimento psíquico, e nos dois casos, após uns dois a quatro meses, as dores foram diminuindo até parar. Não consideramos que essas dores estejam sanadas, mas que houve uma reorganização econômica e dinâmica nessa representação corporal, pois é algo que requer mais tempo. Mas uma primeira hipótese possível é que esse corpo erógeno atuava a violência e era punido por sua erogeneidade. Atuando prazer e desprazer! Contudo a delicadeza da situação com suas consequências requer mais aprofundamentos e cuidados para essas afirmações.

Como dissemos no inicio, é um tema em elaboração. Esperemos com calma o que a clinica nos apontará a posteriori. Afinal, é um trabalho de ir e vir, teoria e prática, escuta e construção.

 

Referências

ALLOUCH, J. A sombra do teu cão. Discurso psicanalítico, discurso lésbico. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.        [ Links ]

COSTA, J. F. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1984.        [ Links ]

FERENCZI, S. Escritos psicanalíticos 1909-1933. Rio de Janeiro: Taurus, 1988.        [ Links ]

FREUD, S. Totem e Tabu 1913. In_____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1979. v. XIII, p.17-193.        [ Links ]

FREUD, S. (1926). Inibição, sintoma e angústia. In:_____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1979. v. XX, p.101-210.        [ Links ]

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do ego. (1921) In:_____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1979. v. XVIII, p.91-183.        [ Links ]

HERZOG, R; MOGROBI, D. Sob o signo da incerteza: autoridade simbólica e desamparo. In: Estudos de Psicanálise. Natal. vol. 11, nº 2, 2006.        [ Links ]

JULIEN, P. O manto de Noé: ensaios sobre a paternidade. Rio de Janeiro: Reventer, 1997.        [ Links ]

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1967.        [ Links ]

MELLO NETO, G; MARTINEZ, V. Angústia e Sociedade na obra de S. Freud. In: Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, 2002.        [ Links ]

RAZON, L. Enigma do Incesto. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007.        [ Links ]

ROUDINESCO, E; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
R. Padre Nóbrega, 35, 201 – Paineiras
36016–140 – Juiz de Fora/MG
Fone: + 55 32 3212-5314
E-mail:stetinadacorso@ig.com.br

Recebido: 02/07/2009
Aprovado: 31/08/2009

 

 

1 Psicanalista-CBP-RJ. Professora titular do curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora –CES.JF. Mestre em Psicologia AWU-USA. Supervisora e coordenadora de seminários na formação em Psicanálise Sobrap-JF. Mestranda em Letras-Ces.JF. Membro efetivo de Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBP –RJ) e da Sociedade de Estudos Psicanalíticos de Juiz de fora – SEP-JF.

Creative Commons License