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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  n.32 Belo Horizonte nov. 2009

 

 

Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’

 

Some evidences of the ethical foundation of psychoanalysis at ‘The Psychotherapy of Histeria’

 

 

Vinicius Anciães Darriba1; Anne Marcelle Coelho Bencke2; Erick Bonatelli Cardim3; Paula Beatriz Mitter de Carvalho4; Dirceli Adornes Palma de Lima5; Germano Manoel Pestana6; Diviane Helena de Oliveira7

Universidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No último capítulo dos Estudos sobre a histeria – escrito por Freud e intitulado A psicoterapia da histeria – o autor, ao problematizar os parâmetros da clínica médica, esboçou alternativas a estes que, conforme se busca verificar, instauraram a prática analítica. Sua nova posição – de descontinuidade e de inauguração – instaurou uma posição ética à qual o artigo remete. Desde esta posição, a clínica da histeria aponta para dificuldades e limitações tomadas não como um empecilho à aplicação do método a ensejar seu aprimoramento, mas como o que incita uma decisão ética da ordem do desejo em Freud.

Palavras-chave: Psicanálise, Ética, Clínica, Psicoterapia da histeria, Freud.


ABSTRACT

In the last chapter of Freud’s ‘Studies on Hysteria’, named ‘The Psychotherapy of Hysteria’ – the author, as he problematizes the medical clinical parameters, outlined alternatives, which established analytical practice. His new standing – one of rupture and newness – created a new ethical criterion that is studied at this paper. Since this standing, the clinic of hysteria aims to difficulties and limitations, not as an obstruction to the psychoanalytical method’s application, but as an ethical choice of Freudian desire’s command.

Keywords: Psychoanalysis, Ethics, Clinics, Psychotherapy of hysteria, Freud.


 

 

Introdução

O último capítulo dos Estudos sobre a histeria (BREUER; FREUD, 1987 [1895a]), escrito por Freud e intitulado A psicoterapia da histeria, destaca-se, talvez mesmo em comparação com outros textos produzidos pelo autor, por abordar em conjunto questões estritamente associadas ao trabalho da análise. A partir do testemunho do que se apresentava a ele, ao voltar-se para a clínica problematizando os referenciais usuais da prática médica, Freud penetrou em questões como a direção do tratamento, seus limites, o lugar do médico, o papel do paciente. Ao problematizar todos esses parâmetros para a clínica, já esboçou respostas que, conforme buscaremos verificar neste artigo, antecipam o que viria a constituir enunciados decisivos da psicanálise com relação a tais parâmetros. Podemos dizer, por exemplo, que as observações relativas a médico e paciente já configuram posições mais próximas do que se consagrou como as do analista e do analisante.

O que é notável é o fato de que, a rigor, nesse momento, ainda não havia psicanálise, havia Freud. No texto em questão, cujo título introduz o termo “psicoterapia”, o trabalho clínico ainda conserva a designação de “método catártico”, embora seja visível o gradativo distanciamento em relação ao que se propunha originalmente com ele. Igualmente, Freud ainda não consolidara um conjunto de hipóteses e conceitos que pudessem constituir uma teoria psicanalítica. No mesmo ano de 1895, em que redigiu A psicoterapia da histeria, Freud preparou os manuscritos do Projeto para uma psicologia científica, em que tentava estabelecer como base teórica para seu pensamento um aparelho neuronal. A que se deve então a antecipação, neste momento, de considerações muito precisas acerca do que viria a constituir a clínica psicanalítica? Por que se observa, neste texto, um “ultrapassamento” tão claro do lugar de saber a partir do qual o autor ainda tenta referendar seus enunciados?

Há um comentário do editor inglês da obra que talvez se dirija ao ponto que aqui abordamos. Ele afirma, em relação a esse volume, que o que Freud “nos relata não é simplesmente a história da superação de uma série de obstáculos; é a história da descoberta de uma série de obstáculos a serem superados” (STRACHEY, 1987 [1966], p.23, grifo do autor). Efetivamente, o texto de Freud é pontuado de referências a obstáculos que ele verificava se imporem ao método. Entendemos, no entanto, que, mais do que a consideração de tais obstáculos, o que coloca Freud na trilha de uma ruptura clínica e teórica é sua resposta não ter sido pautada pelo aprimoramento do método (para que o objeto ceda), e sim pelo ceder ao objeto. Ou seja, afirmamos que a resposta de Freud, nesse momento crucial, não é técnica, mas ética. A passagem do método catártico à psicanálise, da posição de médico à de analista, não é uma necessidade técnica, mas uma decisão ética. Decisão ética pela qual algo da ordem do desejo em Freud mudou o universo da clínica para nós. O desejo em Freud fundou uma ética.

Este artigo retoma, então, o texto A psicoterapia da histeria, propondo tal leitura: ser ele representativo, se não paradigmático, de um momento de fundação da psicanálise, no qual se verifica, portanto, uma descontinuidade em termos do pensamento de Freud. Por se tratar de um texto clínico, a descontinuidade se evidencia neste terreno, embora seja determinante do que se seguiu em termos teóricos. Essa descontinuidade será aqui trabalhada a partir de diferentes eixos temáticos que entendemos compor a obra.

 

Freud e o saber médico

A formação médica de Freud se faz presente mediante os termos utilizados: ‘doença’, ‘médico’, ‘etiologia’, ‘diagnóstico diferencial’, ‘patogênico’. Trata-se, então, de significantes usuais da clínica médica, que apontam ao longo do texto para seu emprego em um sentido não usual, inédito. Em outros contextos, em que o saber médico comparece no desenvolvimento dos argumentos de modo mais amplo que por um viés nominativo, o tributo pago a ele pelo autor implica certas ressalvas com relação ao que resulta da prática de seu método. Isso fica claro, por exemplo, quando a questão do diagnóstico diferencial da histeria em relação às outras neuroses é anunciada como uma das duas dificuldades de aplicação do método sobre as quais versará a obra.

O diagnóstico, ato médico por excelência, deve possibilitar a delimitação dos quadros clínicos aos quais o método se aplica. No caso do método catártico, Freud se depara com alguns problemas de precisão quanto ao diagnóstico, que ensejam preocupação ao médico que ali se encontra.

Ocorreu então algumas vezes que, apesar do diagnóstico de histeria, os resultados terapêuticos se revelaram muito escassos e nem mesmo a análise trazia à luz nada de significativo. Em outras ocasiões ainda, tentei aplicar o método de tratamento de Breuer a casos de neurose que ninguém poderia confundir com histeria, e assim verifiquei que eles podiam ser influenciados e, na verdade, esclarecidos. (FREUD, 1895a, p.254)

Não promete boa repercussão um método proposto para o tratamento da histeria que não se mostra efetivo em casos diagnosticados como de histeria e que, ao contrário, se mostra efetivo em casos de neurose, em que o diagnóstico de histeria está descartado. A saída pouco ortodoxa que Freud adota é considerar que o mecanismo psíquico que fundamenta o método não é patogmônico da histeria e deixar, em cada caso, que a decisão quanto ao diagnóstico fique na dependência do resultado da investigação.

A inflexão aí efetuada por Freud, com relação à lógica do diagnóstico, introduz um requisito temporal fundamental quanto ao lugar que tal diagnóstico veio a ocupar na experiência da psicanálise. Joël Dor, ao tratar do tema, indica que, na psicanálise, a relação entre o diagnóstico e a indicação de um método de tratamento “não remete a uma relação de implicação lógica como é o caso na clínica médica” (DOR, 1994, p.15). Isso porque seu campo de investigação clínica se delimita pela dimensão do dizer; não qualquer dizer, mas aquele que se estabelece pela relação transferencial. Sendo assim, o que baliza o diagnóstico advém do tratamento em curso, do método em operação, não sendo aplicável a exigência da anterioridade.

Outro embaraço de Freud diante da tradição do diagnóstico na clínica médica aparece associado a sua perspectiva etiológica. Embora declare ter sido “obrigado a reconhecer que, na medida em que se possa falar em causas determinantes que levam à aquisição de neuroses, sua etiologia deve ser buscada em fatores sexuais” (FREUD, 1895a, p.255, grifos do autor), ele se preocupa em distinguir sintomas psicogênicos e não psicogênicos. A preocupação em delimitar, no campo da etiologia, o que seria e o que não seria objeto da aplicação de seu método, não o livra da evidência de que “quanto a outros sintomas desses [não psicogênicos], parece que, de alguma forma indireta, eles são eliminados junto com os sintomas psicogênicos, do mesmo modo que, afinal, de alguma forma indireta dependem de uma causação psíquica” (ibidem, p.261).

Finalmente, o que nos parece particularmente representativo da relação de Freud com o saber médico é o modo como recorre a analogias com referências deste na tentativa de elucidar o que estaria em jogo em sua clínica. Dentre cerca de uma dezena dessas analogias e comparações, que não valeria a pena reproduzir aqui, destacam-se aquelas que fracassam no objetivo da elucidação, fracasso assinalado pelo próprio autor. Deste modo, ao dizer que o material patogênico com que está lidando se comportaria como um corpo estranho, e que o tratamento atuaria como a remoção desse corpo estranho do tecido vivo, Freud apresenta ressalvas importantes, julgando-se em “condições de ver onde essa comparação fracassa” (ibidem, p.282). Diferente da relação do corpo estranho com as camadas de tecido que o circundam, o grupo psíquico patogênico pertence, nas palavras do autor, tanto ao ‘eu normal’ quanto à organização patogênica. A fronteira entre os dois é fixada de modo convencional, o tratamento não consiste em extirpar algo, mas em permitir a circulação até então impedida.

Mais adiante, em outra comparação, a mesma reserva se repete por parte de Freud. Trata-se agora da descrição de seus tratamentos como operações psicoterapêuticas, da “analogia com a abertura de uma cavidade cheia de pus, a raspagem de uma região cariada, etc” (ibidem, p.293). Como antes, o autor afirma que a analogia se justifica menos pela remoção do que é patológico do que pela criação de condições para que o processo avance no sentido da recuperação. Em última instância, entendemos que essas analogias valem menos pela tradução por parâmetros médicos ou, constatada a insuficiência destes, pela introdução de alguma outra imagem ilustrativa. O apelo a tais analogias acaba tendo a função de apontar para o que escapa neste esforço de transmissão. Se, neste momento, é o saber médico que oferece as imagens e palavras para Freud, o encaminhamento dado por ele indica que sua experiência clínica não é toda representada e dita por ele.

Essa limitação em transmitir a psicanálise por meio de representações espaciais é constatada por Freud em outros textos. Um bom exemplo se encontra em O mal-estar na civilização (1930[1929]). A discussão que nos interessa inicia-se no ponto em que Freud, no decurso da obra, se interroga sobre a possibilidade de conviver o que é próprio de um eu primário com o que posteriormente caracterizaria o eu. À pergunta “terei eu o direito de presumir a sobrevivência de algo que já se encontrava originalmente lá, lado a lado com o que posteriormente dele se derivou?” (FREUD, 1930[1929], p.86) ele responde afirmativamente, recorrendo a partir daí a uma série de analogias que poderiam ilustrar a situação. O primeiro exemplo que apresenta – o das espécies animais – é rapidamente abandonado, visto que as espécies inferiores sobreviventes não são, de modo geral, os verdadeiros ancestrais das espécies mais desenvolvidas atuais. Freud ensaia, então, uma outra analogia, em um campo a que recorre com frequência em sua obra. Ele apela a uma imagem arqueológica, à imagem da Roma antiga revivida pelos historiadores.

Freud pergunta o que se encontraria, na atualidade, das diferentes fases históricas atribuídas à cidade. Com exceção do pouco que ainda resta intacto, o que se tem são restos escassos, que se confundem seja com restaurações posteriores e suas próprias ruínas, seja com a confusão da metrópole atual. Freud propõe, então, que imaginemos Roma não como uma habitação humana, mas como uma entidade psíquica, “uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última” (ibidem, p.88). Isso definiria um problema para a representação que deveríamos fazer de Roma, pois conteúdos diferentes teriam que estar justapostos no espaço. Concluindo ser inapropriada a comparação, Freud ainda cogita a analogia com o corpo humano – que ele reputa ser um objeto de comparação mais estreitamente relacionado – mas se depara mais uma vez com a impossibilidade de uma representação espacial, já que os órgãos da infância não poderiam se sobrepor ao que compõe o organismo adulto.

Tanto no exemplo da cidade de Roma quanto no do corpo humano, o que Freud diz justificar o esforço de estabelecer a analogia é a demonstração do “quão longe estamos de dominar as características da vida mental através de sua representação em termos pictóricos” (ibidem, p.89). A questão da ‘preservação na esfera mental’, que se apresenta para Freud, implica, então, a problematização da lógica de organização espacial a que o pensamento usualmente se submete. Isto é, a representação de dois conteúdos sobrepostos em um único espaço é uma imagem absurda em referência à lógica do espaço que nos é comum. O pensamento que aí se impõe a Freud desafia, portanto, sua representação espacial. Ao retomarmos A Psicoterapia da histeria, podemos dizer que o limite lá verificado, quanto às analogias com o saber médico, já anuncia a irredutibilidade da experiência da psicanálise a esquemas representacionais emprestados de outras disciplinas. A experiência que se estabelece a partir de Freud resiste ao acoplamento ao saber, especificamente ao saber médico no texto de 1895.

 

As dificuldades do processo

Imediatamente em seguida à discussão do problema diagnóstico, Freud anuncia que irá enumerar dificuldades de seu processo terapêutico. Em relação às exigências que recaem sobre o médico, ele destaca que, além de ser laborioso e exigir muito tempo, faz-se necessário o interesse pelos acontecimentos psicológicos e, também, pelos pacientes. Quanto a esses acontecimentos, Freud contrapõe não ser necessária uma tal aprovação pessoal para tratar, por exemplo, um paciente reumático ou tabético. Ele localiza aí, então, uma particularidade de seu tratamento no que diz respeito ao modo de o médico se implicar na decisão de tomar alguém sob seus cuidados. Algo em sua experiência inicial já lhe revela, portanto, que essa decisão do analista, com respeito às demandas que lhe são endereçadas, se inclui como um elemento do processo da análise.

Do lado do paciente, Freud diz que as exigências não são menores. O fato de que o processo conduz, em suas palavras, ao que é íntimo e secreto, torna-o aplicável apenas acima de um certo nível de inteligência e com uma confiança que faz a relação com o médico avançar para o primeiro plano. Podemos pensar esse nível de inteligência nos termos do ‘não saber’ do paciente neurótico, que Freud adiante diz tratar-se, de fato, de um ‘não querer saber’. Entenderíamos, assim, esse nível em termos da possibilidade de uma análise avançar apesar do ‘não querer saber’.Vemos, ainda, Freud aproximar-se do tema da transferência, o qual se apresenta, nesse texto, como um tema intersticial, remotamente nomeado. Embora inicialmente associada ao que faz obstáculo ao processo, ao que é indevido, Freud acaba por concluir que “esse novo sintoma, produzido com base no modelo antigo, deve ser tratado da mesma forma que os sintomas antigos” (FREUD, 1895a, p.292). Já antecipa, assim, a posição em relação à transferência que pauta seus futuros escritos: não se trata de algo a ser evitado, mas da própria via pela qual o trabalho da análise se dá.

O que entendemos ser fundamental sublinhar aqui, no modo como Freud toma o que se apresenta como obstáculo no processo, é o que podemos extrair de seu comentário de que:

a razão exige que ressaltemos o fato de que esses obstáculos, embora inseparáveis de nosso método, não podem ser atribuídos unicamente a ele. Pelo contrário, está bastante claro que eles se baseiam nas condições predeterminantes das neuroses a serem curadas [...] (ibidem, p.262).

Ou seja, como dissemos na abertura do artigo, Freud não aponta para o aprimoramento do método a fim de que os obstáculos sejam vencidos. Não se trata de fazer o objeto ceder, mas antes de ceder ao que no objeto resiste ao método. O autor entende, assim, que esse lugar do que não se conforma ao método não deve ser subtraído, na medida em que fala do que é constitutivo na neurose. Se quisermos avançar um pouco mais, fala que o constitutivo na neurose é correlato de certo ponto limite do saber com que é abordado. Como diz Paul-Laurent Assoun, “o neurótico, muito mais que objeto de estudo, é portador de uma exigência simbólica estruturante do próprio saber clínico” (1996, p.35). Freud não impõe ao neurótico, portanto, o saber consagrado; mas, ao contrário, toma o que ali está em jogo não como aquilo a que o saber será aplicado, mas como aquilo de que o saber derivará. Freud entende, por exemplo, que “um médico não pode atribuir-se a tarefa de alterar uma constituição como a histérica” (FREUD, idem, p.259).

O que não se conformou ao método não definiu um não lugar, próprio da histeria para seus contemporâneos, mas teve para Freud lugar de causa. Para além da questão de por que o desejo em Freud encontrou justamente o caminho que o levou até a histeria, vale mais destacar a posição inédita que esse encontro fundou. Diante dos obstáculos, que vimos o autor associar não à precariedade do método, mas ao constitutivo da histeria, a resposta não se define por um artifício técnico e sim por uma posição ética. Posição ética que entendemos ter possibilitado, consequentemente, a introdução do inconsciente. Ou seja, essa mudança de posição, que foi ao mesmo tempo uma invenção provida pelo desejo de Freud – não sem importância que tenha se produzido em resposta à histeria – fez, de um mesmo golpe, com que o inconsciente passasse a existir. Afinal, como o próprio autor indica muito tempo depois, a existência do inconsciente só se verifica na análise (FREUD, 1937).

O inconsciente de Freud, hipótese não verificável pelo saber no qual foi formado, é efeito do que o desejo fundou em termos éticos. Nos termos conhecidos em que Lacan enuncia, o inconsciente freudiano, frágil em seu estatuto no plano ôntico, é ético (LACAN, 1985). O psicanalista francês ressalta, ainda, que “o importante não é que o inconsciente determina a neurose” (ibidem, p.27). Quanto a isso, diz já ter Freud feito o gesto pilático de lavar as mãos: “mais dia menos dia, vão achar talvez alguma coisa, determinantes humorais, pouco importa – para ele dá na mesma” (idem). O fundamental é que, através do inconsciente, a neurose se conforma ao real da clínica. Real que se apresentou sob a forma dos obstáculos ao método e que só se sustentou na medida em que a posição de Freud localizou neles a função de um sujeito. Podemos dizer, então, com Miller, que: “a primeira incidência clínica da ética da psicanálise é o próprio sujeito” (MILLER, 1997, p.235).

 

A resistência

Freud toma, por tudo que vimos, o obstáculo como resistência. E no modo como apresenta a resistência, remete-nos, como dissemos, à função de um sujeito. Função que aparece na medida em que, com a inclusão da resistência como um operador da clínica, a relação do paciente com o médico excede o terreno do atender ou não aos objetivos do tratamento. O impasse de Freud se apresenta, em um primeiro momento, como uma questão de o paciente ser ou não hipnotizado, pré-requisito até então para o sucesso do tratamento. Ao elucidar o impasse introduzindo a noção de resistência, a relação entre o médico e o paciente não se vê mais reduzida à mediação pela aplicação de um método que supõe a técnica da hipnose. A resistência toma o impasse como índice de um ato (de defesa), o que por sua vez convoca à suposição de um sujeito, não localizável nem no médico nem no paciente conforme tomados em uma relação dual.

Podemos concluir do que dissemos acima que o abandono da hipnose não é uma questão técnica, mas ética. Em termos do que representa a inclusão da resistência, a hipnose pode ser abandonada por se tornar irrelevante. Mais do que isso, se, ao sair do estado hipnótico, como o autor observa, o paciente não tem consciência do que disse, o abandono da hipnose revelaria também o interesse de que o paciente assuma seus ditos, responda por eles. O que, a rigor, não estaria em jogo, ainda, nos artifícios de que Freud inicialmente se valeu para substituir a técnica da hipnose; como, por exemplo, a pressão da mão sobre a testa do paciente. Freud indica, efetivamente, que o tratamento tem de ir além de descobrir e revelar os motivos da resistência: “ainda que pudéssemos adivinhá-lo, o paciente não saberia o que fazer com a explicação a ele oferecida e não seria psicologicamente modificado por ela” (FREUD, 1895a, p.283). Não se está diante, então, de uma questão cognitiva. Mais do que ter consciência desses motivos, o desafio está, diz Freud no texto, em despojá-los de seu valor, substituí-los por outros. É nesse ponto que a pergunta quanto aos meios de que dispomos para tal recebe dele uma resposta de aguda antecipação daquilo que fundamenta o lugar do analista: “É aqui, sem dúvida, que deixa de ser possível enunciar a atividade psicoterapêutica em fórmulas” (ibidem, p.275).

Não há uma fórmula para o que Freud designou como o trabalho de superar as resistências do paciente. Vale notar que, no enunciado acima, ele inclui a ausência de dúvida quanto a isso, o que nos leva a pensar que Freud está falando do mais próprio da experiência que fundava. Logo em seguida, assinalada a ausência de fórmulas, Freud nos surpreende com a superposição de uma série de modelos.

Trabalha-se com o melhor da própria capacidade, como elucidador (ali onde a ignorância deu origem ao medo), como professor, como representante de uma visão mais livre ou superior do mundo, como um padre confessor que ministra a absolvição, por assim dizer, pela permanência de sua compreensão e de seu respeito depois de feita a confissão (idem).

São modelos usuais, familiares, mas que, superpostos, não traduzem, nenhum por si mesmo, o que seja este trabalho. E, o mais importante, indicam que Freud não busca outro modelo, nem mesmo um que fosse a síntese desses modelos. O trabalho do analista, até então não nomeado, não inclui o modelo. Implica mais a inclusão de um furo em cada um desses modelos e nos outros que possam vir a se propor neste lugar. Lugar a não todo ser dito, sustentando o registro do impossível, ao qual tal ofício se dirige, como Freud nos disse mais tarde em ‘Análise terminável e interminável’ (1937).

Se não há modelo proposto, não deixa de haver no texto indicações acerca dos limites deste trabalho. Por exemplo, que a tarefa terapêutica consiste unicamente em induzir o paciente a reproduzir as impressões patogênicas, verbalizando-as com uma expressão de afeto, que “uma vez realizada essa tarefa, nada resta ao médico para corrigir ou eliminar” (ibidem, p.276). Adiante, diz ter aprendido com admiração que “não estamos em condições de impor nada ao paciente sobre as coisas que ele aparentemente ignora, nem de influenciar os produtos da análise pela provocação de expectativas” (ibidem, p.286, grifos do autor). Verificamos tratar-se nas duas observações de uma limitação do trabalho do analista. Ou seja, Freud se destitui gradativamente do lugar de quem trabalha na análise. Trabalhar menos para não fazer impasse ao trabalho do analisante. E, como deduzido mais tarde pelo autor, submeter-se ao processo da análise para suportar não trabalhar pelo analisante. Nos termos do texto de 1895, Freud previne o médico quanto a não interferir no paciente em sua reprodução das ideias. Não estamos aí no terreno do que ele havia identificado como obstáculo, incontornável por remeter ao constitutivo da neurose, mas no do impasse engendrado do lado do analista. Freud previne também, por outro lado, quanto a não superestimar a ‘inteligência’ inconsciente do paciente e deixar a cargo dela a direção de todo o trabalho. Este acréscimo é importante por não permitir tomar a prevenção quanto a não interferir com o paciente no sentido de descaracterizar a presença do analista.

 

A direção do tratamento

A transferência convoca o analista, e Freud, já nesse texto de 1895, entrevê ser por meio dela que poderá efetivar-se “o importante papel desempenhado pela figura do médico na criação de motivos para derrotar a força psíquica da resistência” (ibidem, p.291). Complementa, afirmando que a cooperação do paciente para o tratamento se torna um sacrifício pessoal a ser compensado por algum substituto do amor. Entendemos que ele antecipa aí a noção de um amor transferencial, uma demanda de amor sem o que a trajetória delineada para a cura não se viabilizaria. Quanto à ideia de um sacrifício pessoal, Freud já havia observado antes que “grande número dos pacientes que se adequariam a essa forma de tratamento abandonam o médico tão logo começam a suspeitar da direção para a qual a investigação está conduzindo” (ibidem, p.262). Arrematemos essa associação do sacrifício pessoal e do amor transferencial com uma citação de Ferenczi:

No apogeu da transferência, vemos o paciente aceitar sem resistência até o que há de mais desagradável; ele encontra manifestamente no sentimento de prazer que acompanha o amor de transferência um consolo para a dor que, de outro modo, essa aceitação lhe teria valido. (FERENCZI, 1993, p.395).

Ao falar do manejo do amor transferencial, em Observações sobre o amor transferencial (1915[1914]), Freud diz não haver para ele um modelo na vida real. A pergunta de “como deve o analista comportar-se, a fim de não fracassar nessa situação, se estiver persuadido de que o tratamento deve ser levado avante, apesar desta transferência erótica” não é respondida pelo autor, que apenas estabelece dois parâmetros éticos fundamentais: nem retribuir, nem buscar a supressão de tal transferência. Entendemos que, no seminário dedicado à transferência (1960-61), Lacan encontrou com que avançar através do discurso de Sócrates em o Banquete de Platão. Mediante essa referência, o modo de o amor operar no processo analítico se desprende do mito da complementaridade, que estaria no horizonte da demanda amorosa; ao contrário, a verdadeira via amorosa seria aquela que se constrói com a inclusão da impossibilidade do encontro sem falta. Sem recusar a esfera do amor, operar-se-ia desde esse lugar, sem negar o impossível que está em seu cerne, dirigindo-se a ele, para dele fazer alguma coisa.

Enunciado semelhante Freud proferiu, no final do texto de 1895, ao se perguntar sobre a finalidade do tratamento. A problematização, nesse caso, teve por objeto a noção de felicidade. A questão de que parte é a inevitável objeção de que, relacionando a doença com as circunstâncias e os acontecimentos da vida, e não podendo alterá-los, como se proporia a ajudar o paciente? Freud responde que haverá muito a ganhar transformando o sofrimento histérico em infelicidade comum. É esta última expressão que nos interroga. Em que consiste tal infelicidade comum? De imediato, podemos concluir que não está sendo proposta a troca da histeria, da neurose, pela felicidade. Mas por algo que se apresentaria a partir do impossível da felicidade, nomeado infelicidade comum.

Mais de três décadas depois, no já citado O mal-estar na civilização, Freud retomou o tema da felicidade. Essa designou ali o que ele verifica mostrarem os homens como propósito e intenção de suas vidas. Associada ao princípio do prazer, define um programa que se encontra “em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo” (FREUD, 1930 [1929], p.94). É ainda acrescentado que “ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’ (ibidem, p.95). Adiante, no entanto, Freud indica que, se o programa de tornar-se feliz não pode ser realizado, “não devemos – na verdade, não podemos – abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra” (ibidem, p.102).

Consideramos que essa discussão, efetuada na última década da obra freudiana, elucida a última passagem de A psicoterapia da histeria, na qual o autor se orienta pelo que chamou de infelicidade comum. Afinal, encontramos explicitado em O mal-estar na civilização o apontamento do impossível da felicidade. Com o acréscimo ali de que este não se traduz pela infelicidade, mas por uma busca que tem por condição a afirmação do impossível. Entendemos encontrar aí, a posteriori, a indicação do que fundamenta a posição de exceção, irredutível, da psicanálise no campo da clínica já em 1895 e a qualquer tempo: a direção ao impossível, ao incurável.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Praça Santos Andrade, s/nº, sl 220 – Centro
80020–300 – Curitiba/PR
E-mail: vdarriba@ufpr.br

Recebido: 02/07/2009
Aprovado: 08/09/2009

 

 

1 Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFPR, vice-coordenador do Laboratório de Psicanálise dessa universidade. Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Psicanalista.
2 Equipe de pesquisa vinculada ao Laboratório de Psicanálise da UFPR. Graduandos em Psicologia.
3 Equipe de pesquisa vinculada ao Laboratório de Psicanálise da UFPR. Graduandos em Psicologia.
4 Equipe de pesquisa vinculada ao Laboratório de Psicanálise da UFPR. Graduandos em Psicologia.
5 Equipe de pesquisa vinculada ao Laboratório de Psicanálise da UFPR. Graduandos em Psicologia.
6 Equipe de pesquisa vinculada ao Laboratório de Psicanálise da UFPR. Graduandos em Psicologia.
7 Equipe de pesquisa vinculada ao Laboratório de Psicanálise da UFPR. Graduada em Psicologia.

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