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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.32 Belo Horizonte Nov. 2009

 

 

Psicanálise e religião

 

Psychoanalysis and religion

 

 

Tarcisio Andrade1

Círculo Psicanalítico da Bahia
Faculdade de Medicina - Universidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo de recortes da história da Psicanálise, da filosofia, da arte e da sociologia, o autor enfatiza o papel da transgressão na constituição do sujeito e, sob essa ótica, analisa o mito de Adão e Eva. Numa aproximação entre religião e psicanálise, a partir de um caso clínico de um paciente com forte vinculação religiosa, são analisados a transferência, as bases da escolha do sacerdócio e sua ancoragem de natureza edipiana, e a religião como sintoma neurótico. Por fim, o autor fala de uma outra religião possível, de crentes não alienados a um Deus todo poderoso, mas protagonistas responsáveis pelos seus próprios atos, sem, contudo, abdicarem da sua proteção.

Palavras-chave: Psicanálise, Clínica psicanalítica, Religião, Sociologia, Sujeito.


ABSTRACT

Taking account little pieces of the history of psychoanalysis, philosophy, arts and sociology the author emphasize the transgression as part of the subject constitution and how it appears on Adam and Eve myth. Coming close to religion and psychoanalysis, he takes the psychoanalytic treatment of a faithful to God patient as motivation to analyze the transference, the chosen of a religious life under the light of the psychoanalysis and the religion as a neurotic symptom. The author points out other kind of faith followers, who not completely dependent of God, are protagonists of their own lives, without giving up the protection of God.

Keywords: Psychoanalysis, The practice of Psychoanalysis, Religion, Sociology, Subject.


 

 

Um dia Freud, dirigindo-se a Breuer, a quem seu pai no leito de morte transmitira a tarefa de cuidar do filho, disse: “Chega um dia que temos de abdicar de todos os pais e se por de pé sobre os próprios pés”. Uma alusão à autonomia, ao sujeito constituído na responsabilidade pelos seus próprios atos. Nessa mesma direção, em seu livro “A negação da morte”, Ernest Becker (1973), pensador e filósofo americano, a propósito da tentativa do também pensador e psicólogo americano William James de conciliar as paixões humanas e a entrega a Deus, menciona um dos seus preceitos favoritos: “Filho do homem, fique de pé sozinho, para que eu possa falar com você.” Sobre isso, diz Becker: “se os homens se apoiarem demais em Deus, não irão conseguir o que precisam fazer neste mundo com as suas próprias forças.”

Raul Seixas, em sua canção “Sapato 36”, fala-nos da desobediência, um conceito de conotação negativa porque associado à transgressão. Mas, ao falar de desobediência, ele nos fala da constituição do sujeito na responsabilidade pelos seus atos. Diz Raul: “Eu calço é 37, meu pai me dá 36, dói, mas no dia seguinte aperto meu pé outra vez”. E adiante: “Pai, eu estou indo embora, quero partir sem brigar, já escolhi meus sapatos que não vão mais me apertar”. Trata-se da autonomia, da diferenciação do sujeito na relação com o Outro. Nesse contexto, algumas vezes se inscreve o uso de drogas quando, diante do não lugar de uma existência própria, não subjetivada, o usuário passa a se constituir no real de suas transgressões.

O universo do uso de drogas é separado por uma linha imaginária entre usuários e não usuários. Para os não usuários, sobretudo, quando representados pelos jovens, pelas crianças, por nossos filhos, oferecemos-lhes toda a proteção, tudo o que for possível para mantê-los distantes do mal, lugar ocupado pelas drogas no imaginário social. Entretanto, quando um integrante desses mesmos grupos, alvo de toda a nossa atenção e cuidado, é descoberto fumando um baseado, já não é mais o mesmo que antes, pulou o muro, transpôs a linha imaginária e agora – sobretudo se for negro e pobre – passa a ser visto como drogado, viciado, maconheiro, perigoso. Essa situação nos remete ao mito de Adão e Eva, no qual a droga ocupa o lugar do fruto proibido oferecido por Satanás (traficante), cujo consumo leva à expulsão do paraíso.

No paraíso, segundo a Bíblia, tudo é suprido sem demandar qualquer esforço; lá Adão e Eva, numa dependência completa de Deus, se constituem – assim podemos admitir – num casal patético de animais diferenciados. Como castigo pela desobediência, Deus sentenciou o homem a comer o pão do suor do seu próprio rosto e a viver as dores de sua existência. Adão e Eva foram, portanto, condenados a uma existência própria, à percepção de si mesmos, de sua finitude. Logo, à luz do mito da gênesis do homem, no âmbito da concepção religiosa de um Deus provedor de todas as coisas, bastando para isso que o homem lhe obedeça sem questionamentos, o que nos possibilitou a passagem do lugar de alienação à assunção da condição de sujeitos, nos tornando seres de falta, castrados, desejantes, enfim, o que nos possibilitou a passagem da natureza à cultura, foi o ato de desobediência, mediado por Satanás.

Em conversa pessoal com um aspirante a pastor evangélico, ele me dizia dos princípios de sua Igreja: “o homem continua sendo um ser para receber de Deus toda a provisão de suas necessidades, mas isso não acontece, devido à sua desobediência, pois continua cedendo à tentação do Satanás”. Ainda nessa conversa, ele me falava do paralelo entre o pecado original e a saída dos filhos da casa dos pais, o que se dá em um momento marcado por possibilidades de autonomia daqueles, mas também pela desobediência, alguns deles sendo, literalmente, expulsos de casa.

Vejamos um pouco da religião na prática clínica.

Um homem jovem, de nível instrucional médio, de classe proletária, evangélico praticante e fervoroso, me foi encaminhado com queixa de ejaculação precoce. Devido a sua pouca condição financeira, eu o tomei em acompanhamento cobrando-lhe um valor simbólico. Ao final de cada sessão, o seu pagamento se acompanhava sempre de agradecimentos, cujo conteúdo denotava reverência. Ao longo de oito meses, pude ver com ele sua forte ligação com a mãe, pessoa que efetivamente lhe proveu os cuidados e os meios necessários ao seu desenvolvimento físico e mental. Embora pouco manifesta, fazia-se evidente a sua rivalidade com o pai; este, autoritário, ausente no cuidado com os filhos, pouco preocupado com a família e muito envolvido com sua atividade profissional. Em relação à namorada, o paciente se colocava no papel de pai bondoso, tolerante, e a protegia afetiva e financeiramente. Em vários momentos, tornou-se evidente que ela ocupava para ele o lugar da mãe, e a ejaculação precoce – que algumas vezes acontecia mesmo antes da penetração – vinha em socorro de uma relação impossível, uma vez que imaginariamente incestuosa. Por algum tempo, o paciente não voltou a se queixar dessa dificuldade, tendo decidido que só voltaria a ter relações sexuais após o casamento conforme preconizava a sua religião.

Passo agora a relatar fragmentos das três últimas sessões desse cliente: Um dia, ele pediu que eu terminasse a sessão quinze minutos mais cedo, pois tinha “algo a tratar comigo fora da relação profissional e não queria tomar meu tempo”. Disse-lhe que ali não havia um dentro e um fora da sessão, mas no tempo solicitado eu o avisaria. E o fiz. Ele se levantou e me entregou um presente. Era uma Bíblia e um livreto dos quais ele passou a me explicar alguns conteúdos. Terminadas as suas colocações, eu lhe disse que havia uma diferença entre querer me fazer ver algo e estar disponível para me ajudar se eu lhe fizesse demanda e que era isto o que acontecia entre ele e a namorada, em que ele se antecipava às supostas necessidades dela. E acrescentei: é diferente ser um facilitador de ser um provedor do que se supõe seja a necessidade do outro; essa última posição está fadada ao fracasso, à desobediência e à ingratidão de quem recebe e, por consequência, à frustração do provedor. Incontinenti dei-me conta de que esta minha colocação guardava relação com as queixas dele de que sua namorada não reconhecia a sua dedicação e que as mulheres pareciam gostar mais de homens que as maltratavam.

Na sessão seguinte, após um período de quase dois meses que incluíram minhas férias, ele disse que havia terminado o namoro e justificava o término da relação racionalmente, mas parecia sofrer com a situação. Quando ele se referiu à data do término do namoro, eu lhe disse que o que parecia ter uma data definida, na verdade era uma construção – numa alusão à sua análise.

Na última sessão, vinte dias após, ele me disse que foi a uma clínica para tratamento de disfunção sexual e teve o diagnóstico de hipersensibilidade da glande, tendo lhe sido prescrita uma medicação sublingual spray ao custo de R$2.200,00 e que, devido a esse compromisso financeiro, não daria continuidade ao tratamento comigo. Eu tive a sensação de que ele havia sido enganado ao buscar de forma imediata a solução que eu não havia lhe oferecido e, ainda, que aquele ato era dirigido a mim.

Em uma outra sessão, que antecedeu as três últimas relatadas acima, ele me dissera que teve um pensamento absurdo: se juntar com uns amigos e dar uns murros em um colega de trabalho. Achei que o murro estava dirigido a mim, mas por alguma razão não lhe disse nada. Ao final da sessão, ele confirmou a minha percepção ao me comunicar que talvez não viesse mais às sessões. Ele mantinha comigo uma relação de ambivalência, cuja matriz era a relação com o pai.

Freud chamava a atenção para, de um lado, a posição passiva feminina diante do pai e a fé, e do outro a posição ativa masculina e a descrença. Em seu livro “Crer depois de Freud”, Carlo Eduardo Morano, psicanalista, teólogo e filósofo espanhol, fala-nos, mencionando inclusive diversos estudos realizados entre religiosos, que, embora a apresentação seja a da figura do pai/padre, é a relação com a mãe que está por trás da escolha religiosa. Diz ele “Essa escolha desempenha muitas vezes a função psicológica de excluir qualquer tipo de compromisso sexual, de modo a manter o sujeito apegado, infantil e inconscientemente, à sua mãe. Uma situação edipiana não resolvida é patente como pano de fundo dessa exclusividade amorosa”. Trata-se de mães presentes, cuidadosas e pais distantes e omissos que são posteriormente internalizados pelo superego – em dissonância com o pai real – com as características de perfeição e onipotência que lhes foram atribuídas na primeira infância.

A história da relação de Freud com seus pais é oposta à referida acima para o religioso. Descrente de uma força superior, estoico e atribuindo ao próprio homem toda a responsabilidade pela sua existência, Freud teve em Amalie a mãe autoritária, narcisista, distante das necessidades dos filhos e incapaz de vê-los fora da perspectiva de objetos de sua satisfação e orgulho pessoal. Isso era bem evidente na sua relação com Freud, o filho famoso, em detrimento dos demais. Porém Jacob, seu pai, era bondoso, dócil e tolerante (RIZZUTO, 2001).

Freud fala da religião como uma manifestação neurótica, uma neurose coletiva, e diz que a obsessão é a religião particular do neurótico. A esse respeito, Morano (2003) chama a atenção que a transferência no âmbito das relações dos fiéis com os religiosos é favorecida pela confidência e privacidade da relação e se constitui num terreno fértil para relações marcadas por traços histéricos e obsessivos, uma vez favorecidas pela intensa repressão sexual e pela ambivalência. Esta última é uma marca das relações de poder e submissão.

No que diz respeito às manifestações histéricas, a relação entre os religiosos e as mulheres se caracteriza pela intimidade, em que o homem, em princípio, garante o lugar da impossibilidade, porque dessexualizado. Por outro lado, algumas mulheres que fazem parte do ciclo social mais próximo dos religiosos desempenham em relação a eles o papel de mães zelosas e protetoras. Quanto à neurose obsessiva, as demandas feitas pelos fiéis ao apelarem repetidamente ao sacerdote pelo perdão de suas transgressões, com este último no papel de pai bondoso e provedor incondicional, carrega consigo o desejo de vê-lo fracassar alguma vez nas tentativas de livrá-los da culpa. Nesse particular, o perdão aos erros de sua namorada do cliente mencionado acima, seguia-se de novas transgressões da parte dela, claramente em desacordo com princípios e valores morais cultivados por ele, numa provável tentativa de que em algum momento ele não mais a perdoasse – como efetivamente ocorreu – e ela viesse a se constituir sujeito de seus próprios atos.

A dominação medra no terreno das fraquezas do dominado, o que está em sintonia com a percepção de Freud da religião como sintoma neurótico. Por outro lado, a pessoa dominada goza desta condição, à medida que, naquilo que ela faz – e o faz em nome do Outro – se evanesce da condição de sujeito, de ser de falta e de desejo; tudo é feito em nome do Deus, da Ciência, do Estado. Se o imperativo da atualidade é gozar a qualquer preço, como nos aponta Melman (2003), a alienação a um Deus todo poderoso é terreno fértil para a proliferação de seitas e religiões com esse perfil, o que efetivamente vem acontecendo de forma acelerada em muitos países.

Ao lado da religião como um sintoma neurótico, cuja origem remonta à extrema desvalia da criança, em seus momentos iniciais, em face das adversidades do mundo externo, em particular no contexto das relações parentais, há uma outra religião traduzida na ação de missionários nas lutas contra a dominação e a injustiça e pelo exercício da cidadania e do direito, sobretudo, entre as populações menos favorecidas. Essas práticas, longe de se constituírem uma deturpação política dos textos religiosos, são, também, uma tradução deles. Trata-se de um Deus mais próximo do humano; os seus seguidores são admitidos em toda a sua potencialidade e capacidade de transformar o mundo a partir de suas próprias forças, mas que, ainda assim, por si mesmos, sozinhos, não serão capazes de tudo, não encontrarão todas as respostas e necessitam se sentir protegidos. O mito de Adão e Eva contém essa visão mais abrangente da religião, à medida que, ao colocar o homem diante da responsabilidade por si mesmo, Deus não o abandona. Situações banais do nosso cotidiano traduzem a necessidade de um Deus de proteção: o que pode o passageiro diante da possibilidade de um acidente aéreo como os que têm vitimado centenas de pessoas. Antes da decolagem, eu rezo.

 

Referências

BECKER, E. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 1973.        [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na Civilização (1930). Edição Standard brasileira das Obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v XXI.        [ Links ]

FREUD, S. O futuro de uma Ilusão (1927). Edição Standard brasileira das Obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v XXI.        [ Links ]

MELMAN, C. O homem sem gravidade – gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.        [ Links ]

MORANO C. D. Crer depois de Freud. São Paulo: Edições Loyola, 2003.        [ Links ]

RIZZUTO, A. Porque Freud Rejeitou Deus. São Paulo: Edições Loyolas, 2001.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Trancredo Neves, 1632/1004
Ed. Trade Center – Torre Norte – C. das Árvores
41820–020 – Salvador/BA
Fone: + 55 71 3367-6459 / 3113-1414
E-mail:tarcisio@ufba.br

Recebido: 04/06/2009
Aprovado: 09/09/2009

 

 

1 Médico e psicanalista associado ao Círculo Psicanalítico da Bahia. Doutor em Medicina, pesquisador nas áreas de Psicologia Médica e do abuso de substâncias psicoativas. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação da Faculdade de Medicina da Bahia – UFBA, onde é também o coordenador da Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti – ARD-FC, Serviço de Extensão Permanente voltado para a atenção às pessoas que usam drogas.

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