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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.33 Belo Horizonte jul. 2010

 

 

Psicopatia Da Vida Cotidiana1

 

Psychopath of everyday life

 

 

Déborah Pimentel2

Círculo Brasileiro de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora faz uma análise das notícias veiculadas pela imprensa e a partir delas percebe-se o grande número de pessoas que são vítimas de gente inescrupulosa e mentirosa e a dificuldade que temos de identificar esses sujeitos perversos que gravitam ao nosso redor. São pessoas que se recusam a viver frustrações e capazes de atrocidades e de recursos ilícitos ou agressivos para alcançarem o que desejam a despeito da lei e que recorrem às mentiras, trapaças e crueldades. A autora conclui que não existe uma resposta psicanalítica para os psicopatas, pois ela só existe para um pedido daquele que se dirige a um psicanalista. O tratamento para a psicopatia, se é que existe, é de ordem social e de caráter educativo.

Palavras-chave: Psicopatia, Perversão, Lei, Tratamento.


ABSTRACT

The author makes an analysis of news related by the press and from them we see the large number of people who are victims of unscrupulous people and liars and the difficulty we have to identify these perverse individuals who gravitate around us. They refuse to live frustrations and they are capable of atrocities. They use illegal or aggressive resources in order to achieve what they want regardless of the law and they resort to lying, cheating and cruelty. The author concludes that there is no psychotherapy response to psychopaths, because it only exists for a demand that it is directed to a psychoanalyst. The treatment for psychopaths, if it exists, has a social and an educational character.

Keywords: Psychopath, Perversion, Law, Treatment.


 

 

O homem é a medida de todas as coisas.
Platão

Estou triste. Muito triste. Vi os homens de perto. De muito perto.
Antoine de Saint-Exupéry

 

Houve um período em que a maioria da população era bem neurótica. Para melhor definição, histérica. Estragavam tudo no melhor da festa para dormir com um gigante sentimento de culpa, cheios de ansiedade e de tranquilizantes.

Mais adiante a sociedade deprimiu e nunca se falou tanto, e se prescreveram tantos psicofármacos para a alegria dos laboratórios.

Os tempos mudaram, e as manifestações psíquicas apresentam-se de forma vistosa, quer no uso das drogas, no consumo exacerbado, no jogo patológico, no uso alienante do computador, no culto ao corpo, nos transtornos alimentares, ou ainda nas transgressões e violência.

Vivemos uma terceira fase: a sociedade do espetáculo, narcísica e perversa.

Palavras antes usuais, como solidariedade e companheirismo, por exemplo, desapareceram do vocabulário e das relações do cotidiano. Os índices de violência são crescentes, quer nas ruas, quer nas áreas privadas; reinam a intolerância e a insegurança.

Somos uma sociedade em que o status social e a imagem que o sujeito constrói e vende de si mesmo é que vão dizer da sua importância como sujeito. Há uma cultura da mais valia, da Lei do Gérson, do levar vantagens em tudo, ser esperto. Valores como honestidade, nobreza, generosidade, amizade são ignorados ou tidos como atributos de pessoas bobas ou ingênuas.

Talvez esta seja uma grande oportunidade de dialogarmos com outras áreas do conhecimento e oxalá, articularmos melhor nossos pensamentos entre a Lei e a Cultura, em um momento em que vivemos uma crise que denuncia a falência das instituições pilares da sociedade: família, igreja e governo.

No seio familiar, protegem-se demais os filhos, e se diz a eles apenas o que eles querem ouvir; os pais antecipam-se aos seus desejos, não permitindo que aos filhos nada falte. Gravíssimo pecado dos tempos atuais.

Observem, pois, os filhos da atualidade. Eles são esvaziados de desejos e de projetos. Não sabem o que querem ser no futuro, não sabem o que vão fazer amanhã, não querem pensar. Estão insuportavelmente insatisfeitos, se dizem infelizes e incompreendidos.

Quando frustrados, se são crianças, fazem crise de birra, deitam no chão, gritam e esperneiam e conseguem o que querem imediatamente, principalmente se estão em público, por saberem como constranger os pais. Desde muito pequenos aprendem rápido como manipular os adultos, principalmente os que se sentem culpados pelo seu estilo de vida: muito trabalho e pouca atenção aos filhos, que crescem cheios de presentes e pouca presença dos pais. Quando se tornam adultos, são intolerantes às diferenças e se recusam a viver frustrações; são capazes de atrocidades e de recursos ilícitos ou agressivos para alcançar o que desejam a despeito da lei e de obstáculos de qualquer natureza. Recorrem às mentiras, trapaças, crueldades.

Se abrirmos os jornais ou assistirmos ao noticiário da televisão com um novo olhar, facilmente perceberemos a extensão desse problema que é absolutamente estarrecedor. Senão, vejamos.

Há poucas semanas, nos noticiários, vimos a condenação dos pastores Estevam e Sonia Hernandes, líderes da igreja Renascer em Cristo, que deixaram de prestar contas de uma das suas ONGs, mas que também vêm sendo processados por centenas de fiéis e pelo próprio Ministério Público por sonegação, fraudes e enriquecimento ilícito às custas das doações dos seguidores de sua igreja. A dupla já cumpriu pena de prisão em Miami por tentar ingressar nos Estados Unidos com 56.000 dólares não declarados.

A Igreja Católica também tem sido, nos últimos meses, a vedete de grande constrangimento público e tenta, desarticulada e desajeitadamente, se redimir dos seus pecados, porquanto, por décadas, as autoridades eclesiásticas têm sido omissas e até coniventes com os padres pedófilos, que por sua vez, passam o dia falando no amor e temor às leis de Deus. São simulados.

Há poucos dias, uma notícia na Folha de São Paulo nos arrebatou pelo seu conteúdo: um falso padre enganou fiéis por dois anos com homilias impecáveis, realização de casamentos, batizados, missas e ouvindo confissões.

É frequente assistirmos governantes explicarem com naturalidade desvios de verbas públicas, caixa dois, mensalões, malas de dinheiro, frutos de improbidades, corrupção e sonegação.

Há uma ausência de culpa ou remorso e total falta de constrangimento dessa tribo política, quando pegos em flagrante com dinheiro nas cuecas e meias, ou mentindo, como certa candidata ao cargo de presidente da República que fraudou seu curriculum lattes, dizendo que era mestre e doutora sem ser uma coisa ou outra.

Os políticos possuem, como bons psicopatas, um grande talento para distorcer as regras, reinterpretar as leis a seu favor, ou as reinventar e, simultaneamente, levantam a ética como bandeira e entram em movimentos de combate à corrupção. Claro que nem todos os políticos são psicopatas, mas não há dúvida de que psicopatas amam o poder e por isso se interessam tanto pela política.

Definitivamente não há, aparentemente, mais nenhuma reserva ética e moral. Sobrou muito pouco ou quase nada. Vivemos em um mundo competitivamente selvagem e sem lei, principalmente para muitos que estão no poder e que manipulam as regras de acordo com as suas conveniências.

Sem leis rígidas, a violência se torna crescente, e, em contrapartida, a impunidade em alguns segmentos torna-se uma aberração e uma agressão ao bom-senso dos cidadãos do bem.

Estamos próximos ao período eleitoral e, é assustador vermos a grande massa absolutamente desinformada e manipulada e assim capaz, pelo seu número de eleitores, de deflagrar resultados em troca de cestas básicas. É espúria a relação do governo federal com grupos rurais organizados que recebem sua ajuda, aval, financiamento e leniência e invadem terras produtivas, destroem, depredam e saqueiam propriedades privadas em cenas de banditismo explícito.

Na polícia, floresce um meio propício para os psicopatas e talvez isso seja mais um ponto a ser estudado, pois não há procedimentos para evitar que eles entrem nessa instituição, que é bastante atraente, por lhes conferir poder e legitimidade para as suas ações, não raro descritas pela mídia como de muita crueldade.

Existem empresas que têm essas características também, pois não respeitam acionistas, sócios, funcionários, nem consumidores e clientes. Organizações que burlam seus resultados para vender melhor as suas ações na bolsa ou as que fraudam o peso de mercadorias, como as duas importantes fábricas de chocolates Lacta e Garoto, que foram autuadas no mês de maio deste ano pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, por não avisarem aos consumidores que seus ovos de páscoa estavam pesando menos do que os tamanhos anunciados e assim auferiram importante lucro com estas manobras.

Nas empresas, portanto, psicopatas estão instalados com sucesso. Eles possuem os principais atributos desejados pelos líderes empresariais, como ambição, inteligência, capacidade analítica e de liderança, carisma e disposição para enfrentar desafios.

Muitos se sentem atraídos por atividades de alto risco com perspectivas de altos retornos. A Revista Veja do dia 5 de maio de 2010 traz a história de Fabrice Tourre que trabalhava para o mais importante banco de Wall Street: Goldman Sachs. O jovem executivo de 31 anos criou dispositivos financeiros que arruinaram muitos clientes, principalmente viúvas ingênuas, em favor do banco, vendendo papéis que sabia serem podres, atitude descrita por ele mesmo em e-mails confessionais para a namorada como monstruosidade, mas que renderam muito para o banco e muitos bônus e prestígio para ele próprio.

Há de se desfiar um rosário de exemplos sobre as psicopatias do cotidiano. Nunca se falou tanto em assédio moral e, mais recentemente em bullying, outra modalidade de assédio caracterizada pela humilhação promovida entre escolares, crianças e adolescentes, que desestabiliza as vítimas, promovendo sinais de depressão, ansiedade, angústia, com muitas lágrimas, medo e constrangimentos e com francos efeitos no corpo e na alma.

Por vivermos em tempos modernos, era cibernética, agora falamos também em cyberbullying: os agressores também estão on-line. Como mais de dez milhões de jovens brasileiros têm uma relação quase visceral com a internet, local de encontros e bate-papos no MSN, Orkut, Facebook e agora Twitter, os agressores, quando criam falsos perfis ou comunidades especializadas em agredir e denegrir, conseguem promover uma dor inexorável ao manchar uma identidade e uma imagem ainda em construção. É o inferno cibernético.

Precisamos, sem dúvida, revisitar conceitos básicos que parecem perdidos: ética, empatia e tolerância; eles farão diferença na nossa compreensão do mundo moderno que traz como marca a psicopatia da vida cotidiana.

Há alguns dias, vimos uma cena no noticiário que beira o inimaginável: uma mulher sendo assaltada e lutando com o bandido para defender sua bolsa dentro de uma delegacia, enquanto os policiais assistiam à cena e não moveram um único músculo, esboçando sequer um discreto gesto de impedimento da agressão.

A violência dos dias atuais tanto pode ser à luz do dia, nas ruas ou na delegacia, explícita, como aquela protagonizada pela ilustre promotora na intimidade de sua casa, onde torturava covardemente sua indefesa filha adotiva de apenas dois anos de idade; como aquela outra, não se sabe qual mais perversa, praticada pelo Estado omisso, em que se veem crianças, adultos e velhos abandonados nas ruas à própria sorte e privados de satisfações mínimas para uma existência com dignidade e, por conseguinte, dos seus direitos como cidadãos, garantidos, paradoxalmente, por que não dizer, ironicamente, pela nossa Carta Magna.

O pior, entretanto, pasmem, nós estamos entorpecidos diante dessas notícias e cenas brutais e assistimos a elas muitas vezes sem reação, sem afeto, sem nenhuma indignação. E com essa capacidade perdida, já há algum tempo, na verdade, cremos que embotamos também a capacidade reflexiva. É a mídia, repetindo exaustivamente relatos dos dramas familiares e cenas de barbárie, como as que envolvem o goleiro Bruno que mandou assassinar a sua ex namorada com requintes de crueldade, que cria em nós um efeito de comoção, que não sabemos ser natural ou artificial.

A violência e a vida foram banalizadas. A maldade dança sob nossos olhos ininterruptamente e se maquia e se mascara de diversas formas, de sorte que para os que tomam conhecimento dela, quer como testemunhas oculares, quer nos noticiários, seus efeitos são inócuos e é aceita como algo natural do cotidiano. Entretanto ela é devastadora para quem é a vítima, a ponto de o sujeito, em certas circunstâncias, não mais se equilibrar, e fenecer, morrer.

No reino animal, o homem é o único capaz de matar e tem inclusive o requinte de planejar a morte de outros de sua espécie, movido por retaliação, ambição, conveniência, pela incapacidade de gerenciar as diferenças ou por mero prazer.

Uma das perguntas que podemos nos fazer é se de alguma sorte não poderíamos resgatar a nossa capacidade de nos indignarmos ou voltarmos a nos instrumentalizar de forma adequada para estas reações.

Quem sabe, os pais e professores não poderiam ser mais bem instrumentados para perceber, ainda nas crianças e adolescentes, sinais precoces de transtornos de conduta: mentiras, crueldade e frieza emocional com ausência de culpa, transferência de responsabilidades, postura de desafio com pais e professores, vandalismo, fraudes, uso precoce de álcool e drogas.

Sabe-se que a psicopatia não tem cura, mas, quem sabe, se um olhar mais atento não poderia ser útil, senão, de forma exageradamente otimista, evitando um quadro mais exacerbado de psicopatia na vida adulta, mas também, principalmente, protegendo possíveis vítimas e evitando suas trágicas e nefastas ações.

Nem sempre os psicopatas são identificados, depende muito do grau de psicopatia, se baixa, moderada ou grave. Muitas vezes, convive-se com eles no cotidiano, pois nem todos se transformam em marginais ou assassinos, e levam uma vida aparentemente normal, exercendo seu grande poder de sedução, manipulando, traindo, tirando vantagens e fragilizando os mais vulneráveis, em relacionamentos predatórios com quem cruzam pelo caminho e que podem tornar-se presas fáceis do seu gozo perverso.

Existem também aqueles que se transformam em homicidas ou, pior, serial killers. Não faltam exemplos. O mais recente foi há três meses, um fato de grande comoção e repercussão social. Mediante o regime de progressão de pena, um benefício foi concedido ao pedreiro Admar que trazia Jesus no nome, assassino confesso de seis jovens de Luziânia (GO), e que cumpria pena por crime de pedofilia. Por ter bom comportamento, o juiz decidiu pela soltura, mesmo havendo um pedido da promotora do caso para um segundo exame criminológico. Ele foi liberado e voltou a matar. Ato contínuo e tardio, dia 15 de abril de 2010, o Ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, defendeu a realização obrigatória de exames criminológicos com avaliação ampla da capacidade para convivência social, antes da soltura de presos que apresentem distúrbios de comportamento, evitando riscos para a segurança da sociedade.

A psiquiatra forense Hilda Morana foi a Brasília em 2004 tentar convencer deputados a criar prisões especiais para psicopatas. Conseguiu fazer a ideia virar um projeto de lei, que não foi aprovado. Parece que se faz necessária a comoção nacional diante de um novo crime que poderia ter sido evitado para que se force o endurecimento da lei.

As nações que fazem o diagnóstico dos marginais reclusos têm a reincidência dos criminosos diminuída em dois terços, uma vez que mantêm mais psicopatas longe das ruas.

Se tivesse havido a aplicação de algum sistema de segurança, com exames e até pulseiras eletrônicas, após a soltura desses delinquentes, quem sabe, teriam sido evitadas novas vítimas.

Apesar de a origem da palavra psicopatia vir do grego (psyche = mente e pathos = doença) ela não é considerada uma doença mental. O Ministro da Justiça parece saber que os psicopatas não são loucos e, portanto, imputáveis, pois essas pessoas não apresentam nenhum sofrimento mental, nem sofrem de alucinações ou qualquer tipo de desorientação.

Os psicopatas sabem o que estão fazendo, têm ampla consciência dos atos que praticam e não sentem nenhuma culpa ou remorso por nenhuma maldade feita. Eles sabem distinguir as diversas nuances da realidade, sabem o que é certo e o que é errado, ou que é bom e ruim, sabem reconhecer a lei e, se a transgridem, é pelo simples prazer de fazê-lo: é de sua natureza.

A experiência do judiciário revela também que psicopatas são reincidentes, e devem ficar reclusos para sempre, para a segurança da sociedade, a despeito das leis brasileiras que não permitem que alguém cumpra mais de trinta anos de reclusão. Muitos psicopatas dizem de forma desafiadora, despudorada e escancarada: "se me soltar, volto a matar, volto a estuprar". Perversa, portanto, é a lei que quer tratar os diferentes de forma igual aos demais e que deixa a sociedade desprotegida. Parece que passou da hora de se rever a lei para crimes hediondos. Da psicopatia não se pode esperar cura, redenção ou reabilitação social.

O Ministro da Justiça reconhece que as pulseiras eletrônicas também não resolvem o problema, mas podem ser uma ferramenta importante na fase de reintegração (que não deveria existir) e liberdade condicional. Preso novamente, Admar de Jesus, morreu na prisão em condições pouco esclarecedoras. Possivelmente foi punido pela lei dos presos, que abominam pedófilos e estupradores. Lá a lei é dura e invariavelmente é aplicada.

Enfim, a psicopatia cotidiana está aí, está aqui, ao nosso redor, e é muitas vezes imperceptível e passa-se a conviver com ela. Disfarçados, os psicopatas vivem suas vidas quer como cândidos religiosos, bons políticos, quer como amantes encantadores e amigos queridos, entretanto simultaneamente arruínam emocional, física ou financeiramente os incautos que a eles se associam, profissional ou pessoalmente.

Existem múltiplas teorias e explicações acerca da gênese da psicopatia, incluindo aquelas sobre as quais nós, psicanalistas, sabemos tão bem discorrer e que dizem respeito às questões do romance familiar, o nome do pai e o meio cultural, mas, em tempos de francos avanços nos estudos genéticos, não podemos ignorar outras contribuições inclusive as que apontam alterações do sistema límbico, área responsável pelas emoções justificando a racionalização e a frieza desses indivíduos. Para os neurologistas, a organização e sinapses do cérebro de um psicopata são estruturalmente diferentes dos de uma pessoa normal. No ano 2000, dois neurocientistas, o neuropsiquiatra Ricardo de Oliveira-Souza e o neurologista Jorge Moll Neto, identificaram, através de ressonância magnética, as partes do cérebro ativadas quando as pessoas fazem julgamentos morais.

A maioria dos voluntários ativou uma área chamada Brodmann 10 ao responder às perguntas. Esses mesmos pesquisadores, cinco anos depois, repetiram o experimento com pessoas diagnosticadas como psicopatas e verificaram que elas ativavam menos essa área cerebral, ratificando que os sujeitos com transtornos dessa natureza são incompetentes para sentir o que é certo e o que é errado.

Do nosso lado, verificamos, como psicanalistas, que a lei paterna, ou o Nome-do-pai, dá consistência simbólica à linguagem e tem como função inaugurar o social através da separação mãe-filho, o que favorece a entrada do sujeito no mundo das representações simbólicas, ou seja, a criança vai ter que colocar alguma coisa no lugar da ausência da mãe, fazendo articulações e substituições de ordem simbólica. Na psicopatia, o que falha não é o pai simbólico nem o pai imaginário, mas o pai real. Nome-do-Pai é o não fundante, o primeiro, o inicial, é o pai que diz não. O pai real é, por conseguinte, este que diz não para permitir que exista o nome.

A perversão é a maneira como um sujeito, na sua relação com o outro, recusa a impossibilidade de um gozo infinito e completo. Considerando que o discurso do pai é aquele que organiza o Édipo na constituição do supereu edípico, e o discurso do mestre é o que organiza o Édipo na constituição do supereu cultural, percebemos que o psicopata não faz a passagem do discurso do pai para o discurso do mestre, que parecem contraditórios e requerem dele uma escolha: um ou outro. E, se na psicopatia o que falha é o supereu cultural, a primeira resposta deve ser, portanto, institucional. A razão específica disso é que as instituições, assim como as psicoterapias têm um projeto bem definido, que é o ideal de normalização e que não tem nada em comum com a psicanálise que praticamos na nossa clínica, que não quer normalizar ninguém.

No final de uma terapia, espera-se que haja uma mudança do quadro patológico. No final de uma análise, espera-se que o sujeito possa perceber, no seu sofrimento, a parte de gozo que o compromete. O que muda não é o sintoma, nem tampouco é o sofrimento, mas a posição subjetiva, e isso vai na contramão da psicoterapia. Assim, conclui-se que quem tem algo a fazer nas instituições é a psicanálise como uma teoria e forma de refletir e entender os processos, e não os psicanalistas, como bem apregoa Jean-Jacques Rassial. Definitivamente, não existe uma resposta psicanalítica para os psicopatas, ela só existe para um pedido daquele que se dirige a um psicanalista. O tratamento para a psicopatia, se é que existe, é de ordem social e, portanto, não é terapêutico e, sim, educativo.

A psicanálise não é capaz de modificar a natureza humana, mas talvez possa revelar possibilidades para essas inclinações pouco nobres.

Banalizar a violência é, de alguma sorte, preservá-la ativa, diluindo simbolicamente seus efeitos daninhos e de alguma forma não se comprometendo com suas manifestações. Não podemos nos esconder em frases feitas: "violência é da natureza do homem" e sucumbirmos a sua virulência.

Vale a pena lembrar Freud, que nos diz que a violência não é resultado da construção social, mas é fundante: existimos como grupo social a partir do assassinato do pai da horda primitiva. Existimos e nos organizamos a partir de um ato violento. Violento, é verdade, mas também justo e necessário, pois deu um basta ao gozo ilimitado do pai, criando um código de ética que gravita em torno da culpa e no qual ficou estabelecido também que matar não era mais legítimo ou permitido. Violência e poder estão no DNA da lei fundante da civilização.

A cultura terá que se haver com essas questões. Na atual sociedade, na qual há uma busca da satisfação a qualquer preço e o ser sucumbe ao ter, percebemos uma grande valorização da satisfação da pulsão, favorecendo um gozo sem limite que impede uma genuína relação afetiva com o objeto e que significa um crescente desligamento dos valores éticos e morais.

Os psicanalistas não têm fórmulas mágicas ou saídas. Em um momento em que a sociedade busca nova ordem de valores, talvez a psicanálise possa colaborar com orientações por ser capaz de explicar a subjetividade e o não-todo-racional que compõem o sujeito.

Talvez os psicanalistas tenham algo a dizer e dividir suas reflexões com as demais áreas do saber, exercitando a sua dimensão antropológica, buscando possibilidades de melhor compreender os laços sociais em uma interlocução interdisciplinar com educadores, filósofos, antropólogos, sociólogos, assistentes sociais, profissionais do Direito, cientistas políticos e outros mais, inclusive com os profissionais do mundo financeiro, pois o poder desejado pelos psicopatas tem importante interface com a economia. Mas lembremos: certamente aqui não se trata de psicanálise clínica. Por outro lado, existem perversões e perversões, e havemos de considerar essa psicopatia do cotidiano, essa perversão comum, e reconhecer que ela diz respeito em graus diversos a qualquer um.

Propomos uma nova distribuição dos papéis dentro de uma nova responsabilidade do sujeito, poderíamos dizer ainda, responsabilidade pelo destino do coletivo. Parece que a única possibilidade de produzir sujeitos capazes de identificar o que devem ao coletivo é a condição de que antes tenham eles próprios sido introduzidos pelo coletivo à condição humana via educação.

Uma coisa é certa, é preciso falar dessa violência que impera no cotidiano, e até, quem sabe, elaborar a violência que nos funda, e isso talvez possa ser feito nos tornando responsáveis por um caminho simbólico para a violência que habita em cada sujeito. Freud, para ilustrar isso em 1930, no seu texto Mal-estar na civilização, cita o poeta Heine:

Minha disposição é a mais pacífica. Os meus desejos são: uma humilde cabana com um teto de palha, mas boa cama, boa comida, o leite e a manteiga mais frescos, flores em minha janela e algumas belas árvores em frente à minha porta; e, se Deus quiser tornar completa a minha felicidade, me concederá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos enforcados nessas árvores. Antes da morte deles, eu, tocado em meu coração, lhes perdoarei todo o mal que em vida me fizeram. Deve-se, é verdade, perdoar os inimigos - mas não antes de terem sido enforcados.

Encerramos fazendo nossas as palavras de Bion em uma entrevista de 1992: "leva-se um longo tempo para que alguém saiba o pouco que sabe e um tempo mais longo ainda para que esse alguém saiba o muito que é saber sobre esse tão pouco".

Construamos juntos um pouco desse saber.

 

 

Endereço para correspondência
Praça Tobias Barreto 510/1212 - Bairro São José
49015-130- Aracaju/SE
Fone: (79)3214-1948
E-mail: deborah@infonet.com.br

Recebido: 31/05/2010
Aprovado: 14/06/2010

 

 

1 Discurso proferido na abertura do XVIII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, dia 20 de maio de 2010 no Rio de Janeiro.
2 Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise para o Biênio 2008-2010. Editora da Revista Estudos de Psicanálise. Doutoranda em Ciências da Saúde, curso do Núcleo de Pós-graduação em Medicina da Universidade Federal de Sergipe.

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