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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.33 Belo Horizonte jul. 2010

 

 

Mídia e o espelho da masculinidade?

 

The media and the mirror of masculinity?

 

 

Julio César Diniz Hoenisch I, 1; Carlos da Silva Cirino II,2

I Universidade Estadual de Feira de Santana

IIUniversidade Tiradentes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata dos resultados parciais de pesquisa em andamento relativa à denominada "crise da masculinidade" contemporânea, realizando uma análise de como esta é retratada na mídia. A análise se utiliza dos operadores conceituais da Psicanálise e ciências sociais. Diversas frentes da mídia e ciências humanas advogam que na contemporaneidade, "o" homem passa por uma forte crise de gênero e identidade, fundamentalmente em virtude da mudança do papel da mulher no mercado de trabalho e suas novas performances nos relacionamentos. Este trabalho objetivou analisar as entrevistas apresentadas em uma revista de grande circulação nacional e realizar uma reflexão problematizada sobre a masculinidade para a teoria psicanalítica, sobretudo a partir das contribuições de Jacques Lacan e das teorias de gênero. Os resultados apresentados nesta primeira etapa são oriundos de pesquisa documental, tendo como fonte artigos referentes à masculinidade apresentados na revista Veja de agosto de 2003 a agosto de 2009. O corpo teórico de análise utilizado para tal remete à Psicanálise, teorias de gênero e Análise do Discurso. Os resultados indicam que a masculinidade como conceito na mídia retrata um homem universal, a-histórico, branco, heterossexual, membro de uma classe social definida. Também se observa o lugar complexo que o conceito de masculinidade ocupa na teoria psicanalítica, muitas vezes tomado como princípio natural e base constituinte do Outro do homem -; a mulher, o homossexual, o negro e outras subjetividades divergentes, ora vistas como subalternas, ora como incompletas.

Palavras-chave: Crise masculina, Identidade, Cultura contemporânea, Mídia, Subjetividade, Psicanálise.


ABSTRACT

This article deals with the partial results of a current research on the "crisis of masculinity" in contemporary society, analyzing how the media expose it. The analyses utilizes the psychoanalysis and social sciences operating concepts. Under different aspects, the media and human sciences argue that in contemporary times, "the" man undergoes a strong crisis of gender and identity, primarily due to the changing role of women in the labor market and their new roles in relationships. This study focused not only on analyzing the interviews presented in a magazine of wide national circulation but also on reflecting about the masculinity under the psychoanalytic theory, especially from the contributions of Jacques Lacan and the gender theories. The results presented in this first part came from a documentary research, whose sources were the articles regarding masculinity presented in Veja magazine, from August 2003 to August 2009. The analysis theoretical framework used as reference comes from the psychoanalysis, gender theories and discourse analysis. The results indicate that masculinity as a concept in the media shows a universal, without timeline, white, heterosexual man, member of a defined social class. It also shows the complex place that the concept of masculinity occupies in the psychoanalytic theory, often taken as the base and natural principle of another man - the woman, homosexual, black and other divergent subjectivities, sometimes seen as menial and sometimes as incomplete.

Keywords: Man crisis, Identity, Contemporary culture, Media, Subjectivity, Psychoanalysis.


 

 

Então não és aquele que decifra qualquer enigma?
Tirésias in "Édipo Rei"

 

A imagem, o contemporâneo, o sujeito

Podemos afirmar que os verdadeiros regimes do mundo contemporâneo são marcados por diferentes ordenamentos semióticos, imperativos existenciais e, sobretudo, por uma notável inflação das dimensões imaginárias dos sujeitos, imaginário esse regido pela lógica do espetáculo.

O espetáculo toma forma de diversas maneiras, mas parece ser na imagem e em ser visto, sobretudo através da mídia, que as possibilidades de ser ostentam maior importância (LASCH, 1983). A mídia, articulada ao primado da imagem e princípios capitalistas insidiosos, convoca os sujeitos a identificações com determinadas ideias, conceitos e políticas de existência. Através dos meios de comunicação, opiniões são apresentadas como retratos da realidade, quando de fato mais produzem essa realidade do que a retratam. O papel atual das mídias, tanto impressa quanto imagética, trata de veicular realidades em parte produzidas por elas mesmas, não sendo, portanto, o "espelho" da sociedade, mas elemento criador dessa própria sociedade.

Ao termos a imagem como primado, as identidades dos sujeitos serão fortemente afetadas, tendo em vista que a segunda é eminentemente constituída a partir da primeira. Tal compreensão da imagem como precursora do "eu" é resultado da teorização sobre a travessia do Estádio do Espelho, proposta por Jacques Lacan (1998). Em outras palavras, em determinado momento da estruturação da vida psíquica, nos identificamos com uma imagem especular total que nos é apresentada pelo olhar do Outro, sem que, todavia, a experiência de organização corporal corresponda a esse todo bem acabado. Entretanto, a apresentação dessa imagem nos oferece uma referência de ser, uma referência de "eu", importante e fundamental para a constituição subjetiva. Nesse momento, a Psicanálise considera que o eu como tal está em grande parte fundado, constituindo parâmetros de referência de si para o sujeito. Essa referência está alienada, pois resulta do olhar do Outro, que nos indica quem somos.

Nesse momento mítico, quando supomos que "somos", estaria constituída a noção de identidade; portanto, daí a importância e o risco para o sujeito em crer que é o que "parece" ser.

A identidade ou identidades, mesmo compreendida como múltipla, será uma formação imaginária e ilusória de perenidade, ao passo que o que temos, em verdade, é processualidade. Não há fixidez na constituição da subjetividade, mas sim processo permanente de constituição e desconstituição de sentidos e interpretações sobre nós mesmos e sobre o mundo. Daí o risco de os sujeitos, como temos presenciado no contemporâneo, serem interpelados pela crença de que o eu é soberano e, sobretudo, imagético: supor ser o que os outros veem e nos nomeiam. Esse processo de captura dos sujeitos pelo primado da imagem não é novo, mas certamente atinge níveis extraordinários na contemporaneidade ocidental, produzindo sociedades com egos inflados e, portanto, de natureza narcísica.

Compreendemos, portanto, que a instituição de modos de ser tomados como ideais atinge tanto os homens quanto as mulheres e todo o corpo social. Em maior ou menor medida, os sujeitos são interpelados por essa convocação midiática, que obviamente não afeta a todos da mesma maneira. A mulher é convocada a partir de determinados signos existenciais;, os homens de outros. Os destinatários do apelo midiático, formador de demandas de consumo -; em que agora a identidade é mais um artigo a ser consumido -, precisam ser compreendidos como targets publicitários, logo, as estratégias são variadas e pensadas em termos de a quem atingir, como e para que finalidade. A produção de determinadas feminilidades produz anseios específicos quanto à imagem da mulher ideal, passando pelo corpo, postura no jogo amoroso, no mercado de trabalho e -; sobretudo -; nos produtos a serem consumidos para que se aproximem desse ideal. O ideal nesse caso trata-se do produzido pela cultura contemporânea, calcado em um estereótipo de mulher branca, magra e preferencialmente, "sem idade" definida. Importantíssimo ainda destacar que o ideal na atualidade é tido como um projeto pessoal, uma questão de empenho dos sujeitos, no melhor estilo self-made-man. Em outras palavras, tudo é supostamente possível, se o sujeito quiser de verdade.

O corpo ideal está ao alcance das mãos de qualquer um, desde que se trabalhe para tanto. A lógica individualista e superinflada de imaginário traz essa falsa lógica de que é possível abolir a falta e de que vivemos todos em igualdade de condições para atingir os objetivos propostos pelo capitalismo discreto - mas triunfante -; que testemunhamos. Logo, entre as constituições de identidades possíveis e a formação ilusória de conceitos de si, a masculinidade também é ofertada como um produto no qual se distingue o que é um homem ou como esse homem deveria ser. Em recente revisão desenvolvida por nós, constatamos que o homem que figura nos informes publicitários é jovem, branco, bem-sucedido e de classe social indefinida, enfim, uma abstração (CABEDA; HOENISCH, 2009).

Diante de todas essas complexas problemáticas, cabem questões a serem problematizadas: que discursos a mídia apresenta, eliciando ordenamentos subjetivos? Dimensões como classe social e etnia são retratadas nessa apresentação midiática ou o homem retratado é um universal a-histórico?

Essas questões relevantes do ponto de vista da compreensão da organização da subjetividade masculina apresentam poucas pesquisas, sobretudo no Brasil. Estudar a masculinidade é um advento recente nas ciências humanas, remontando à década de 60 e 70, quando, segundo alguns autores, estes estudos têm os homens gays como sujeitos de pesquisa inicialmente. A proposição de que a mulher não nasce mulher, mas sim "torna-se", localiza a condição da mulher como altamente problematizável e, por conseguinte, também desloca o lugar "natural" do homem desse estatuto. Inaugura-se assim um campo de investigações sobre a construção social do homem, da masculinidade e um incremento da discussão conceitual de gênero.

A dimensão política das investigações feministas alinha os gêneros a uma situação não somente relacional, mas de desnaturalização das identidades feminina e masculina, inclusive superando a dicotomia homem-mulher na medida em que, se existem muitas formas de ser mulher -; elemento importante do ponto de vista analítico -; também cabe ao homem o mesmo princípio. O homem universal e a-histórico é não somente uma pura abstração, mas se apresenta como um dispositivo teórico mais propenso a estabelecer equívocos do que servir de "espelho" do homem. Ao contrário do proposto pelas abordagens substancialistas, a masculinidade não só é efeito de complexas construções culturais como também se trata de uma construção frágil, portanto bastante distante de uma configuração de significados fixos ou naturais.

A temática da construção da masculinidade entra um pouco tardiamente na teorização e pesquisa de gênero por ter persistido durante tempo considerável a ideia de que o homem está "posto" como identidade, quase como uma condição naturalmente dada. Essa suposição de naturalidade provém da perspectiva da identidade masculina substancialista, usualmente associada ao sexo biológico e às teorias fisiológicas, em que a diferença hormonal seria por si só esclarecedora do ser do homem.

Há consenso entre os pesquisadores de que a obra inaugural dos estudos da masculinidade é o livro Masculinitys, de R.W. Connel, publicado em 1995, no qual encontramos a convergência de princípios da Psicanálise e das Ciências Sociais na desnaturalização da condição masculina e formação da "identidade" do homem. Ainda que outros estudos tenham se colocado anteriormente como investigando segmentos masculinos a partir do conceito de gênero, provenientes dos estudos feministas, a obra de Connel é fundamental por ter articulado ideias e achados de diversos vértices das Ciências Sociais (CARVALHO FILHO, 2008).

Diante dessa perspectiva inovadora na forma de pesquisar e compreender os significados de ser homem, descortinam-se, como campo de investigação, os dispositivos culturais e discursivos que as culturas apresentam como signos da masculinidade, feminilidade e papéis de gênero. Portanto, o homem e a mulher são efeitos semióticos de seu tempo, da dimensão sócio-histórica, de ordenamentos jurídicos e antropológicos. Ao pesquisar a mídia, grande outro dos sujeitos humanos, encontramos nela o "tesouro dos significantes", que oferecem coordenadas aos sujeitos, que desde sua ontologia, são efeitos do olhar dessa alteridade fundadora.

Por tesouro dos significantes, nos referimos à perspectiva ontológica proposta pelo psicanalista Jacques Lacan (1998), que produziu interessantes perspectivas clínicas; ele é o autor de um sistema de pensamento que revolucionou a Psicanálise. Em sua construção teórica, o surgimento do sujeito se dá no encontro com a linguagem, aqui entendida como um sistema anterior ao advento de qualquer subjetividade. Ao nascer, o animal humano ainda não "é", só será a partir de sua entrada no reino da linguagem; essa operação de ingresso se dará a partir do olhar da mãe -; olhar aqui tomado como metáfora. Será então o infans incluído na rede, nomeado, dito e acolhido como um sujeito. Essa operação transforma quem exerce a função materna em Outro do sujeito, alteridade atemporal, que se construirá como uma suposição do sujeito, sede das fantasias e atribuições de aspirações, aspirações às quais o sujeito tentará atender, em sua cena inconsciente, por todo seu percurso existencial. O tesouro dos significantes é parte da ideia de que esse Outro detém as respostas para tudo, é capaz de tudo saber, de fornecer todos os sentidos.

É a essa representação poderosa que o sujeito humano dirigirá seus anseios, pedidos de ajuda, depositando seus ideais e perspectiva de futuro. A mídia -; primordialmente a imagética, mas também em grande escala a impressa -; fornecerá então a encarnação imaginária do Outro, como se as repostas de quem se é o ou o que vai se fazer lá residisse. Não que não houvesse antes na humanidade outras encarnações para o Outro. A cultura é a encarnação do Outro por excelência, sobretudo por não podermos dissociar cultura e linguagem, tendo em vista que ambas são ordenadoras da produção de sentidos e são os sentidos que nos orientam no labirinto do existir (BERNARDES; HOENISCH, 2003). Como devemos nos identificar, o que somos, o valor e poder que detemos é sempre um jogo relacional, a partir de um conjunto de significados e das posições que habitamos na cultura. Homem, mulher, branco, negro, sempre se tratará de um jogo móvel. Mais do que papéis, lugares simbólicos e políticos que habitamos do ponto de vista linguístico-cultural. Só "somos" na interpretação e a interpretação advém do olhar do Outro, dessa entidade mítica e, no fim das contas, inexistente, como o final do percurso analítico demonstra.

Os critérios de final de análise são temática controversa no meio psicanalítico, tendo Freud escrito um artigo específico sobre isso, denominado "Análise terminável e interminável". Em linhas gerais, a partir do referencial lacaniano, um dos elementos que compõem o final do percurso analítico é a constatação de que não há grande outro, reduzindo-se significativamente a alienação do sujeito e produzindo uma posição subjetiva diferente da do início da análise. As verdades que se buscam são em parte produzidas pelo próprio sujeito que as julga descobrir, trazendo, portanto, um grande grau de implicação com os acontecimentos da vida e nos destinos da neurose.

O sujeito se depara, portanto, com um conjunto de significantes e sentidos que o colocam em determinadas posições de sujeito, que evocam estratégias específicas em um jogo relacional de sentidos e significados. Essa localização no confronto de significantes interpeladores das subjetividades produz uma lógica relativa de nossas posições como sujeitos falantes e políticos. O conceito de significante é originalmente desenvolvido por Ferdinand de Saussure, em um livro clássico denominado "Curso de Linguística Geral", no qual o conceito de significante é apresentado como "imagem acústica", colado ao significado de uma determinada palavra, havendo ainda a primazia do significado sobre o significante, formando ambos o signo linguístico. Lacan realizará uma reversão na construção de seu conceito de significante, postulando a primazia deste sobre o significado. Portanto, a produção de significado é móvel, relativa e plural em relação ao significante, pois só sabemos o significado de uma sentença ao final de sua enunciação. O significante será ainda a matéria da qual o sujeito é constituído e falado como tal, estando, portanto, emaranhado permanentemente nos significantes.

Todavia, o discurso do capitalismo contemporâneo parece ter homogeneizado as diferenças e tem apresentado sistematicamente modelos coercitivos de subjetividades para corpos, prazeres e formas de ser. A constituição da subjetividade é polifônica e efeito do cruzamento do corpo biológico com a palavra, os signos linguísticos e com a interpretação. A Psicanálise e a Análise do Discurso consideram impossível ao sujeito humano não interpretar e, ao interpretar, ao tomar o Outro como espelho, o reflexo obtido traz fatalmente as coordenadas do que se é ou do que deve ser. Por isso o papel tão relevante da mídia como interpeladora do desejo, como produtora de uma política desejante, instigando os sujeitos a desejar de uma forma determinada, de uma maneira pré-estabelecida.

A análise dos discursos de apresentação das masculinidades na mídia permite-nos refletir sobre que ordenamentos estão sendo apresentados aos homens como subjetividades desejáveis ou possíveis, o que pode, em diversos momentos, mascarar diferenças substanciais sobre o homem retratado e o homem que vivencia a masculinidade no contemporâneo.

 

Mídia, consumo e formação de identidades Prêt-à-Porter

O papel da mídia na contemporaneidade tem se apresentado como um elemento de construção cultural, subjetiva e política de importância considerável. Os meios de comunicação de massa não se limitam a espelhar o mundo e a realidade, como já nos referimos. Ao se colocar como espelho da realidade, tanto a mídia impressa quanto escrita interpelam os sujeitos destinatários, convocando-os a ocupar determinadas performances sociais ou incorporar identidades preestabelecidas. A mídia contemporânea nos sugere modos de "ser" tidos como ideais, sobretudo certas identidades apresentadas como aquelas que conduzem ao sucesso nos moldes da sociedade de consumo: corpos magros, ricos, felizes.

Logo, a mídia hoje não apresenta concorrência em termos de hegemonia de normatização de formas de ser. Somos convocados a nos depararmos com um conjunto enorme de signos e formações discursivas que têm efeitos subjetivos importantes. Segundo Bucci e Kehl (2004), ao referir-se à televisão especialmente, a mídia engendra subjetividades, porque houve um triunfo da lógica de mercado como nunca visto. Tudo é mercadoria: o corpo, a imagem, as identidades. Sempre calcada no marketing pessoal, a vida contemporânea é apresentada como uma busca sem fim pelo status de celebridade, dos quinze minutos de fama, colocados como direito de todo indivíduo. Nessa busca, ordenada, portanto, a partir do primado da imagem, o ser homem, mulher ou sujeito na partilha dos sexos parece também surgir como eminentemente calcadas no "sujeito do consumo", que consome e é feito para consumir. Beleza, corpo, roupas, carros, tudo parece traduzir o status econômico de um sujeito, quando se é o que se possui. Portanto, estamos diante de uma inflação da dimensão imaginária.

O conceito de dimensão imaginária do eu remete-se ao postulado por Jacques Lacan como um dos registros fundantes da subjetividade, que tem seu momento maior no denominado "estágio do espelho". Segundo esse autor, neste momento a criança se depara com uma imagem de unidade, refletida no olhar do outro, que usualmente é a mãe. Encontra uma imagem de si completa e, na maior parte das vezes, jubilosa. O olhar do outro nos funda e, ao nos identificarmos com essa imagem, somos. Trata-se aqui dos fundamentos do eu (je), dos rudimentos de uma conformação egoica frágil, pois alienada. A alienação está em somente "ser" diante do outro e a partir do que aquele outro julga que somos. Trata-se de um momento importante, estruturador e fundamental para a constituição da imagem do eu e da identidade. A identidade é por princípio uma imagem, uma formação imaginária, que norteia as trilhas e percursos do sujeito. Mas não traduz a organização total da subjetividade, pois, ainda acompanhando Lacan, somos constituídos por três registros que se afetam mutuamente: real, simbólico e imaginário.

Nenhum dos registros pode ser tomado como separado um dos outros ou prioritário, pois se organizam em um processo complexo de afetação mútua. Todavia, os riscos de uma inflação imaginária, de tomar o eu (je) como Eu (moi) resulta na organização de uma subjetividade errática e frágil do ponto de vista do simbólico.

Encontraremos na formação da subjetividade contemporânea justamente essa pobreza simbólica, a busca de se balizar como sujeito a partir da imagem, do real do corpo biológico. Ao tomarmos a imagem pela totalidade, estamos mergulhados no registro máximo da alienação, mas tomados de convicção de que se trata de nossas escolhas, pois esse sujeito da imagem é eminentemente narcísico, portanto, capturado pela imagem de si e consideravelmente fechado à alteridade que eventualmente venha a não confirmar esse primado imagético.

Se essa configuração contemporânea está assim colocada, é de vital importância lembrar que as diferentes mídias veiculam imagens, produzem concepções imagéticas, na forma como esse sujeito, afetado pelas reordenações que o capitalismo contemporâneo e a sociedade do efêmero incorporam. As mídias enaltecem o império das imagens em níveis nunca antes vistos, sobretudo em virtude de a sociedade hoje ser mais do que nunca a sociedade do espetáculo, na qual a realidade passa a ser a construção dos reality shows, fenômeno marcante dos anos 2000, como nos apontam Bucci e Kehl (2004). Trata-se de um interessante paradoxo: buscam-se nos veículos de comunicação de massa - eminentemente ficcionais - os fundamentos da realidade; uma busca tautológica, portanto. Ao apresentar, então, as identidades, aqui tomadas como dimensão imaginária dos sujeitos, constituídora da subjetividade (sem dúvida, um vértice importante dessa), as mídias produzem imbricados processos identificatórios, fornecendo as coordenadas para que os sujeitos se reconheçam e se posicionem, inclusive no campo da divisão das diferenças sexuais.

A mulher, o homem, a criança, as diferentes figuras sociais do século XXI passam pela depuração midiática, que institui comportamentos e aponta como o sujeito, para ser considerado pertencente a um dos sexos, deve se vestir, comportar, agir, amar e fazer sexo. Por se tratar de veículos de comunicação de massa, as mídias, propagandas e apelos de marketing fatalmente apresentam formas hegemônicas dessas subjetividades, portanto, identidades prêt-à-porter, colocadas como roupas a serem consumidas. Exatamente como nas roupas de griffe, que se colocam como particularmente constituídas para uma pessoa com estilo, diversas pessoas vestem a mesma roupa singular e usam o mesmo perfume "único", logo tendo todas o mesmo estilo.

Observamos, portanto, que escapar da lógica de mercado e do capitalismo mundial integrado não é uma tarefa simples. A constituição das identidades e das subjetividades é consideravelmente afetada por esses movimentos coletivos das mídias, que reduzem o desejo à vontade de consumir, portanto, justamente, calando o desejo (BUCCI; KEHL, 2004).

Triunfa, portanto, o sujeito da necessidade, não o sujeito do desejo. E a necessidade é resolvida, nas miríades da contemporaneidade, por objetos de consumo: corpos, celulares, etc. A falta, elemento importante e intimamente ligado ao funcionamento do desejo, é ficticiamente obturada com imagens, instrumentos, rótulos. A masculinidade e a feminilidade seriam, então, nada mais do que rótulos ofertados no balcão do contemporâneo? Essa discussão constitui-se tema bastante controverso e espinhoso. É fato que nascer biologicamente homem (xy) ou biologicamente mulher (xx), portando, dessa forma, determinados "documentos sexuais", é inegável. Entretanto, como os estudos feministas muito bem problematizam, ser macho ou fêmea não é ser homem ou mulher, justamente porque sobre o real do corpo repousa um conjunto infinito de insígnias da masculinidade e da feminilidade, determinando os destinos políticos e sociais dos sujeitos, incitando condutas e pensamentos possíveis e outros tantos interditados.

As interdições e formações imaginárias concernentes à divisão dos sexos foram altamente questionadas com o advento do feminismo, desde a O segundo sexo, de Simone de Beauvoir (1980), de quem provém a máxima amplamente difundida: "a mulher não nasce mulher, torna-se" (p.183). É importante destacar que Freud já havia colocado essa mesma questão anos antes, ao discorrer sobre o desejo feminino e sua subjetivação. Em certa medida, toda mulher é inventada, pois não haveria um registro único da mulher, um todo da mulher ou "A" mulher, como coloca Lacan. Desde a perspectiva psicanalítica, a questão do tornar-se mulher foi bem aceita e discutida, deixando a reflexão de como um sujeito se torna homem intocada. Quase se coloca a masculinidade como um dado natural, um suposto lógico inquestionável. Muito recentemente, a posição de masculinidade "natural" começa a ser relativizada. De que homem se fala? Como os homens se articulam? Constroem suas representações de masculinidades todos da mesma forma? Antes de atingir os nichos psicanalíticos, essas perguntas brotam das questões colocadas aos homens pelos estudos feministas. Surgem aí os denominados "estudos da masculinidade" ou "masculinistas".

 

As origens dos estudos da masculinidade

As investigações concernentes à masculinidade, como o homem se identifica como tal, como se produzem suas maneiras de ser, suas subjetividades, são marcadamente mais tardias do que estudos feministas. A condição da mulher, as armadilhas construídas para submissão do feminino e sua suposta inferioridade natural foram amplamente problematizadas e investigadas já a partir da década de 50. Em contrapartida, os estudos da masculinidade, ou Estudos do Homem, iniciam-se na década de sessenta, principalmente nos Estados Unidos. Compreende-se que o surgimento dos men´s studies é reflexo da própria desnaturalização da condição da mulher, que, ao desalojar a feminilidade de seus mitos, produz também uma leitura sócio-histórica do fazer-se homem, conforme nos indica Cecchetto (2004).

As políticas de submissão da mulher, muitas vezes calcadas em uma visão substancialista, foi consideravelmente desconstruída pelos estudos feministas, evidenciando mais uma lógica patriarcal na produção de subjetividades femininas do que uma suposta natureza da mulher, frequentemente colocada ao lado do registro da fragilidade, incapacidade e debilidade física. Ao se colocar em xeque esses registros das subjetividades femininas, as masculinidades também serão questionadas.

No processo de afastamento dos mitos que circundavam a condição feminina, a questão de que a mulher e o homem como sujeitos transcendiam a corporalidade biológica acabou por proporcionar as condições de possibilidade para o surgimento do conceito de gênero. O gênero, como categoria analítica, surge exatamente para afastar a condição da mulher de sua biologia, colocando em evidência que as diferenças entre homens e mulheres não é de ordem natural, mas cultural e politicamente produzida. Se a assimetria de gêneros é ordenada em um complexo sistema semiótico, linguístico e cognitivo, será necessário compreender como esse processo se dá e quais seus efeitos nos sujeitos envolvidos.

Seria o homem então forte, provedor e mais resistente às emoções do que a mulher? Ou essa imagem seria também efeito de uma política identitária machista? Esse questionamento propulsiona investigações nas ciências humanas com o intuito de desvendar essa constituição. Que ordenamentos simbólicos fazem de um sujeito um homem, para além da dimensão física? Estabelece-se a partir desse movimento de pesquisa uma desconstrução do modelo oitocentista consagrado de masculinidade: forte, austero, provedor. Essa visão, ainda predominante no imaginário social, estaria desde a década de 70 passando por uma revisão de suas bases substancialistas.

A problematização do referido substancialismo, sobretudo nas pesquisas na área das ciências humanas, foi propulsora da ideia de que o homem tradicional vive um descentramento identitário e uma crise de falta de referenciais. É nesse sentido que vários pesquisadores discorrerão sobre a masculinidade, como Badinter (1993).

 

As políticas de identidade e a produção da subjetividade a partir da pssicanálise

Uma dimensão fundamental na construção dos estudos das masculinidades é a dimensão das políticas de identidade, que já estão colocadas nos estudos feministas e que tomam agora novas matizes nas masculinidades. Os estudos iniciais surgem relacionados às formas não heteronormativas da subjetividade masculina, sobretudo investigações junto a grupos gays e travestis e como se significam e constroem as masculinidades nessas condições identitárias. Em outras palavras, constituir-se como homem implica uma política de negociação de significados sobre a produção de sentidos da masculinidade, do feminino e dos elementos que são considerados pertecentes a um gênero determinado ou não.

O macho, o indivíduo geneticamente XY, não é o homem, posto que denominar-se homem ou mulher é excluir determinados comportamentos e falas do campo da masculinidade -; como no caso dos comportamentos considerados homossexuais. Ao produzir sentidos sobre a nominação de um sujeito homem, mulher ou não homem, estamos diante de uma produção semântica, uma produção de sentidos que permite reconhecer categorias e se somos ou não pertencentes a estas categorias. Em outras palavras, trata-se de apontar como se organiza a questão de gênero ao qual o indivíduo pertence, retratando-se na partilha dos sexos.

Dessa forma, os processos de constituição da subjetividade podem ser considerados como advindos de diferentes esferas. A subjetividade, no presente trabalho, mais do que uma questão de ordem individual, está relacionada a como nos tornamos o que somos (BERNARDES; HOENISCH, 2003). O conceito de subjetividade utilizado por nós advém do campo da Psicanálise, sobretudo a freudo-lacaniana: efeito do encontro do real do corpo com a cultura, denominada aqui como primeira alteridade, Outro do sujeito humano.

A compreensão psicanalítica do sujeito o supõe como efeito do discurso, como uma síntese da cultura que gera um reconhecimento de si mesmo, ainda que esse reconhecimento seja cindido e incompleto. Essa incompletude é descrita por Freud (1929) como a inevitável fratura que a existência dos processos inconscientes imprimem ao ser. Longe da unidade suposta, que tanto fascina o homem da razão - sobretudo após Descartes - o homem seria para a Psicanálise não um ser dos instintos, mas um ser equivocado e inebriado em uma síntese impossível de ser operada pelo Eu. O caráter processual da subjetividade implica dizer que o sujeito é tributário do Outro inevitavelmente e, ao nos reconhecermos no discurso dessa alteridade, nos humanizamos (LACAN, 1998). Segundo Lacan, o advento do eu - que pode ser considerado em termos teóricos a sede da identidade, ainda que de maneira ilusória e incompleta - se dá no estágio do espelho. Considera-se este estágio o momento em que o bebê humano encontra sua imagem completa no espelho, mostrando uma realidade imaginária de unidade, contrária à experiência sensório-motora vivenciada, que é de fragmentação da unidade corporal. Essa identificação funda o eu, o ideal-do-eu e o eu-ideal (ROUDINESCO, 1998).

Esses três conceitos serão fundamentais para os ordenamentos subjetivos futuros, que o eu terá parte considerável no inconsciente e o ideal-do-eu e eu-ideal serão predominantemente inconscientes. Ao alienar-se nessa primeira identificação com uma imagem que não é sua, mas na verdade efeito do olhar do Outro -; que aqui ocupa o lugar de espelho -; funda-se um equívoco fundamental do sujeito, que é supor ser idêntico a si mesmo. Esse idêntico a si dá ao eu a falsa ideia de perenidade, de lógica, de consistência. Enfim, do ponto de vista da ilusão, dá a ideia da existência de uma identidade, articulada ao sentido de "idêntico a si mesmo". Uma idéia de eu soberano.

Essa ideia de identidade oferecerá aos sujeitos um mapa de condução de si dentro dos enlaces identificatórios com os grupos, situações e atos que pareçam indicar a que grupos se pertence ou quem se é. Mesmo do ponto de vista da compreensão de que a identidade é pluriprismática, do ponto de vista psicanalítico, detrás da suposta amarração firme da identidade, o que temos é somente um conjunto de linhas. Essas linhas, como em um novelo, se entrecruzam, sendo cada uma delas fragmentos de identificações produzidas a partir do olhar do Outro, não apresentando a consistência que o sujeito da consciência supõe, mesmo ao se colocar como um sujeito indeciso ou inseguro de si mesmo.

Ao enunciarmos "eu sou", constitui-se aí uma suposição de si. Então, diante do jogo de significados encontrados no campo da cultura, veículo dos significantes do Outro, o sujeito pode ser interpelado pelos sentidos presentes na mídia que oferecem "identidades" e formas de ser preestabelecidas. Ao nos identificarmos com os enunciados mestres presentes no discurso midiático, não o tomamos como externos, mas exatamente como nossos tradutores, ou seja, desvendadores de atributos que reconhecemos como familiares, ainda que esse reconhecimento seja falso.

Por isso a não existência da consciência de sermos convocados pelo apelo da mídia. A própria interpelação traz embutida em si uma característica pseudonatural e familiar. Portanto, sempre se trata de um jogo de política de significados, no qual os diferentes segmentos do espaço público buscam a afirmação de diferentes formas de ser e estar no mundo. Sendo esse um mundo da palavra e do simbólico, sempre se trata de manter ou sustentar políticas de ser e enunciações, engendradoras da subjetividade.

 

Notas metodológicas e análise dos dados

Para análise do material pesquisado, optou-se pelo uso da metodologia documental, apoiando-se em artigos de uma revista de grande circulação nacional. O período de análise das reportagens que tratassem do homem, masculinidade e crise, compreende de agosto de 2003 a agosto de 2009. As reportagens foram coletadas no banco de dados virtuais da revista Veja (na versão virtual não foi disponibilizado o nome dos autores). A revista Veja, além de ser o semanário de maior circulação de seu gênero, também mostra grande importância na formação da opinião pública no Brasil.

Uma vez catalogadas as reportagens, fez-se uso da Análise do Discurso para identificar os enunciados mestres das reportagens, como o homem é apresentado e que sugestões de significação são atreladas a essa apresentação. Os artigos foram selecionados a partir das palavras-chave "homem", "crise" e "masculinidade". Destes, foram selecionados sete artigos ("O triunfo da vaidade", "A intenção é brilhar", "O homem em nova pele", "O sexo oprimido", "Geração canguru", "Acomodados no ninho" e "Daqui eu não saio"), tendo como critério de escolha a abordagem do fenômeno de maneira profunda e apresentando entrevistas de homens que discorriam sobre o tema abordado.

Como os estudos qualitativos não se propõem a generalizações e universalizações por amostragem, mas análises cuidadosas da construção dos fenômenos, não houve preocupação em construir uma mostra significativa do ponto de vista estatítisco. O estudo das entrevistas foi construído com o objetivo de compreender a manifestação de um fenômeno midiático e sua lógica ao apresentar este fenômeno, construindo assim uma rede discursiva, passível de categorização, realizada a partir da Análise do Discurso (AD).

A Análise do Discurso, segundo Orlandi (1999), não se preocupa somente com o conteúdo do discurso, mas como este discurso significa, produz sentido, seu contexto enunciativo, expressando as possíveis afetações junto ao universo de referência dos sujeitos investigados. A mídia não opera em uma mera relação de emissão e resposta, portanto o sujeito leitor não é uma folha em branco a ser docilmente preenchido pelas ideias da mídia. Como já vimos, os dispositivos de cooptação midiáticos, quando ocorrem, são mais sutis e apelam às dimensões de ideais de ser, de Eu Ideal, das dimensões não cognitivas e racionais do sujeito.

A Análise do Discurso, conforme utilizada no presente trabalho, produz um mapa enunciativo, uma configuração de elementos semióticos que podem capturar o observador, levando-o à produção de sentidos extrínsecos à consciência e ao Eu que enuncia. Portanto, os procedimentos analíticos operam não somente com as enunciações produzidas, mas também com o contexto enunciativo, no caso da revista Veja, as imagens, fotografias e links textuais presentes nas reportagens.

 

O homem da mídia: boa aparência, em crise, sem rosto

A produção textual investigada até este momento da pesquisa resultou na construção de categorias analíticas que apontam elementos interessantes tanto por sua presença quanto pela ausência. A produção semiótica das reportagens aponta uma política de identidade unilateral, a universalização de uma suposta crise da masculinidade decorrente das mudanças no conceito de feminilidade. Partidária de uma posição relacional dos gêneros e, portanto, binária, segundo as reportagens da revista, a mudança da mulher desestabiliza o ser do homem. As reportagens analisadas, portanto, postulam a interdependência na diferença dos sexos.

O homem retratado na mídia é múltiplo e, ainda assim, uma abstração histórica. Apesar de as reportagens indicarem um recorte no tempo e no espaço, referindo a crise do masculino como datada no tempo, efeito da evolução do feminismo e das posições da mulher, este homem datado é o homem de classe média, não parecendo haver, nas formações discursivas da revista, espaços para outras subjetividades masculinas.

As versões apresentadas do homem e da masculinidade são curiosamente repletas de ausências: não se indica classe social, idade, cor ou orientação sexual. O homem é "o" e todos são o "um". Chama a atenção também a indicação de que o homem, ingressando em uma posição antes reservada à feminilidade, portanto posição de objeto de desejo, agora também se preocupa com a estética. Assim, as reportagens trazem depoimentos do "novo homem", agora interessado para além do sofrimento por não saber mais quem é (o macho provedor oitocentista), um homem voltado para a beleza e para certo prolongamento da adolescência, nomeado pelas reportagens como "geração canguru".

Os cangurus e os metrossexuais seriam as novas faces do masculino, as novas buscas de uma subjetividade reordenada. Se os cangurus aparecem como homens voltados para uma permanência prolongada na casa dos pais, os metrossexuais, por sua vez, apropriam-se abertamente de elementos considerados como femininos. Daí a profusão de brincos, brilhantes, anéis, depilação, cremes e busca por uma aparência mais jovem e bela.

A preocupação do homem com o corpo não é nova. Sabe-se que a força esteve relacionada ao homem através das culturas assim como a beleza foi considerada atributo feminino. Entretanto, a preocupação dos homens com o corpo seria agora de uma natureza antes reservada à mulher: não basta um corpo forte, é preciso um corpo belo. Daí a profusão de intervenções estéticas voltadas para lipoescultura, injeções de metacrilato no peitoral e bíceps, clareamento nos dentes, botox e afins. O homem, de acordo com as reportagens investigadas, redescobre o corpo, agora sendo necessária, quase que obrigatória, a manutenção da beleza e da juventude, o que sugere certa histericização do homem focada no corpo, fato menos comum mesmo nos casos de histeria masculina. O fator juventude para o homem não apresenta ainda a mesma normatividade que para a mulher. Ao homem ainda é permitido aparentar a idade que tem desde que agora, com um corpo belo. Associada a essa demanda, segundo as reportagens, o homem seria atormentado pelas mesmas questões que a mulher, em escalas menores.

 

Um significante ausente? Classe social, conflito, invisibilidade

A temática da classe social é um atravessamento temático importante para compreendermos a que homem a mídia retrata e que espaços de visibilidade destina aos homens que não se enquadram no modelo desejável de consumidor de classe média. Estariam os homens não pertencentes às classes de consumo privilegiadas nessas apresentações midiáticas? Sofreriam os homens da mesma maneira ou os sujeitos de fora do mercado de consumo se apresentam como masculinidades invisíveis? As reportagens investigadas no presente trabalho indicam uma ausência considerável de diferenças entre os homens, classificando-os todos como homens médios, às voltas com conflitos comuns, independentemente de condições econômicas, cor e nível de escolaridade.

As considerações sobre classe social, capital cultural e outras variáveis relevantes na construção da subjetividade masculina simplesmente ficam de fora na apresentação desse homem na mídia, preocupado com questões de ser pai, marido, homem. Ao obnubilar as diferenças entre os homens, obnubila-se a classe social e o conflito, reduzindo todos à classe de consumidores. Se o homem pobre, negro, morador de uma favela brasileira pode comprar o mesmo produto de barba que o da classe média, estariam os dois, em tese, no mesmo lugar de sujeito: o lugar de comprador.

 

A outra ausência: os homens invisíveis

Estas idéias, em que pese sua atração para explicar como o homem estaria se colocando hoje na sociedade do espetáculo, onde o Eu é o show, continuam todavia insuficientes para a força normativa e homogeneizante apresentada pela revista. Se o homem que comparece nas páginas da revista é um homem preocupado em se manter bonito e em situação confortável economicamente, ao que parece, homens de registros sociais diferentes vivenciam a masculinidade de maneira diferente. O fenômeno "geração canguru" é bastante ilustrativo do risco de erro em trabalharmos com supergeneralizações.

O problema habitacional no Brasil, ainda que se tenha um país de proporções continentais, é dramático. Encontramos uma grave situação de moradia e divisão da terra e meios de produção no país, de forma que nas classes menos favorecidas, desde muito tempo os filhos casam e continuam vivendo junto dos pais, quer seja na mesma casa, quer seja em um terreno contíguo. Logo, o fenômeno de permanência de homens junto às suas famílias pode ser bastante problematizável. Esses homens também podem permanecer junto às suas famílias, mesmo após os quarenta anos. Mas seria esse o desejo deles ou uma condição de contingências? É bastante provável que tenham experiências subjetivas e formas de experimentar a masculinidade bastante distantes das crises ilustradas nas reportagens investigadas.

O homem com menor poder aquisitivo pode ter outras formas de experiências com a corporalidade e expressão do masculino. Da mesma maneira que a mulher, nem todas vivenciando a tão alardeada liberação feminina, nem todos os homens são afetados por uma suposta fragilização de seu papel provedor. O homem pobre, que não consome muito, está à margem da sociedade de consumo, não é um homem entrevistável, nem seus depoimentos serviriam para eliciar e ratificar as novas necessidades de mercado, que surgem imbricadas nas preocupações estéticas e com a construção de novos signos da masculinidade. O homem de fora das formações discursivas das reportagens não é um homem efeito da disciplina do corpo, na verdade, trata-se de um homem silenciado.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Julio César D. Hoenisch
Rua Marques de Monte Santo,
59 - ap. 203
41940-330 - Salvador/BA
Fone: (71)3013-5663
E-mail: cesarhoenisch@gmail.com

Recebido: 31/05/2010
Aprovado: 05/07/2010

 

 

1 Psicólogo, especialista em Saúde Pública/FioCruz, mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), professor visitante e integrante do Núcleo de Estudos da Contemporaneidade da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, Brasil.
2 Psicólogo, mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (2003), Professor da Universidade Tiradentes, Aracaju, Sergipe, Brasil.

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