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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.33 Belo Horizonte jul. 2010

 

 

Nachträglichkeit: leituras sobre o tempo na metapsicologia e na clínica

 

Nachträglichkeit: readings about time in metapsychology and clinic

 

 

Luís Maia;1 Fernando Cézar Bezerra de Andrade2

Sociedade Psicanalítica da Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A noção de tempo, ao longo da história da psicanálise e da constituição da metapsicologia, reflete concepções variadas, primeiramente acerca da dinâmica do trauma, mas também acerca do psiquismo e, neste, particularmente, sobre o inconsciente e sua investigação. Dependendo da perspectiva teórica assumida, desde Freud até seus sucessores, a adoção de uma ou outra dessas concepções implica consequências que, na história da psicanálise, ora a aproximam, ora a distanciam do conhecimento acerca de seu objeto. Neste artigo, resenham-se as análises que Jean Laplanche (2006) e Jacques André (2009) fazem sobre o tempo, a partir do exame da noção de Nachträglichkeit, para realçar uma tese convergente entre ambas: há no só-depois uma tensão permanente que, se metapsicologicamente desconsiderada, aponta para a inconsistência teórica e para o risco de uma hermenêutica, com o desaparecimento do trauma no modelo explicativo do psiquismo. Ambos os autores veem no trauma originário a necessária presença da alteridade inerente a um outro e concordam que a repetição transferencial, ao reabrir esse trauma, cria as condições para a sua elaboração: se o trauma original aconteceu num encontro com outro humano, só um outro encontro poderá reabri-lo.

Palavras-chave: Nachträglichkeit, Só-depois, Metapsicologia, Clínica psicanalítica, Alteridade.


ABSTRACT

Throughout the history of psychoanalysis and the constitution of the psychoanalytical metapsychology, the notion of time reflects many explanations about the trauma’s dynamism and, furthermore, about human psychism, the unconscious and its investigation. From Freud until his successors, depending on the metapsychological perspective taken, there has been theoretical and clinical consequences: psychoanalysis either approaches or distances from the knowledge about its object. In this article, two analysis about time, from de perspective of Nachträglichkeit are presented: Jean Laplanche’s (2006) and Jacques André’s (2009) readings converge to affirm a permanent tension in the Nachträglichkeit. If that tension is metapsychologically neglected there will be a theoretical inconsistence and the risk of a hermeneutic practice, causing the disappearance of trauma in the explanatory model of psyche. Both authors agree about the necessary presence of otherness inherent in the original trauma. According to them, when the repetition in transference reopens that trauma it creates the conditions to its working-through: if the original trauma happened in an encounter with other human, only another meeting can reopen it.

Keywords: Nachträglichkeit, Deffered action, Metapsychology, Psychoanalytic clinic, Otherness.


 

 

Em seu relatório para o “69º Congresso de psicanalistas de língua francesa”, que aconteceu em Paris, sobre o tema do après-coup, Jacques André (2009) relembra que a descoberta do conceito, em 1953, por Lacan, sessenta anos depois das primeiras considerações freudianas, constituiu-se, na verdade, numa redescoberta, ela própria, après-coup. Nos últimos tempos, como se quisesse recuperar o tempo perdido nesse grande silêncio, a comunidade psicanalítica tem se debruçado sobre o tema, na constatação de sua importância tanto teórica quanto clínica.

Com o objetivo de subsidiar essa discussão, resenhamos a problemática através de duas obras: o curso de Jean Laplanche sobre o après-coup, no ano letivo de 1989-90 (LAPLANCHE, 2006), e o referido relatório de Jaques André. Os dois trabalhos se complementam: o primeiro, fazendo uma revisão crítica da evolução do conceito na obra de Freud; o segundo, considerando também a posteridade freudiana e articulando o conceito à clínica.

Sobretudo, entendemos que ambos convergem para o mesmo argumento: já em Freud, até seus sucessores, a concepção psicanalítica de tempo (ou temporalidade), graças à história da metapsicologia e aos diferentes pressupostos epistemológicos que orientam as diversas correntes atuais, sofreu modificações que ecoam tanto na clínica quanto na teoria sobre a natureza e a origem do insconsciente. É, pois, necessário retomar o conceito de Nachträglichkeit para, com ele, reafirmar a importância de entender a temporalidade a partir dum contexto caracterizado pela intersubjetividade, em que os processos psíquicos estão constantemente às voltas com as vicissitudes próprias do (des)encontro com o outro humano - entre elas, algumas intrusivas e desorganizadoras, traumáticas, mais próximas do enigmático (Laplanche) e do imprevisto (André). Entender a temporalidade sem esse contexto, pois, é arriscar-se a rapidamente incorrer seja numa teoria genética que reduz o tempo psíquico a uma sequência cronológica de eventos predeterminados, seja num a-historicismo que identifica tempo e mito (remetendo, em última instância, à negação da importância e da razoável autonomia da experiência individual).

Para ressaltarmos essa convergência, faz-se necessário acompanhar o que cada um dos dois autores afirma sobre a Nachträglichkeit. Inicialmente apresentaremos um resumo da análise que Laplanche faz sobre o conceito, principalmente revisando a obra de Freud (num seminário ainda não traduzido para o português). Em seguida, apresentaremos os elementos essenciais das considerações que Jacques André faz sobre essa noção, particularmente ilustradas por casos que demonstram o ganho da adoção do modelo intersubjetivo para a interpretação da temporalidade na clínica.

Antes, porém, apoiados especialmente no trabalho de Laplanche, chamamos a atenção para uma dificuldade de tradução: na França, Lacan cunhou para nachträglich o termo après-coup, que acabou adotado pela psicanálise francofone. “A unicidade do significante sendo um fio condutor infalível para seguir o fio flutuante dos significados” (LAPLANCHE, 2006, p.32), esta tradução acabou funcionando como um “revelador”, uma vez que o termo, posto “à prova do estrangeiro”, permitiu que o conceito aparecesse. après-coup compartilha com nachträglich duas qualidades: é de uso corrente e guarda consigo a ideia do que sobrevém ao golpe inerente ao trauma. Nesse sentido, a tradução francesa acrescenta algo ao sentido do termo original (LAPLANCHE, 2006, p.27).

Tal não é o caso do português. Nachträglichkeit é palavra cuja densidade semântica não encontra equivalente único em nossa língua. No “Vocabulário da Psicanálise”, de Laplanche e Pontalis, o substantivo Nachträglichkeit e o adjetivo e advérbio nachträglich são traduzidos respectivamente por posterioridade, posterior e posteriormente (1991, p.33); no Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luiz Alberto Hanns, pela expressão latina a posteriori e, numa concessão a uma das traduções de Strachey, por ação diferida (p.80). Aos termos mais próximos da linguagem culta (posterioridade, posterior, posteriormente) e à expressão latina da qual derivam (a posteriori), preferimos a proposta de Magno (2003), só-depois, claramente inspirada na tradução francesa, sugerindo o hífen a transformação da expressão corrente em conceito. Mais do que a posteriori e seus derivados – um sentido puramente temporal - só-depois (mesmo não expressando necessariamente a ideia do impacto inerente ao movimento traumático próprio à temporalidade psíquica) parece-nos dizer melhor da descontinuidade que o conceito implica, uma descontinuidade que é tanto da sua própria natureza quanto da história de sua emergência na obra fundadora. As três expressões – Nachträglichkeit, après-coup e só-depois – devem, assim, ser aqui entendidas como indicando o mesmo conceito de temporalidade psíquica.

 

O après-coup na leitura de Jean Laplanche

A leitura laplanchiana do après-coup dá continuidade a um exercício rigoroso e refinado que caracteriza a obra desse psicanalista: retornando ao texto freudiano, Laplanche não se contenta em acompanhar o percurso do conceito no sistema de Freud, mas enxerga, naquela trajetória metapsicológica, as contradições inerentes à obra fundadora e as interpreta à luz dos principais argumentos da teoria da sedução generalizada (TSG), desenvolvida a partir de 1970.

Laplanche começa pela questão da tradução da palavra: nachträglich é um adjetivo e um advérbio da língua corrente; Nachträglichkeit é um substantivo, criado por Freud, que marca o aparecimento do conceito nos textos psicanalíticos. Esse conceito, no entanto, não figura como tal nos índices das Gesammelte Werke e, na Standard Edition, seu índice é “indigente” (LAPLANCHE, 2006, p.30), muito embora “estes termos sejam frequentemente empregados por Freud em itálico, para indicar a importância que lhes confere” (HANNS, 1996, p. 80).

Se, apesar da indicação do próprio Freud, o termo não foi percebido como conceito pelos editores da edição alemã, na passagem para o inglês ele foi dissociado, segundo o contexto, em diversos sentidos da palavra, por vezes, muito diferentes, perdendo-se assim a unidade para a qual o uso de um mesmo termo apontava. Strachey traduziu-o ora por deferred action, ora por subsequently, later e belatedly. Uma passagem pelos “exemplos de uso em Freud”, a partir da tradução brasileira da Standard Edition, ilustra essa perda da unidade: retardado, adiado, adendo, só depois, subsequente, preterido, posterior (HANNS, 1996).

Se, com base na etimologia – para a qual enviamos o leitor às obras de referência – é possível começar uma crítica das traduções do termo existentes, Laplanche reconhece não ser possível alimentar a pretensão de desvelar a complexidade do conceito simplesmente a partir desse ponto de vista. Como a maior parte dos grandes conceitos, Nachträglichkeit só-depois se revela numa história, uma história com apagões e restabelecimentos, em grande parte, coextensivos aos avatares da teoria da sedução (LAPLANCHE, 2006, p.14).

Não foi, porém, no contexto dessa teoria que Lacan advertiu para a existência do conceito e cunhou sua tradução, mas, em Função e campo da palavra e da linguagem, num comentário a “O homem dos lobos”.

Freud exige uma objetivação total da prova enquanto se trate de datar a cena primitiva, mas supõe sem mais todas as ressubjetivações do acontecimento que lhe pareçam necessárias para explicar seus efeitos a cada viragem em que o sujeito se reestrutura, quer dizer nas reestruturações do acontecimento que se operam, como ele se exprime: nachträglich, après coup (LACAN, 1966, p.256).

Laplanche escuta, no contexto desse comentário, ecos de uma hermenêutica de inspiração heideggeriana e lamenta a falta, em Lacan, de um simples conhecimento (e, mais ainda, de uma reflexão) sobre a “teoria da sedução”. O certo é que Lacan não resolve o impasse entre o determinismo absoluto da história individual (necessidade do passado e contingência do futuro) e o futuro reestruturando completamente as contingências do passado (LAPLANCHE, 2006, p.21-23).

Na etapa seguinte da consolidação do conceito, situam-se as contribuições de Laplanche e Pontalis - em “Fantasia originária, fantasias das origens e origem da fantasia” (1990) e no “Vocabulário da Psicanálise” (1991) - e de Laplanche - em “Vida e morte em psicanálise” (1985) - textos em que se tratou de reinserir nachträglich no seu conjunto conceitual originário, o da teoria da sedução formulada por Freud.

A tese laplancheana sobre o après-coup pode ser assim resumida: a questão do só-depois aponta para uma filosofia psicanalítica do tempo e afirma: “o ser humano se temporaliza porque – e na medida em que – está numa relação originária ao outro”. “O motor da temporalização do ser humano é a relação ao outro originário”, não “um outro abstrato”, não “o Outro com maiúscula” de Lacan, mas “esse “outro” que é o adulto para a criança” (LAPLANCHE, 2006, p.12).

Para demonstrá-la, em seu curso, Laplanche examina minuciosamente cinco momentos da obra de Freud, principalmente em torno dos “Estudos sobre a histeria”, das “Cartas a Fliess”, do “Projeto para uma Psicologia Científica” e n“O homem dos lobos”.

1. Antes da teoria da sedução, na vigência da teoria catártica: A primeira aparição do conceito, no caso Elisabeth von R., nos “Estudos sobre a histeria”, pretende explicar o que acontece com pessoas, predispostas à histeria, que cuidam de doentes graves por um longo período de tempo. As emoções que, no momento dos cuidados, não puderam manifestar-se, ficam como que retidas – “histeria de retenção” - até que o doente, por exemplo, morra, para só então serem liberadas, só-depois liquidadas. O que, numa primeira leitura, poderia ser visto na perspectiva puramente econômica da teoria da abreação, aponta, nas considerações do caso, para uma elaboração que anuncia o que virá a ser designado como “trabalho do luto” (LAPLANCHE, 2006, p. 39-42);

2. Na vigência da teoria da sedução: os três sentidos do conceito que, na dialética da obra, tenderão a ser ultrapassados, fazem-se presentes neste período.

a) o sentido de efeito secundário, diferido, como aparece na teoria do recalque enquanto defesa patogênica, bem ilustrada pelo caso Emma. Trata-se de uma teoria do trauma em dois tempos, pelo qual “uma lembrança só-depois se torna trauma”. Verifica-se aí uma relação e um jogo entre duas cenas: a primeira no tempo, segunda na análise, é uma cena de atentado sexual, antes da puberdade; a segunda, depois da puberdade, é uma cena “inocente”, ligada, porém, à primeira por algumas associações. É a lembrança que traumatiza, o eu sendo atacado do interior, de onde ele não esperava. Em vez de uma defesa normal, caracterizada pela energia ligada e pelo processo secundário, o eu se defende na forma de processo primário, por uma intensa descarga de afetos. O traumatismo torna-se traumatismo interno. O jogo do demasiado cedo, do atentado, e do demasiado tarde, da puberdade, não basta para fazer uma retroação. Trata-se, ainda, de um texto determinista (LAPLANCHE, 2006, p.47-55);

b) o sentido de ulterior, acrescentado, secundário. Na terceira parte do “Projeto”, “Tentativa de apresentação do processo psi normal”, nachträglich qualifica a consciência secundária, a consciência que vem num segundo tempo. Para Freud, a consciência está ligada à percepção, a uma excitação do aparelho perceptivo. Como, então, podemos ter consciência de nossos próprios processos psíquicos, se eles não passam de descargas? Pelo fato de que, periodicamente, e de forma descontínua, eles se acham ligados a palavras. Freud denomina “consciência só-depois” essa consciência secundária (LAPLANCHE, 2006, p.44-46).

c) o sentido de compreensão só-depois. As cartas a Fliess 123, 126 (com manuscrito L) e 127, de respectivamente, 6 de abril, 2 e 16 de maio de 1897, tratam da formação das fantasias a partir das experiências, sempre numa relação entre o “ouvido”, o “ouvido dizer” e o “compreendido”. Por exemplo, na carta 123: “as fantasias histéricas (...) remontam às coisas que as crianças precocemente ouviram, e só-depois compreenderam” (FREUD apud LAPLANCHE, 2006, p. 64). Mais do que a questão dos diferentes sentidos (vista, ouvido...), Laplanche ressalta a possibilidade de cada sentido, com seu próprio código semiótico, veicular mensagens e comportar uma “exigência de tradução”, visando a sua compreensão (p.64-68). Por isso, recorre à carta 52/112, de 6 de dezembro de 1896, em que se lê:

Tu sabes que trabalho com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico engendrou-se por estratificação, o material disponível de traços mnésicos conhecendo de tempos em tempos um reordenamento segundo novas relações, uma reescritura. O que há de essencialmente novo na minha teoria é, pois, a afirmação de que a memória não está presente de modo único, mas múltiplo, depositada em diversas espécies de signos (FREUD apud LAPLANCHE, 2006, p.56).

Portanto, de uma a outra dessas sucessivas escrituras há um processo de tradução. O recalque, que até aqui, era um fenômeno patológico, torna-se, na passagem de uma fase à outra, um fenômeno “quase” normal. Por outro lado, o esquema em dois tempos do caso Emma – pré-pubertário – pós-pubertário – é generalizado em n tempos, e a passagem de um tempo ao outro é caracterizada como tradução, de modo que aí o recalque é a “recusa da tradução”.

Como se vê, a concepção de tradução traz uma saída possível à ideia de só-depois, toda a tradução podendo ser concebida como um duplo movimento: um reportar-se ao texto originário e um projetar-se na direção da forma que a tradução tomará (LAPLANCHE, 2006, p.55-64).

3. O “abandono” da teoria da sedução: Depois das cartas de abril/maio, em plena vigência da teoria da sedução, a forma adjetivo-adverbial nachträglich desaparece da correspondência para só reaparecer na carta de 14 de novembro, quando surge pela primeira vez a forma de substantivo e o conceito: Nachträglichkeit. Ora, entre essas duas datas, a carta 69/130, de 21 de setembro de 1897, anuncia o “abandono” da teoria da sedução. É nessa “evolução paradoxal do conceito” que Laplanche vai se deter.

Um dos argumentos da carta é que não se pode nunca atingir, pela lembrança, o acontecimento inicial. Ora, a teoria da sedução é inseparável da ideia de um traumatismo em dois tempos. O traumatismo torna-se, assim, um traumatismo de proveniência interna, impossível de evitar, um traumatismo pela libido do próprio sujeito. Consequentemente, o acontecimento inicial não pode ser atingido.

Poder-se-ia, então, atribuir as fantasias à influência de acontecimentos ulteriores, a uma imaginação retroativa. Mas essa solução não é suficiente, nunca será suficiente para Freud. Ele sempre lutará contra a hipótese de um puro “retrofantasiar”, criando o passado a partir do presente. Portanto, essa imaginação retroativa deve encontrar sua origem, a qual, não podendo mais estar situada na história individual, deverá ser procurada na história da espécie e na transmissão de predisposições hereditárias.

Constata-se, assim, o quanto as hipóteses filogenéticas de Freud são condicionadas pelo abandono da teoria da sedução: é absolutamente preciso encontrar um ponto de partida real, ponto de apoio de todo o desenvolvimento ulterior, da “pulsão”, das fantasias originárias, etc. Doravante, a possibilidade de uma imaginação retroativa estará indissociavelmente ligada à reabilitação da hipótese hereditária (LAPLANCHE, 2006, p.80-82).

4. Depois do “abandono” da teoria da sedução. A história da teoria da sedução não é completamente paralela à do conceito de só-depois. Na carta 70/141, de 3 e 4 de outubro de 1897 (tal como na carta de 21 de setembro), não aparece o termo nachträglich, mas sim, no terreno da autoanálise, “a oposição insolúvel, não dialetizada, entre a busca de uma primeira causa e a hipótese puramente retroativa”. Sua babá, sua “professora” em matéria de sexualidade, o teria lavado na água avermelhada de suas regras. À objeção de que poderia tratar-se de imaginação retroativa, Freud argumenta com o que considera um verdadeiro experimenta crucis, no sentido de Bacon: “Como poderia eu ter inventado esta história da água avermelhada se verdadeiramente isso não tivesse sido algo de real?” Mesmo no momento de revisão da teoria da sedução, Freud não abandona a ideia do condicionamento no sentido passado-presente (LAPLANCHE, 2006, p.84-85).

Abandonada a teoria da sedução - com sua estreita articulação entre traumatismo, só-depois e recalque - Freud repensa o recalque. Na carta 75/146, de 14 de novembro de 1897, ele propõe a teoria de um recalque normal, aquele que está ligado às formações do tipo moral, vergonha, etc. Na teoria da sedução, recalque e inconsciente eram patológicos e o tratamento visava anular o primeiro e abolir o segundo. Sendo normal, o recalque não poderia mais estar ligado à contingência dos acontecimentos. O outro, da teoria da sedução, adulto, sedutor, perverso, reduzido às brumas da fantasia, Freud deseja “ver o recalque substituído pelo que é essencial por trás dele”. Por trás deste desejo, o desejo de substituir a teoria da sedução por algo mais fundamental. E o mais fundamental é o filogenético (LAPLANCHE, 2006, p.90-92).

O que tinha sido pressentido desde a carta 52/112 - “Por trás de tudo isso, há a idéia de zonas erógenas abandonadas” – é explicitado. Trata-se da passagem da posição de quatro patas, o nariz próximo da terra, à estação ereta, tendo por correlativo o abandono ou a diminuição das sensações olfativas na sexualidade (cheirar os órgãos do outro) (LAPLANCHE, 2006, p.92-94).

Se, pela lei de Haeckel, “a ontogênese recapitula a filogênese”, então, o desenvolvimento da criança deve repetir o desenvolvimento da espécie, e assim se delineiam as fases do desenvolvimento da sexualidade – oral, anal, fálico... – tal como Freud as desenvolverá nas edições dos “Três ensaios” posteriores a 1905. O recalque normal consiste no abandono das sucessivas zonas erógenas.

Finalmente, ao nível da gênese psicológica, Freud parte da idéia de que a excitação sexual não se produz apenas pela excitação externa dos órgãos sexuais, nem só pela excitação interna, mas também a partir das representações, “pela via do só-depois”. Aqui aparece, pela primeira vez, o substantivo Nachträglichkeit (LAPLANCHE, 2006, p.97-103).

Como se vê, ao mesmo tempo em que é introduzido o conceito de Nachträglichkeit, é admitida a ideia de uma sequência biológica de base, uma sucessão de estádios biológicos que se “recalcariam” um ao outro ou seriam sucessivamente abandonados, abandono que encontraria sua matriz num abandono filogenético de tipos sucessivos de sexualidade. Verifica-se, aí, a tendência freudiana a fundar, na filogênese, uma realidade que lhe falta na gênese do inconsciente.

A essa concepção da sucessão de estádios ditos orgânicos da sexualidade (que prefere definir como etapas da criação feitas de uma sucessão de situações envolvendo o adulto e a criança), Laplanche postula um “a traduzir” proposto à criança, a qual utilizará, em seu trabalho de tradução, o que metaforicamente se podem chamar linguagens sucessivas — antropológicas ou antropológico-orgânicas, mais do que orgânicas. Com efeito, a sucessão “oralanalgenital” pode ter outros determinantes que os puramente maturativos. Pode ser entendida num nível bem mais interpessoal e até antropológico - o primeiro cuidado da mãe é a alimentação... – com a sequência subjacente fornecendo, a cada uma das etapas, uma bateria significante, uma linguagem ou um código (LAPLANCHE, 2006, p.108-111).

Depois dessa carta, Freud vai dar dois exemplos do só-depois. Na carta 169, de 9 de junho de 1898, analisa a novela de Konrad-Ferdinand Meyer, “O pajem de Gustavo Adolfo”. Uma jovem, apaixonada por Gustavo Adolfo, faz-se passar por rapaz para ficar próxima do rei, servindo-o como pajem. Um oficial, amigo da família, reconhece-a e desvenda o enigma dessa paixão: o rei beijara-a nos lábios quando ela era um bebê. E conclui: “não se deve beijar as crianças. O beijo adormece e depois se inflama quando os lábios crescem e incham” (FREUD apud LAPLANCHE, 2006, p.111-116).

Um segundo exemplo aparece em “A interpretação do sonho”:

No seio da mulher se encontram a fome e o amor. Como conta a anedota, um jovem, que se tornou um grande admirador da beleza feminina, declarou, num dia em que se tinha falado da bela ama de leite que lhe tinha dado de mamar: lamento não ter então aproveitado melhor da boa ocasião. Costumo servir-me desta anedota para ilustrar o fator só-depois no mecanismo das psiconeuroses (FREUD apud LAPLANCHE, 2006, p.116).

Em ambos os casos, falta a noção de mensagem expressa através do beijo e do seio.

5. O reaparecimento das noções de sedução e trauma em “O homem dos lobos”: Depois de um longo interregno, reaparece Nachträglichkeit na obra. Redigido em 1914, o texto só foi publicado em 1918, acompanhado de dois Nachträg que colocam em questão o que tinha sido posto como tese de partida. Freud se opõe obstinadamente à “retrofantasia” postulada por Jung e precursora de uma certa hermenêutica moderna, mas fracassa na refutação dessa teoria (LAPLANCHE, 2006, p.122-123).

Se considerarmos a cronologia mínima: 1 ano e meio – cena primitiva; 4 anos – compreensão/elaboração pelo sonho; 24 a 28 anos – colocação em palavras pela análise, verificam-se aí duas possibilidades de só-depois: a do sonho e a da análise. Para se defender da argumentação de Jung – uma reconstrução imaginativa do passado, para as necessidades da causa do presente - Freud considera desprezível o segundo só-depois, o da análise. O problema do só-depois no tratamento nunca foi enfrentado por Freud, lembra Laplanche (2006, p.127-130).

Depois de uma latência de 15 a 20 anos, reaparecem os termos “traumatismo” e “sedução”. A teoria do traumatismo é aquela que postula dois tempos para que o traumatismo aconteça e, portanto, è inseparável do só-depois. Aqui, o segundo tempo é o do sonho, que marca o início da neurose. O sonho age como sedução. Para Freud, só é psiquicamente traumatizante o que vem do interior, como ataque interno (LAPLANCHE, 2006, p.134-135).

A cena primitiva é inteiramente construída, reconstruída a partir das associações do sonho. Que tipo de realidade atribuir a essa construção? Cena que verdadeiramente aconteceu? Pura imaginação retroativa?

Porém, como observa com propriedade Laplanche (2006, 143-144), a cena da observação do coito parental comporta em si mesma uma estrutura de sedução como mensagem enigmática. Na falta dessa noção de mensagem, porém, no movimento do presente em direção ao passado, o conceito de só-depois encontra-se em concorrência perigosa com o conceito de retrofantasia. No momento em que a sedução está de volta, o fantasma da retrofantasia não pode deixar de assombrar Freud: há sempre o perigo de que a construção retroativa (que ele faz neste caso) se confunda com uma construção à Tito Lívio, tal como ele a formula em “Um estudo autobiográfico”:

Meu erro (em relação à teoria da sedução) foi o mesmo que o de alguém que tomasse por verdade histórica a história legendária do período real de Roma, conforme o relato de Tito Lívio, em vez de a tomar pelo que ela é, uma formação reacional de lembranças de épocas e de situações miseráveis que, sem dúvida, não foram gloriosas (FREUD apud LAPLANCHE, 2006, p.145).

Em “A etiologia da histeria”, texto da época da teoria da sedução, Freud usa a imagem do quebra-cabeça como elemento de prova da sua teoria. Se o inconsciente se apresenta como lacuna, tal como num quebra-cabeça é preciso encontrar a única peça que se ajusta perfeitamente à lacuna. Quando essa é preenchida, o todo se torna “compreensível em si mesmo” (LAPLANCHE, 2006, p.147-148). No caso do “homem dos lobos”, porém, as sucessivas hipóteses complementares revelaram-se insatisfatórias para o próprio Freud, que recorreria, então, às “fantasias originárias”, “esquemas congenitais filogenéticos (que) asseguram, como categorias filosóficas, a classificação das impressões da vida”. “Lá onde as experiências vividas não se curvam ao esquema hereditário, sucede um remanejamento destas na fantasia”. A fantasia filogenética é encarregada de preencher a lacuna, não apenas da análise, mas da própria vivência (LAPLANCHE, 2006, p.152-154). Desse modo, não é mais preciso quebrar a cabeça: todos os quebra-cabeças são iguais...

Logo, as “três soluções aporéticas que se destacam do pensamento freudiano” (determinação, só-depois, da fantasia pela cena infantil; o puro “retrofantasiar”, modernizado como “ressignificação”; e a solução fazendo intervir as “fantasias originárias” filogenéticas) permitem a Laplanche, na conclusão de seu curso, discutir as lacunas deixadas por Freud com o recurso a sua TSG, trazendo uma nova compreensão do só-depois: “mensagem enigmática”. O que as opõe não é a presença ou a ausência de sentido, mas o fato de que a mensagem é sempre “significada a”, significada a alguém, significada à criança pelo adulto (LAPLANCHE, 2006, p.157-166).

Freud é prisioneiro de uma concepção mecanicista do desenvolvimento temporal, conforme a flecha do tempo; não formula a noção de mensagem e, a fortiori, de mensagem enigmática, comprometida pelo inconsciente do emissor; não aproveita o avanço maior – mas temporário - que constitui a carta 52/112, quer dizer a elaboração de uma teoria tradutiva do processo de só-depois. A razão para o abandono dessa teoria tradutiva é a ausência da noção de um “a traduzir”. De acordo com Laplanche, para que haja tradução, é preciso um “a traduzir” que não se pode conceber senão numa abertura, desde o início, do ser humano ao outro e pelo enigma do outro (2006, p.168).

O caráter enigmático da mensagem, por sua vez, implica tomar em conta o inconsciente (sexual) do emissor. Depois do abandono da teoria da sedução esse inconsciente (quase) deixa de ser considerado. No “homem dos lobos” não se considera o inconsciente dos pais. E na cena pré-histórica, “o homem originário” não conhece a clivagem da personalidade. É a cena que ele protagoniza que está na origem da clivagem.

Não somente o seu inconsciente não é tomado em conta, mas o próprio emissor é negligenciado como ator principal. O que é transmitido (com o beijo de Gustavo Adolfo ou o seio da ama de leite) não é levado em consideração. Nem o beijo nem o seio são, em si, mensagens (LAPLANCHE, 2006, p. 166-167).

Uma compreensão recíproca, inata/adquirida, permite um acordo autoconservativo de qualidade. Mas as mensagens adultas são enigmáticas porque aí se insinuam, desconhecidos do próprio emissor, retornos de seu inconsciente (LAPLANCHE, 2006, p.167-168).

Por que invocar um modelo tradutivo do só-depois e mais geralmente da teoria da sedução e até da constituição do ser humano? É que nenhum processo psíquico, melhor que a tradução, comporta esse duplo movimento indivisível do prospectivo e do retrospectivo. Prospecção nada mais é do que a exigência de tradução intrínseca na mensagem do outro. Já presente no diálogo menos complicado, esta exigência faz-se máxima quando se perfila na mensagem do outro a parte de enigma inerente à sua própria sexualidade (LAPLANCHE, 2006, p.169-170).

Tal é o movimento de dupla direção do só-depois em todo ser humano. O movimento prospectivo é o da mensagem enigmática proposta originariamente à criança pelo adulto, como sendo “a traduzir”. O movimento retrospectivo situa-se nas tentativas sucessivas de tradução pelo receptor.

O só-depois é um fenômeno que, antes de ser algo que acontece na sucessão das etapas da vida de um mesmo indivíduo, acontece na simultaneidade de um adulto e de um infans. A mensagem enigmática do adulto (habitada pelo inconsciente deste) institui no receptor um primeiro desequilíbrio que o impulsiona a traduzir, num segundo tempo, só-depois, de modo sempre imperfeito (LAPLANCHE, 2006, p.171).

Para esse duplo movimento, o método psicanalítico de Freud deu um sentido novo, o do tratamento. Foi preciso que o próprio Freud abandonasse a ilusão do “grande segredo” que um dia seria revelado, preenchendo as lacunas e dissolvendo o enigma. O “grande segredo” é a retomada sempre imperfeita, através das cenas, e pelo método analítico, associativo-dissociativo, na direção dos elementos que veiculam o enigma parental, sem nunca o preencher. É também a retomada do movimento progressivo na direção das sínteses aproximativas e eventualmente provisórias que constituem os momentos propriamente “psicoterapêuticos” de todo o tratamento (LAPLANCHE, 2006, p.171-172).

Ainda que não tenha sido escrito com o objetivo de demonstrar ou discutir a TSG, entendemos que o trabalho de Jacques André pode ser agora resumido, pois, como se verá, indica o mesmo princípio da alteridade na consideração do tempo em psicanálise.

 

O après-coup na leitura de Jacques André

O relatório de Jacques André sugere ao leitor um olhar que, interessado na metapsicologia, dá centralidade à clínica psicanalítica. Isso se evidencia desde o subtítulo de seu trabalho – “o après-coup no tratamento”- até a estrutura do texto – organizada de modo a alternar discussão teórica e referências a casos clínicos.

Após apresentar algumas cenas importantes do caso “Aurore”, André chama a atenção para o vínculo necessário entre traumatismo e Nachträglichkeit, criticando - no intervalo formado pelo emprego desta última noção por Freud e, depois, por Lacan - o que entende ter sido um mau uso que dela fez Ferenczi em sua clínica, apenas para destacar o considerável silêncio que também recaiu sobre o conceito, mesmo após sua retomada por Lacan.

É, pois, no contexto clínico que a teoria do tempo, no après-coup, revela-se particularmente explicativa: “se a primeira entrevista de uma análise dispõe das condições (quase) certas de um fenômeno de só-depois, sob o duplo registro do trauma e da abertura, a ocorrência desse fenômeno no decorrer do tratamento é muito menos garantida” (ANDRÉ, 2009, p.1291). O tratamento, assim, não se constitui ininterruptamente em um contexto no qual a temporalidade psíquica manifesta-se com mais clareza e, nem por isso, ele deixa de criar as circunstâncias mais favoráveis à expressão dessa temporalidade subjetiva:

O só-depois é uma questão de tempo [...]. Não se pode isolar o só-depois de uma concepção psicanalítica mais abrangente da temporalidade. Ele faz parte de um conjunto cuja afirmação freudiana mais original é a da a-temporalidade do inconsciente. O tempo, na sua generalidade filosófica, não é um objeto da psicanálise. Todavia, as formas de inscrição psíquica do sujeito humano no tempo interrogam também fortemente tanto a teoria psicanalítica quanto sua prática (ANDRÉ, 2009, p.1292).

Desse modo, cabe a pergunta sobre a influência desse só-depois no processo de temporalização: “qual lugar ocupa o acontecimento na construção (ou destruição) da temporalidade? O só-depois incendeia nossa representação comum de tempo; trauma em dois tempos, ele não se contenta em inverter a cronologia, mas a desordena” (p. 1292).

Como Laplanche, André aceita no só-depois duas dimensões: a do trauma e sua violência, de um lado, e a da reinscrição, “a complexidade de uma significação que, vinda do outro, é transformada” (2009, p. 1292), de modo que “o après-coup tem um pé no inconsciente” (2009, p.1293), tanto porque mobiliza o recalque quanto porque provoca um fechamento psíquico a um certo significado traumático. Também como Laplanche, André admite que, no trauma, todo o esforço hermenêutico (bem ou malsucedido) busca dar conta de um ataque interno - ataque em si mesmo rico, por possuir conteúdos não só de fechamento (como se mostra no sintoma), mas de abertura e de transformação do passado. Isso, porém, só se dá “com a condição de que se encontre... um outro. O après-coup é um evento traumático tardio em busca de sentido e de intérprete, ele cristaliza uma situação inter-humana” (2009, p.1294).

Se a situação analítica comporta um caráter traumatizante, do mesmo modo contém uma potencialidade de significação do trauma. “O aprés-coup é analisável e, também, um analisante da situação analítica e seus impasses” (2009, p. 1294-1295). Os casos de Aurore e de Léa são paradigmáticos: a primeira, nascida prematura, ora antecipava-se aos horários das sessões, ora se atrasava, sem suportar os lapsos temporais criados pelas férias de seu analista; a segunda experimentava crises de angústia ao final das sessões, buscando encompridá-las, mas, ao mesmo tempo ressentia-se de quaisquer atrasos em seus horários, quaisquer mudanças de posição no divã, qualquer sinal a que associasse desatenção e rejeição. Regredidas, para elas o tempo era plástico e se submetia a prazeres próprios à sexualidade infantil.

A regressão, seja temporal, seja tópica, aponta para uma manipulação psíquica do tempo que visa negá-lo. Na situação analítica, porém, a transferência abre espaço para um outro, o analista, que, simplesmente por ser outro que não o da fantasia, desfere golpes só-depois ressentidos. A situação analítica, consequentemente, recria as condições geradoras da própria sexualidade infantil, não para repeti-la apenas ou necessariamente, mas, a partir dessa sexualidade já instalada (já se prestando como ameaça interna), recriar o presente e transformar o passado.

O Nachträglichkeit consiste, então, em um duplo movimento que relaciona oposições: ele “condensa, mais que conjuga, a volta ao passado, a historicização, e o presente, a atualidade do trauma. Esse par desdobra-se facilmente sobre aquele aberto no tratamento: rememoração e repetição (transferência)” (ANDRÉ, 2009, p. 1301). Com isso, a relação transferencial facilmente se presta tanto à elaboração quanto à repetição – com frequência, às duas. Cabe ao analista atentar para não pender para o lado da pura repetição (em que sua postura contribua para o enrijecimento das defesas do paciente – como no caso de Léa, que se valia do tempo para prever os movimentos de seu analista e, com isso, tentar controlá-lo); deve, também, vigiar para não incorrer na pretensão de provocar a elaboração, traumatizando o paciente (o que, por exemplo, faz Lacan, com a escansão suspensiva da sessão).

Ao contrário, é o incidente que, imprevisto tanto pelo analista quanto pelo analisando, nos limites da situação de tratamento, contribui para promover mudanças. Vários eventos, dos mais discretos aos mais grandiosos podem provocar esse golpe do só-depois. No caso de Aurore, o encontro furtivo com a paciente que a sucedia no consultório de seu analista. Mas, é bom lembrar, o afirmado acerca dos eventos “merece nuance, pois nenhuma análise deve sua dinâmica apenas ao (après) coup dos acontecimentos. [...] A energia da transferência permite-lhe que se realize, mas isso não se dá todo dia”. Antes, “sem que perlaboração e après-coup sejam puros opostos, eles apresentam duas figuras distintas da temporalidade: continuidade-descontinuidade” (ANDRÉ, 2009, p.1306).

O imprevisto inerente ao evento vindo de fora ou de dentro da situação analítica (inclusive graças à contratransferência que leva o analista a cometer lapsos de língua) causará efeitos perturbadores que remeterão ao estranhamento intrínseco às relações inter-humanas. “No momento traumático do golpe sentido só-depois, a fronteira entre o dentro e o fora é desfeita” (ANDRÉ, 2009, p.1307).

A sexualidade infantil presta-se como paradigma do imprevisto. Confundida frequentemente com toda a sexualidade (e, nesta, com a genitalidade a que se acede a partir da puberdade), a sexualidade infantil está fora do tempo: “esse infantil não tem idade. Ele não corresponde a qualquer lugar, a qualquer tempo assinalável. Ele não ficou para trás, mas é uma fonte atual, viva, jamais esgotada”, de modo que “a temporalização do só-depois desdobra-se sobre o fundo da atemporalidade do infantil” (ANDRÉ, 2009, p.1308). Fora do tempo, a sexualidade infantil denuncia-se só-depois, no après-coup, seu “momento de verdade”, de “desmedida” que remete à plasticidade do material recalcado.

André insiste na dupla face do après-coup: se intrinsecamente ligado ao recalque e, por ele, à sexualidade infantil, o só-depois presta-se também às passagens próprias ao tratamento analítico bem-sucedido. “Só a força do trauma permite que as cartas do jogo sejam misturadas outra vez, que a história seja reescrita [...], que faça sentido o que era insensato. É necessário um golpe (coup) para que se possa ter um depois (après)” (ANDRÉ, 2009, p. 1310). O tempo psíquico, por conseguinte, não se sujeita sempre à flecha cronológica, mas, ao contrário, subverte-a: os ensaios hermenêuticos ou aqueles lineares recaem, ambos, no erro do mito, que atribui verdade ao que é apenas reconstrução, reforçando, assim, um dogmatismo que se funda nos artigos de fé sobre a própria história e a própria subjetividade.

O psicanalista francês não se escusa de abordar a temática das origens do inconsciente, já que a ela também está ligada a questão da temporalidade. O tempo das origens, ainda que inacessível, não deve ser concebido como mítico, mas como axioma presente em muitas das teorias psicanalíticas interessadas na explicação da formação do inconsciente. André considera os trabalhos de Bion, Lacan, Klein, Laplanche e Pontalis para insistir: “entre o dentro e o fora, o après-coup, ser de passagem, não se deixa facilmente localizar” (2009, p. 1315).

E na origem, a sexualidade aparece como filtro depurador e fixador da subjetividade, capaz de transformar o não-sexual em sexual, de sexualizá-lo. Ainda que o trauma não seja sempre sexual, então, “seu tratamento será sempre sexual. Se o sexual (o infantil), sua polimorfia, sua plasticidade libidinal não conseguir imiscuir-se nem impor sua exigência de transformação, o próprio tratamento psicanalítico estará comprometido” (ANDRÉ, 2009, p. 1316).

A situação analítica, com seus novos e imprevistos golpes, abre espaço para a penetração da sexualidade na intersubjetividade e revitaliza as condições de transformação do trauma em ocasião de tratamento. Nesse espaço têm especial importância os golpes infligidos ao narcisismo, pois é justamente o eu que, tomado de assalto, se vê ameaçado no só-depois:

O narcisismo da ferida lembra que a libido, longe de ausentar-se dessas configurações, é antes mobilizada continuamente, até a exaustão. A dificuldade prática não nasce da ausência do sexual, mas de sua paralisia, mantida para defender, reparar, investir as fronteiras [...]. Diferentemente do objeto da fantasia, do objeto exterior, o eu não é substituível. Só a morte nos livra dele, um tanto tarde demais (ANDRÉ, 2009, p. 1321-1322).

O narcisismo, ao tempo em que se vê ameaçado, paradoxalmente contribui para a força do golpe inerente ao só-depois, posto que oferece um contrapeso (um contrainvestimento) para resistir. São as feridas narcísicas precoces que explicam o multidirecional efeito do après-coup, capaz de alterar tanto o passado quanto, em razão disso, o futuro. Aurore, novamente, dormindo nas sessões, sonhando durante seu sono, receando não conseguir continuar, fantasiando situações de abandono da análise, estando consciente apenas alguns minutos durante as sessões — por semanas e meses “à deriva” —, assim repetiu e se reinventou ao retomar sua história primitiva, desejada que foi pelo pai, mas não pela mãe (que rapidamente retomou o trabalho após o nascimento da filha). Interpretando os movimentos transferenciais como uma “repetição do que jamais ocorreu”, André entende o tempo psíquico de sua paciente de modo a suportar o trabalho de manter o continente ameaçado pelas investidas desorganizadoras do setting, próprias das atuações de Aurore (2009, p.1323-1327).

Narcisicamente desinvestida pela mãe, Aurore fazia apelo a seu analista para refazer sua história. E certas expressões temporais começaram a indicar uma passagem feita em análise: ela fizera referências aos tempos não presentes, sobretudo ao passado, à medida que recontava sua história, valendo-se da estrutura fornecida pelo tratamento. “Paciente sem história”, Aurore, através da análise, constituiu em si uma temporalidade psíquica.

“A temporalidade, as temporalidades têm uma gênese psíquica, mais ou menos acabada, mais ou menos bem-feita, frequentemente faltante, somente esboçada, por vezes até mesmo não constituída” (ANDRÉ, 2009, p. 1327), de modo que a falta de lembranças da infância não se constitui em falta de memória, mas em falta de história, acentua André (2009, p. 1328) para chamar a atenção da importância da situação analítica como (re)ge(ne)radora do psiquismo: a temporalidade não se faz só ou necessariamente da “apropriação subjetiva do interdito”, mas no “encontro inopinado com as fronteiras do dispositivo” (2009, p. 1329).

A situação analítica é, nessa perspectiva, um contexto de sedução e de trauma que atinge o sexual infantil instaurado desde a infantia em cada um de nós. “A psicanálise é uma cena de sedução, aquela que nasce do encontro entre o mais íntimo e o mais estrangeiro e que permite ao fenômeno do après-coup, descoberto com a teoria da sedução, voltar a seu país natal” (ANDRÉ, 2009, p. 1336). Logo, é a circunstância privilegiada para que se evoquem as experiências temporalmente estabelecidas e, várias delas, postas fora do tempo graças à atemporalidade do inconsciente.

André (2009, p.1340-1352) lembra, bem apropriadamente, que mesmo fora do tempo, o inconsciente tem, ele mesmo, sua história: negá-la é efeito da entrada de Narciso em cena, em sua busca por eternidade – contrária ao tempo, ao movimento, às vicissitudes que só-depois provoca o golpe (coup) do acontecimento imprevisto, inerente à vida (realidade externa, material), ao inconsciente (uma realidade interna, psíquica) e às relações entre ambos. Narcisismo e morte por vezes andam de mãos juntas, de modo que é tarefa da análise provocar um desequilíbrio dessas forças e criar oportunidades de tratamento, aproveitando sucessivos Nachträglichkeiten. Na dialética do psiquismo, o après-coup presta-se para ferir, mas também para pensar a ferida.

 

No horizonte do tempo, o outro: para concluir

No momento de concluir, evidencia-se o esquematismo destas resenhas, em face da riqueza e da complexidade dos textos resenhados. A ambição de reuni-los num mesmo trabalho, pela coincidência temática, tornou esse esquematismo quase inevitável. Em nosso favor, podemos invocar a evidência de que noticiar a existência e testemunhar a sua densidade são objetivos precípuos de toda a resenha de um texto.

O curso de Laplanche, limitando-se, num primeiro momento, a acompanhar a trajetória do conceito na obra de Freud, só-depois nos mostra a atualidade das questões que se colocaram ao fundador. Elas permanecem, através da diversidade de perspectivas que segmenta o campo psicanalítico, além de chaves de escuta, insígnias que marcam diferenças. Com efeito, todo o psicanalista tendeu a orientar-se, em algum momento, pelo modelo do quebra-cabeça, na busca quase detetivesca de encontrar a cena que falta e que desvelaria o sentido do todo. Outros, porém, críticos desse empirismo ingênuo, abandonam-se à atitude fácil de considerar toda a história como um construto atual, visando ressignificar o que, emergindo do inconsciente, resiste ao sentido. Ilustra-o a concepção, corrente nos dias de hoje, que lê na regra da “atenção flutuante”, não uma advertência para nada privilegiar a priori, mas um imperativo de tudo reduzir à forma do discurso, desprezando seu valor de referência. Versão psicanalítica de uma certa “redução fenomenológica”, segundo a qual o exercício do historiar não passa da tentativa, feita por uma subjetividade ensimesmada, de encontrar as próprias causas.

Se o recurso a uma proto-história de natureza filogenética tende a ser datado, o apelo às formas transcendentais que determinariam a humana vivência subsiste em seu herdeiro, o estruturalismo, do qual se poderia dizer que faz sua a fórmula freudiana: “lá onde as experiências vividas não se curvam ao esquema [estrutural], sucede um remanejamento destas na fantasia”. Daí, todo um desdém pelas pretensões historicistas do enredo imaginário, em prol das categorias invariáveis do Simbólico. Escutar não é mais perseguir o enigma do outro, é esperar o momento de confirmar a necessária emergência do esquema estrutural.

Para André, o só-depois é uma noção sob tensão, posto que se constitui no operador entre a violência traumática, de um lado, e a complexidade de uma significação revisitada, do outro. Refletindo-se essa tensão na própria conceituação, André vai, ao longo do texto, definindo-o por sua relação a outros conceitos metapsicológicos. No que concerne à compulsão de repetição, mostra que, se ambos repetem, o só-depois também transforma, o que faz dele, senão o oposto, pelo menos o diferencial da compulsão. Nesse sentido, compulsão de repetição e só-depois não poderiam ser vistos como as duas faces – fracasso e sucesso - do mesmo fenômeno? Enquanto uma se fecharia no próprio mecanismo da repetição, o outro abriria o psiquismo para a superação desse movimento.

O potencial elaborativo do só-depois leva, por outro lado, a examinar a sua relação com a perlaboração. Mesmo não sendo simples opostos, eles apresentam duas figuras distintas da temporalidade: a perlaboração aproxima-se da continuidade, o só-depois, da descontinuidade.

Por seu componente traumático, há, ainda, que interrogar a relação entre o só-depois e a abreação. A abreação, na teoria freudiana, tem um cunho meramente quantitativo, ao passo que o só-depois é mais complexo por sua natureza econômico-tópico-dinâmica. A abreação trata apenas de descarga dos afetos enquanto o só-depois, abrangendo essa dimensão, ultrapassa-a por indicar, com a flecha temporal invertida, o sentido psíquico responsável por tal descarga. Consequentemente, o só-depois tende a desencadear o recalque enquanto a abreação assinala frequentemente a sua superação.

No entanto, visto da perspectiva do só-depois, o recalque, menos do que fechamento, mostra sua potencialidade de transformação. Mas é em relação ao enigmático “recalque” originário – precisamente um não recalcado, como lembra André - que o só-depois, ao representá-lo, no mesmo movimento o torna acessível e passível da ação do recalque propriamente dito.

Essa questão do (não) recalcado originário remete às primeiras mensagens, aos primeiros traumas. Tendo escolhido trabalhar o só-depois no tratamento (privilegiando, mais do que suas realizações bem-sucedidas, os fracassos, as ausências ou suas formas estranhas), André é levado a comparar duas mães: a freudiana, sempre excessiva nos seus afetos, misturando erotismo à ternura, em suma, sedutora; e a winnicottiana, ausente da cena, incapaz de devolver ao bebê o prazer que ele lhe dá (ou poderia dar) e privando-o da imagem dele mesmo refletida no espelho do rosto dela. Desse cotejo, conclui que a marca deixada pela ausência não é menos indelével que aquela deixada pelo excesso. O só-depois — ao ignorar a alogicidade paradoxal inerente ao lembrar-se do que não se passou, ao viver, pela primeira vez, no presente, a coisa passada, ao repetir o que não aconteceu — abre a clínica dos traumas precoces à perspectiva da possibilidade de inserção na história.

Como dissemos no início, na diferença de suas perspectivas, os dois trabalhos se complementam. Queremos concluir lembrando o que lhes é comum e, através desta comunidade, apontar o “núcleo duro” da argumentação de ambos.

Ambos ressaltam a tensão própria ao conceito, feito de trauma e de significação revisitada. Por isso, os dois sentidos da temporalidade – prospectivo/ retrospectivo - nele se condensam; por isso o trauma psíquico acontece em dois tempos. A trajetória aventurosa do conceito, feita de apagões e de restabelecimentos, deve-se, em parte, à dificuldade de manter juntos estes dois componentes heterogêneos: o sentido da força e a força do sentido. Sem o segundo tempo, o traumatismo reduz-se a uma causalidade linear, dir-se-ia catártica, não tivessem os criadores dessa teoria, desde o início, advertido para o fato de que “os histéricos sofrem de reminiscências”. Sem o primeiro tempo, sem a realidade de um primeiro tempo, cai-se na hermenêutica: a cada um a soberana liberdade de escolher a chave interpretativa que lhe convém. Se para o grande público a primeira possibilidade prevalece, para parte da comunidade psicanalítica contemporânea a opção hermenêutica leva a palma.

O segundo ponto comum aos dois autores consiste em ressaltar que a temporalidade própria ao conceito foi, originariamente, espacialidade: tratou-se do encontro/desencontro entre um adulto e uma criança. Nos termos de Laplanche, um adulto com inconsciente e uma criança sem inconsciente; nos termos de André, não há trauma primitivo que não seja a cristalização de uma situação inter-humana e que disso não conserve o traço. É esse terceiro que, com o “abandono” da teoria da sedução, por Freud, desaparece da ontogênese para reaparecer na filogênese como “pai da horda”, antepassado em linha direta do “pai da histérica”. É a ausência desse\terceiro que faz da teoria gangorra, oscilando entre os dois sentidos do tempo, sem os condensar.

Finalmente, terceiro e último ponto, ambos concordam que há uma essencial solidariedade entre o fenômeno do só-depois e a dinâmica do tratamento. A situação analítica permite a rememoração e a repetição do trauma na transferência. Ora, o acontecimento traumático que caracteriza o fenômeno do só-depois só se transforma em abertura e não simplesmente em recalque quando há alguém para o ouvir. Se o trauma original aconteceu num encontro, só um outro encontro poderá reabri-lo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Luís Maia
Rua Prof. Álvaro de Carvalho, 320 - Tambauzinho
58042-010 - João Pessoa/PB
Fone: (83)3224-2504
E-mail: luis.maia@uol.com.br

Recebido: 09/03/2010
Aprovado: 14/06/2010

 

 

1 Psicanalista, sócio fundador da Sociedade Psicanalítica da Paraíba. Professor Titular aposentado do Deparmento de Psicologia da UFPB.
2 Psicanalista, sócio da Sociedade Psicanalítica da Paraíba. Professor Adjunto do Departamento de Fundamentação da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB.

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