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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.33 Belo Horizonte July 2010

 

 

O escorpião e o sapo: o quê da perversão

 

The scorpion and the frog: the point of perversion

 

 

Maria Beatriz Jacques Ramos1

Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho inicia com uma história sobre as dificuldades das transformações psíquicas ao apontar para os caminhos da intersubjetividade e da filiação no processo identificatório. O quê da perversão! Ler sobre o tema da perversão possibilita a revisão de conceitos como narcisismo patológico e vingança, assim como a análise dos desvios na relação com os outros a partir das "possíveis" imagens de si mesmo. Imagens carregadas de marcas corporais e emocionais, que partem de necessidades não satisfeitas, de pulsões não recalcadas com uma tonalidade destrutiva à vida, desconstituindo a importância do cuidado, das alianças e uniões. Entretanto, existem pontos para interrogação nessa história. Aparecem traços de perversão no escorpião e no sapo? O que caracteriza o comportamento do escorpião e do sapo? Na parábola, vê-se um pacto que leva as personagens a reencontrar suas origens, porém o ferrão é mais forte que a empatia, a rede do passado predomina em detrimento do futuro.

Palavras-chave: Narcisismo, Narcisismo patológico, Perversão.


ABSTRACT

This paper begins with a story about the difficulties of both psychic transformations, by pointing to the intersubjectivity ways, and membership in the identification process. The point of perversion! Reading about the perversion theme enables the revision of concepts such as pathologic narcissism and revenge, as well as the analysis of deviations in relation to others from the "possible" images of themselves. Images full of physical and emotional marks that comes from unsatisfied needs, from not repressed drives with a life destructive tone and it deconstitutes the importance of care, marriage and alliances. However, there are points to question about in this story. Are there traces of evil in the Scorpions and in the frog? What characterizes the behavior of the Scorpions and of the frog? In the parable we see a pact that leads the characters to rediscover their origins, but the sting is stronger than empathy, the network over the past dominates the future.

Keywords: Narcissism, Pathological narcissism, Perversion.


 

 

Uma parábola

Na margem de um grande rio estava, um dia, um sapo. Ele precisava chegar à margem oposta. Enquanto se preparava para entrar na água, chegou um escorpião. Também este precisava chegar à outra margem, mas não podia fazê-lo: os escorpiões não sabem nadar. A contragosto viu que o sapo era a única possibilidade de chegar ao outro lado.

O escorpião pediu ao sapo para ajudá-lo: - Deixa-me subir nas tuas costas e transporta-me até a outra margem. És grande o suficiente e não te cansarás.

Mas o sapo, que conhecia o veneno do ferrão do escorpião, respondeu: - Nas minhas costas? Estás louco! Tenho medo de teu veneno mortal!

E o escorpião: - Estás equivocado em temer-me. Eu desejo atravessar o rio. É meu interesse que tu vivas.

Com tal raciocínio, o escorpião induziu o sapo a aceitar. Subiu, então, em suas costas.

O sapo entrou na água carregando o escorpião e começou a nadar perfeitamente à vontade no seu meio natural.

Assim que chegou ao meio do rio, no ponto que era mais forte a corrente e maior o esforço do sapo, o escorpião levantou o rabo e enterrou o ferrão com toda força nas costas do sapo. Enquanto o veneno mortal se difundia em seu corpo, sentindo que a vida se esvaía, o sapo exclamou: - Maldito, o que estás fazendo? Não vês que ambos morreremos: eu envenenado e tu afogado! Por que fizeste isso?

E o escorpião, já se afogando, diz: - Porque eu sou um escorpião e esta é minha natureza (AUTOR DESCONHECIDO).

 

Uma história

Esta é a história de dois meninos, um com treze anos e outro com quinze, que moram na periferia de Porto Alegre. A mãe tem depressão, o pai é alcoólatra. Ambos não trabalham, ainda que tenham seis filhos. Para o pai, tudo acontece nos lençóis. Nas duas peças em que moram, a promiscuidade é parte da casa, da existência.

A vulnerabilidade psíquica e social dos meninos é extrema. Não conseguem frequentar a escola regularmente, vivem na rua com os amigos jogando futebol, vagando pela vila. Procuram algo que não encontram. Um espaço além da casa onde moram, numa rua sem nome, num beco sem número. Os pais, analfabetos, precisam que os filhos continuem matriculados para receber ajuda do governo. O que vale é o que comem a cada dia. Sonhos? Expectativas? Cuidados? São referências que nos fazem pensar.

Mas, ainda assim, são surpreendentes a frequência e pontualidade que mantêm nos encontros semanais, segundo nossas combinações e incursões nos lugares por onde transitam. O olhar, a palavra, a presença, a possibilidade de atenção os mantêm entre a realidade e a fantasia, entre os sonhos de que não querem ficar perdidos, pois, quem sabe, no futuro querem ser diferentes de seus pais.

Eles não aprenderam o significado da sustentação, dos investimentos e ideais paternos que reforçam o eu. Tudo precisa ser construído, talvez constituído. Será que ainda há tempo?

Ser psicanalista fora do setting, num posto de saúde, numa comunidade carente, remete a um posicionamento diferente, uma ação que vai além das ideias, que exige um estado emocional capaz de tolerar a incapacidade do amor por si mesmo, pois a urgência é sobreviver. Isso é Eros? Isso é o retrato da perversidade à qual estão expostas as crianças, os adolescentes e adultos na cultura que sustenta a beleza e os espelhos como forma de retratar a alma humana, mas mantém a crueldade e a feiura.

Sentimentos misturados, fatos do passado acionam o vazio, o desamparo, nada pode nos socorrer, e sinalizam um caminho no qual não é possível chegar até a outra margem do rio.

Há um abismo, de desespero e desilusão, corpos marcados pela dor, que usam uma máscara para assustar a morte.

Seguem algumas falas, de Ronaldo e Charlie, nomes fictícios.

Ronaldo tem treze anos, estuda na 3ª série do Ensino Fundamental e diz: "Eu gosto dos meus amigos. Eu sou legal e gosto de jogar bola. O meu pai é alegre, meus irmãos são dançarinos e a minha irmã é simpática, e a minha mãe é carinhosa".

Um dos irmãos quer dançar rapper e se mexe como um robô. A mãe fica a maior parte do tempo na cama, pois, além da depressão, tem síndrome do pânico, se mantém com o ganho da medicação psiquiátrica, não sai sozinha, sempre tem dor numa parte do corpo. Um corpo arrastado, quase desabitado.

Ele continua:

Fico furioso quando falam da minha mãe, aí brigo. Eu queria ganhar um play (videogame), para ficar em casa. Na aula eu tô bem, mas matemática é difícil, português é fácil. Me dou bem com os colegas e os professores. Em casa, incomodo muito, porque brigo com os meus irmãos. Com meus pais, me dou bem.

Ele não frequenta regularmente a escola. Os professores não acreditam que possa superar as dificuldades de escrita e leitura. Seu contato com os conhecimentos escolares é rudimentar. Mente e se esquiva de qualquer compromisso, grita, briga para não ir à escola, prefere os amigos e o jogo de futebol.

Charlie tem quinze anos, não quer voltar à escola, parou de estudar na 5ª série, desde 2009. Ele conta:

Gosto de dançar Hip Hop. Minha vida é muito boa de viver, a mãe deixa eu fazer as coisas que gosto. Jogar bola, dançar, namorar. Tô ficando com a J. Eu me acho um rapper, eu me acho esperto. Penso que tenho futuro no que faço e não dou bola para o que os outros falam. Eles dizem que não tenho classe de rapper. Acham que devo jogar futebol.
Também gosto de jogar futebol e sair com meus amigos no shopping, ouvir música black. Eu vou numa senhora (L.), ela me dá presente. Ela mora perto da minha casa. Minha madrinha me deu uma jaqueta de Páscoa. A L. me deu dois cadernos.
Meus pais são legais comigo, eu tenho seis irmãos. Uns são chatos e os outros legais, eu tenho uma sobrinha muito bonita, e o meu irmão mais velho é muito legal, eu peço pra ele e ele me empresta. Também tenho um cunhado que é legal, ele empresta cd, corrente, camisa. Ele trabalha como colocador de asfalto.

Ele é responsável pelas marcações de consulta da mãe e do irmão mais velho, diagnosticado como esquizofrênico. Comunica-se bem, é envolvente, um jovem bonito, encantador, enganador, com seu "canto de sereia." E assim ele continua:

Eu faço as coisas que gosto. Quando falam da minha família, chamam minha mãe de louca e meu pai de vagabundo, parto para briga. Quero trabalhar e comprar o que gosto e não depender dos outros. Trabalhar em supermercado. Faço contas de mais e de vezes.

Ele mostra domínio das operações básicas, faz cálculos usando as quatro operações, sem dificuldades. Pergunto sobre as matérias que tem facilidade para aprender. Ele responde:

O que é mais fácil é matemática, ciências, educação física, geografia e artes. Mais difícil história, português. Amizades eu tinha poucas, porque amigos de verdade ajudam e isso não acontecia. Amigo de verdade ajuda o outro. Os colegas mentiam que eu fazia coisas, como bolinha de papel, bagunça, confusão, essas coisas.

Seu lar é a rua, volta para casa à noite no horário que quer, ainda que apanhe do pai.

Eu saio para esquecer meus problemas, tento fugir, mas não adianta, eu tenho que resolver, senão fico com peso na consciência. Fujo só se resolver. Tem gente que me enxerga mal, e tem outros que me veem bem, tem gente que concorda com o que faço e tem outros que não gostam do que eu faço. Tem gente que fala que sou balaquento, porque uso isso ou aquilo. Balaquento porque uso corrente e roupa de marca. Minha cor preferida é preta.

Ele é uma imagem que se enfeita para ser igual. Igual, desigual. Um jovem sem o eixo que verticaliza, que convive com adultos alijados, negligentes. Mas negligentes com quem? Com o que não sabem? Com o que não tiveram? Como ser alguém sem ninguém, com objetos internos caóticos e transgressores?

Quando pensa no futuro, na escola e nos professores, comenta:

Eu me imagino trabalhando, tendo filhos e mulher. Tendo minha casa e minhas coisas. Queria que meus professores fossem legais, numa escola bacana, com alunos legais que colaborem uns com os outros e que seja uma escola séria. Minha escola não é séria. Os alunos brincam, não fazem nada que a professora quer, não fazem o tema e eu também não fazia. Queria um professor com atitude na sala de aula, que explicasse as atividades melhor para ficar mais fácil os trabalhos. Ter atitude é conversar com os alunos, colocar ordem na turma, cortar o recreio e a educação física.

A que futuro se refere? Parece ter intenção de mudar, mas não muda, quer ganhar sem perder, sem esforço para suportar e superar a realidade.

Eles vivem e copiam a transgressão, expressam a pobreza dos laços pessoais e com os outros. Preparam-se para a marginalidade, para a inclusão da exclusão. Usam códigos complexos e enigmáticos que não podem ser explicados, tornam visível o narcisismo patológico que acentua as imponderáveis diferenças, bem como as possibilidades de lidar com elas, as inversões e perversões cotidianas.

A máscara cai. A idealização do que está fora da lei se cristaliza nas ações e afetos.

Querer e não poder fazer parte da história, parece que usam a seguinte lógica: se tudo é assim, então que continue assim, como na situação do escorpião e do sapo, no estatuto que indica "faça o que eu desejo e não o que eu peço", uma consigna paradoxal e contraditória, na qual as consequências de desobedecer são tão difíceis quanto de obedecer.

Esses meninos buscam a lógica do reconhecimento, pois são filhos obscuros e esquecidos de seus pais. Imaginam que serão amados, em detrimento da moralidade, dos desejos e da sustentação emocional que não foram mantidos.

Eles reforçam a parábola do escorpião, nas aspirações afogadas na impossibilidade. Eles são assim. Essa é a natureza de seus sofrimentos calcados na mentira, no conluio, na violência e na ilusão.

Para compreender suas histórias, analisar suas falas, não se pode agir como o sapo. É preciso enxergar e escutar esse mundo paralelo sem retórica e pudor.

 

Narcisismo e perversão

Ao pensar na estrutura psíquica denominada perversão, amplamente discutida e questionada na Psicanálise, propomos examinar algumas ideias sobre o termo. Essa denominação não teve origem na Psicanálise; remonta a épocas mais longínquas: no latim, o termo perversio aparece entre 1308 e 1444, no português, entre 1562 e 1575, derivado de perversitas e perversus que significa retornar, derrubar, inverter, pôr às avessas, desviar, desorganizar, realizar extravagâncias.

No século XIX, passou a integrar o vocabulário da Medicina, para designar uma degradação ou modificação de uma função orgânica, até sair dessa esfera e representar uma degeneração moral, uma perversão moral, um desvio na vida sexual (FERRAZ, 2000).

Hoje, reconhece-se que da raiz desse termo deriva outro, a perversidade, que significa uma índole ferina, ruim, uma expressão carregada de pré-concepções e estereótipos.

Nesse sentido, é significativo pensar sobre quando e como aparecem as perversões. Quem são os perversos, considerando suas variações e mutações? Perversão é sinônimo de perversidade? Além da indiferença, ódio, crueldade, gozo, também se pode encontrar o senhor e o escravo, o bárbaro e o civilizado no self do perverso?

Nos estudos psicanalíticos, é possível constatar os indícios do gozo ilimitado que caracterizam a vida sexual, política, psíquica e histórica dos perversos.

Porém, acredito ser necessária uma abertura afora o senso comum; uma observação mais acurada dessas manifestações carregadas de sofrimentos inenarráveis, condenadas pelo eco dos próprios sentimentos.

Seja gozo do mal ou paixão pelo soberano bem, a perversão é uma circunstância da espécie humana: o mundo animal está excluído dela, assim como do crime. Não somente é uma circunstância humana, presente em todas as culturas, como supõe a preexistência da fala, da linguagem, da arte... (ROUDINESCO, 2008, p. 11).

A vida é marcada por símbolos, pela presença do outro, por experiências cujas narrativas repousam no bem e no mal, nas cisões entre a realidade e o mundo interior, delineado pelo inconsciente, por fantasias sustentadas nas identificações que apontam as nuances do narcisismo.

Toda manifestação humana, desde os primeiros anos, produz efeitos, produz impressões, comunicações, que ficam ativas no psiquismo. A criança sobrevive no adulto como um hóspede, mobiliza desejos, encontros e desencontros, fala a linguagem das sensações vividas num passado no qual a incipiente consciência não se apropria do que é vivido, porém se sustenta por um código íntimo, particular.

O ser humano, seja qual for seu sofrimento, precisa estar e se comunicar de alguma forma com o outro. O ser humano expõe suas pulsões, e sobre essa premissa reside a escuta do psicanalista.

Por vezes, os perversos não são reconhecidos como perigosos, pois suas ações permanecem na esfera privada e parecem ocupar o lugar da não submissão à ordem familiar em relação aos papeis parentais e danos morais, como se não afetassem a vida das outras pessoas.

O mesmo acontece, com frequência, no descaso daqueles que se vitimam, aprisionados na angústia, no silêncio, na agressão voltada contra si mesmo e aos demais, que ficam atados nas garras da depressão, dos problemas narcísicos com comportamentos de abandono, de desorganização somática e desespero, ou territorializados na destrutividade antisocial.

A falha de integração narcísica leva à progressiva desorganização psíquica e corporal. O perverso não aceita as leis paternas, a norma social; rejeita a realidade e não recalca as pulsões pré-edípicas. Tem um senso moral e de justiça peculiares com base em sua centralidade narcísica e no uso de defesas contra as angústias primitivas.

Na sociedade contemporânea e globalizada, o homem mostra-se mais desumano que seus ancestrais ao exibir fixações sádicas com cenas, imagens, textos que estimulam ligações sem ética, banalizadas de maneira criminosa e indiscriminada.

Vivemos sob a insistência de um contexto que parece inquestionável, sob o impacto da ameaça, da desordem cultural e de grandes interrogações sobre o lugar do campo afetivo, das novas organizações vinculares com suas repercussões cotidianas.

Por outro lado, os inconscientes estudados e perscrutados na Psicanálise parecem mitigar a fronteira entre o normal e o patológico sem renunciar à cura, oferecendo-se como uma viagem numa noite íntima habitada por segredos, excessos, impasses e indiferenciações.

Para Freud (1978), a vida psíquica sempre esteve enraizada na sexualidade, visível na pulsão e na linguagem, de tal modo que o desejo é compreendido como energia e intenção, fonte de um mal-estar e de uma revelação, a revelação da singularidade sexual de cada um.

O inconsciente freudiano é estruturado pelo recalque e desejo. Pode ser decifrado no discurso dirigido ao outro, assim como a pulsão, que tem uma fonte e um objetivo, mas nem sempre um objeto. Porém, como isso seria possível?

Para entender, em parte, essas ideias, recorremos aos estudos de Melanie Klein que, segundo Kristeva (2002), indica que o outro está e sempre esteve aí, nos dramas e nas tramas estabelecidos entre um adulto e uma criança, na constituição de um ego e superego precoces, na denominada função materna.

Atenta à pulsão de morte, Klein fez dela a causa das aflições humanas, bem como da criação dos símbolos ao apontar as posições esquizo-paranoide e depressiva, e alarga a familiaridade com a loucura e a alquimia das emoções humanas. Suas ideias são pertinentes e contribuem para o entendimento do mal-estar cultural, ainda hoje, oferecendo possibilidades de compreensão da psicose, depressão, perversão, dissociação do eu, angústia, e também do narcisismo patológico.

Em Klein (CAPARRÓS, 1998), desde o nascimento, há uma cisão originária, como um embrião, possibilitando a discriminação entre o eu e o não eu por meio da introjeção e da projeção. Para o bebê, o objeto é um reflexo de si mesmo. O comportamento do objeto e as fantasias inconscientes decidem o desenvolvimento do narcisismo.

Para Caparrós (1998), o sujeito nasce psiquicamente com seus vínculos. Entender a vida psíquica como vínculo, como atadura, implica considerar morte psíquica toda forma de desligamento e ruptura com os outros.

Portanto, o narcisismo patológico expõe a morte do vínculo ou sua dissolução. Em relação a isso, o autor comenta que o narcisismo é uma estrutura: sujeito versus objetalidade. É também uma narrativa mitológica, um rótulo que agrupa uma família de patologias. É ainda um elemento que desempenha uma função desde a origem do sujeito.

O sujeito se constrói mediante uma série de identificações, assimilando aspectos do outro e transformando-se por meio da projeção e introjeção, uma dupla inseparável desde os primeiros estágios do desenvolvimento psíquico, que regula a relação com os objetos externos.

Outro conceito importante desenvolvido por Melanie Klein, a identificação projetiva, é vislumbrado, nessa reflexão, a partir do duplo controle interno e externo como uma depuração do ego primitivo. Uma das consequências da identificação projetiva é o modo como o sujeito se relaciona com o objeto, não como uma pessoa separada, com características próprias, mas como uma extensão de si mesmo, como um componente narcísico.

Ainda que o termo narcisismo não apareça na clínica e na teoria kleiniana, é possível compreender que há um estado narcísico que retira libido dos objetos exteriores para curvar-se sobre os objetos interiorizados.

O amor por si mesmo, com características de excesso ou de escassez, provoca movimentos, configurações, posições. Movimentos direcionados para o interior e exterior, movimentos que desvelam a dificuldade de superar as diferenças, a sedução, a manipulação vampiresca de sugar e saborear a provisão externa, atribuindo aos demais os próprios sentimentos.

São muitas as manifestações da incompletude, da inveja, desse lobo voraz que deseja recuperar a perfeição narcísica e, algumas vezes, a necessidade de sacrificar-se, ou sacrificar o outro, de viver num solo movediço, desafiando a castração, retirando energia e criatividade da outra pessoa, para incutir o medo e a culpa.

Nessa perspectiva, a angústia persecutória e a agressividade são incrementadas por circunstâncias externas desfavoráveis ou mitigadas pelo cuidado desde o nascimento.

Se olharmos para nosso mundo adulto do ponto de vista de suas raízes na infância, obtemos um insight sobre o modo pelo qual nossa mente, nossos hábitos e nossas concepções foram construídos desde as fantasias e emoções infantis mais arcaicas até as mais complexas e sofisticadas manifestações adultas. Há mais uma conclusão a ser tirada: aquilo que já existiu no inconsciente nunca perde completamente sua influência sobre a personalidade (KLEIN, 1991, p 296).

Em Chuster (1999), é a partir dos escritos kleinianos que Rosenfeld realçou a trama das relações objetais narcisistas patológicas na identificação projetiva, que se manifesta com a idealização, a onipotência e a projeção de partes do self. Para ele, a estrutura narcísica aparece naqueles pacientes que idealizam a morte como solução para os problemas, numa lógica de autodestruição.

Este é um aspecto que está presente em muitos quadros clínicos, dando-lhes uma gravidade maior. Tais pacientes não conseguem diferenciar a vida da morte, aparecendo naquilo que foi descrito como vício pela agonia ou estreiteza mental. A estrutura psíquica parece dominada por um grupo mafioso, um chefe tirânico que controla os membros prometendo benefícios e ameaçando com punições (CHUSTER, 1999, p.69).

Nessa citação, observamos que o sentimento de existir leva à inibição, à cisão do eu. A dependência do objeto implica amor, reconhecimento, valor, mas também promove agressão, ansiedade, dor em função das frustrações inevitáveis e de suas decorrências. Além disso, a dependência estimula a inveja, quando se reconhece a bondade e a tolerância do objeto.

Nas relações objetais narcisistas onipotentes, é possível verificar que, por meio da identificação projetiva, não há separação entre o mundo interno e o externo. Portanto, a indiferença é salientada como uma couraça que reveste o eu e, em parte, impede o desenvolvimento e crescimento psíquico.

As repetições retornam na incapacidade de pensar, de seguir a razão e a lógica. As necessidades não reprimidas ignoram o tempo, só consideram o negativo, não toleram a demora, mas impõem dor, humilhação, penalizam o semelhante, sob o imperativo de um agudo desafio e questionamento sobre o amor por si mesmo.

A experiência com pacientes difíceis ensina sobre o poder das palavras e dos gestos. Para o neurótico, a compulsão à repetição é o motor da pulsão, para o perverso, a compulsão é a atuação da fantasia com sua atribuição sadomasoquista em relação ao outro.

Quanto à pulsão, Grinberg (1991) assinala a interação dinâmica entre mãe e filho, o que permite a compreensão do sofrimento narcísico. Um sofrimento que limita a vida para dar queixa do destino, que impede a ajuda ao outro, encoraja o ataque contra o objeto e o sentimento de dependência.

Nas míseras narrativas, os disfarces da linguagem estão saturados de subentendidos e tropeços nas encenações e nas palavras. Porém, é justamente nessas rupturas que surgem questões vitais quanto à discordância entre a lógica e o desejo, assim como os sintomas que desafiam a lei e a dialética do ser.

 

Um desafio, uma transgressão: como ser psicanalista?

A capacidade de reconhecimento, de ver o que o outro não vê, remete à prática analítica, na qual o inconsciente, como uma essência, é reunido e separado, é vivenciada pelo analista e pelo analisando. Isso surge no discurso que alude a uma parte de si próprio, uma parte que o analisando coloca em contato com o analista.

Nessa perspectiva, a fala é e não é o próprio sujeito, uma vez que se constitui da racionalização e da negação, pois encena o mundo interno.

A linguagem se dá no simbólico, liga o que está desligado com outra forma de reunião, e, na via da interpretação, o analista trabalha com esse vaivém para que o analisando produza pensamentos.

Os sintomas fazem parte do discurso e das fantasias inconscientes que, muitas vezes, não aceitam o desfecho. Os sintomas se impõem, se satisfazem e alteram os pensamentos e os sentimentos sobre si mesmo, revelam as contradições e subversões. As pessoas falam em nome da consciência, da percepção, das leis compartilhadas, ou da ausência delas, mas também da dramática do desejo, da sexualidade, da castração ou de sua impossibilidade.

Pode-se dizer que desvendar os conflitos que atuam na vida psíquica é o objetivo fundamental da Psicanálise. "O analista se coloca como alguém capaz de ouvir, compreender, captar e descrever as emoções presentes no campo como uma espécie de enzima de ulteriores transformações" (FERRO, 2005, p.157).

Portanto, não há apenas um inconsciente a desvendar, mas uma capacidade de pensar para ser desenvolvida, uma tomada de consciência das regiões nunca antes percorridas. O analista não decodifica o inconsciente, mas opera um alargamento da consciência e do próprio inconsciente, como uma sonda que alarga o campo que explora.

O analista opera transformações quando faz mudança de vértice, quando compreende a polissemia de uma narração. Muitos pacientes efetuam escolhas de objeto recolocando o tipo de relação, que na época do surgimento foi traumática. (FERRO, 2005)

O trabalho analítico é desarticular, desmontar os enlaces que, em alguns casos, deixam descoberta uma falha ou falta, na qual se insinua algo que pressiona e obstrui o caminho da simbolização.

A função do analista é compreender a polissemia narrativa, ampliar o conhecimento sobre o funcionamento mental e, ao deparar-se com pacientes limítrofes, capacitá-los na busca de novas formas de conviver com a angústia e o sofrimento, para que saiam da repetição, do beco sem saída.

 

Uma máscara, uma vida malvivida...

Pensar onde não é e ser onde não pensa. Nesse paradoxo, há um caminho singular, que é encontrar o irrefletido que sustenta outro estado da alma, cuja diferença reside no grau em que o sujeito deve colocar-se diante dos limites impostos na convivência humana; compreender a alma que olha de dentro para fora e de fora para dentro, restabelecendo a confiança e a capacidade de amar adequadamente a si mesmo; apontar para outro tempo. Um tempo de reencontro, sem ferimento, sem a constante condenação e submissão aos desígnios pulsionais, decorrentes do vazio de significações e da função paterna, pois essa inscrição não aconteceu no discurso da mãe.

Todas as manifestações espontâneas, visíveis, audíveis, assim como os sinais da perversão, não passam de expressões das imagens gravadas por sensações muito antigas. Tão antigas quanto a parábola do Escorpião e do Sapo. As imagens tomam forma quando paciente e analista conseguem decodificá-las na relação transferencial.

A imagem perdura como uma sensação, pois toda emoção agradável ou dolorosa imprime-se numa representação psíquica. A afetividade e a corporeidade, consciente ou não, deixam traços na vida afetiva, no mundo interno, pois é uma linguagem partilhada de emoções, de ritmos, de uma intenção desejante e simbólica entre uma criança e sua mãe. Uma memória inconsciente dos tempos do corpo infantil faz coincidir as sensações e emoções adultas com as experimentadas no início da vida, uma linguagem que o analista deve conhecer para se comunicar com a "criança polimorfa perversa" e entrar em ressonância.

Por conseguinte, quando estamos na presença da iniquidade, precisamos pensar que isso ocorre por duas razões: em primeiro lugar, porque o sujeito foi afetado por algo extraordinário, em seguida, porque, tendo retornado ao passado para reencontrar a segurança de uma imagem anterior, está desamparado, em dissintonia com a imagem atual.

Refletir sobre os problemas narcísicos e a perversão oportuniza um encontro com pessoas que não entraram em acordo com os conflitos e sentimentos edipianos.

O amor próprio e a identidade estão entrelaçados com as pulsões e relações objetais, num eu que precisa ser olhado, admirado, reconhecido, temido e impelido pelo mundo externo.

A pulsão de morte não ocorre apenas na relação com o outro, mas contra si mesmo, contra a capacidade de buscar ligações.

O discurso do narcisista patológico é recitativo e narrativo, como se a simples desconexão da linguagem tivesse o poder de destruir a imagem do self, perseguida pelo despedaçamento.

Distância, frieza e indiferença tornam-se escudos para proteger o self e afastar a angústia de intrusão.

Diria inclusive que o que caracteriza a estrutura narcisista é este ponto fraco na armadura ou no brasão. Ponto rapidamente percebido pelo objeto, que sofre por se ver mantido assim à distância, excluído da relação de proximidade, congelado pelo sujeito narcisista (GREEN, 1988, p. 178).

Somos o que sentimos e vemos. O eu é o sentimento de existir, é uma entidade imaginária, um lugar de desconhecimento, de miragens, que confundem a percepção. É tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é.

As imagens mentais que forjamos de nós mesmos, substrato de nossa identidade, são imagens subjetivas. O eu resulta da interpretação pessoal e afetiva do que percebemos em nós mesmos, sejam nossas sensações, sentimentos ou aparência, já que são imagens alimentadas no amor e no ódio que guardamos internamente.

Não percebemos nossa vida tal como é, mas como imaginamos, como fantasiamos, submetidos a uma imagem familiar, por vezes assustadora.

E o Escorpião e o Sapo?

Para essa parábola, deixamos a arte de psicanalisar, ou seja, de perguntar e perguntar-se. De captar a necessidade. Enxergar o olhar, na expressão quase distraída do outro, ou o movimento casual, inaudível ou indizível.

Como pensar em escorpiões e sapos para compreender os simulacros, as mensagens que tratam da vida e da morte, da asfixia, da ruptura com a interdição?

Ao deparar-nos com as nuances da perversão, ficamos com o sentimento de nadar num rio profundo sem colete salva-vidas, presa às lembranças que mantêm viva a esperança para não sucumbir ao desprezo e controle do outro.

Contudo, sem poesia e sem metáfora, é importante vislumbrar a Psicanálise nos tempos de avatar, dos mundos paralelos, de sonhos e utopias.

Em sentido figurado, um avatar é a imagem que construímos num ambiente virtual para expandir nossa existência, com identidades forjadas no mundo das redes interconectadas.

Neste século, moramos em um mundo fluido, no qual podemos estar em vários lugares ao mesmo tempo, sem habitar nenhum, encenando poder e impunidade.

Vivemos no uso da tecnologia, num permanente estado de excesso que causa insatisfação, insegurança e depressão, que produz decadência, que coloca o ponto de referência humano de fora para dentro.

O que fazer?

Pensamos que a Psicanálise deve ir além da intenção de tornar consciente o inconsciente, de tornar acessível o conhecimento do mundo interior. A Psicanálise precisa decifrar os códigos da cultura, que permeia a subjetividade e a alteridade com ênfase no narcisismo e nos narcisistas de pele fina e de pele grossa (ROSENFELD, 1988).

A Psicanálise contemporânea precisa ir além do setting para explorar e estudar as mensagens da alma humana. Os psicanalistas precisam expandir a compreensão e atuação nos múltiplos lugares, nos quais habita o humano.

 

Referências

CHUSTER, A. W.R. Bion. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.         [ Links ]

CAPARRÓS, N. Del narcisismo a la subjetividad: el vínculo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1998.         [ Links ]

FERRAZ, F. C. Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.         [ Links ]

FREUD, S. Narcisismo. In: _____ Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1978. v. XIV.         [ Links ]

FERRO, A. Fatores de doença, fatores de cura. Rio de Janeiro: Imago, 2005.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Av. Protásio Alves, 1981/309
90410-002 - Porto Alegre/RS
Fone: (51)9806-0142
E-mail: mbjramos@terra.com.br

Recebido: 03/06/2010
Aprovado: 28/06/2010

 

 

1 Psicanalista do Círculo Psicanalítico do RS. Doutora em Psicologia/PUCRS. Professora das Faculdades de Educação e de Psicologia da PUCRS.

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