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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.33 Belo Horizonte jul. 2010

 

 

Das origens da sexualidade feminina ao feminino nas origens da psicossexualidade humana

 

From the feminine sexuality to the feminine into the human psychosexuality origin

 

 

Maria das Mercês Maia Muribeca1

Universidade Autônoma de Madrid

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo desenvolver algumas reflexões sobre a construção da subjetividade feminina em psicanálise, tendo como respaldo a Teoria da Sedução Originária ou Generalizada de Jean Laplanche e a proposta de Jacques André da existência das origens femininas da sexualidade. Nesse sentido, queremos assinalar que a Teoria da Sedução Originária nos possibilita ver a psicogênese do feminino desde um ângulo bastante diferente. Posto que pensar a sexualidade feminina sobre as bases de um endogenismo da pulsão sexual ou de uma sexualidade infantil que todo sujeito traz consigo, como traria consigo um inconsciente, presente desde o começo, não é o mesmo que colocá-la sobre a base de uma constituição exógena da pulsão sexual. Dessa maneira, observamos que a Teoria da Sedução Originária e a Teoria Tradutiva do Recalque modificam completamente a forma de ver as fundações do inconsciente, do aparelho psíquico e da origem da psicossexualidade humana, em especial, da feminilidade.

Palavras-chave: Psicanálise, Teoria da sedução generalizada e tradutiva do recalque, Psicossexualidade humana, Feminino.


ABSTRACT

This work aims to develop some reflection about the construction of feminine subjectivity in psychoanalysis supported by the Original Seduction Theory or Generalized from Jean Laplanche and also the proposal from Jacques André into the origins of feminine sexuality existence. In this meaning, we would like to mark that the Original Seduction Theory makes enables to see the feminine psychogenesis from a very different view. Thinking of feminine sexuality in an endogenism of sexual drive basis or a childish sexuality basis that everybody has itself, as it would bring an unconscious, present since the beginning, it is not the same of putting it in an exogenous formation of sexual drive basis. In this way, we observed that the Original Seduction Theory and the Traductive Theory of Reiterate completely modifies the way we see the unconscious foundations, the psychic system and the human psychosexuality origin, specialty, the feminity.

Keywords: Psychoanalysis, Generalized seduction theory and translation of the repressed, Human psychosexuality, Feminine.


 

 

As convicções são inimigas da verdade, mais perigosas que a mentira.
Friedrich Nietzsche

 

Neste artigo, faremos um breve percurso através da história a fim de assinalarmos que, tanto através de um discurso religioso quanto de um científico, a origem da sexualidade feminina foi respaldada numa leitura negativa da sexualidade masculina. Por milênios, o corpo feminino foi envolto em uma áurea de profundo mistério, o que deu margens a muitos equívocos. Esse corpo anatomicamente considerado imperfeito se prestava a todo tipo de associações com o mal, por parte da religião, e com as enfermidades, por parte da ciência. Na construção da sexualidade feminina, o feminino perdeu suas origens passando a ser visto como algo desvalorizado ou recalcado em seus primórdios.

A teoria psicanalítica foi, por assim dizer, edificada sobre a questão da diferença sexual, podendo a dicotomia entre razão e natureza manifestar-se na diferenciação que o pensamento freudiano estabeleceu entre homens e mulheres. O homem freudiano foi definido basicamente por suas funções na manutenção da ordem social e na construção da cultura, enquanto a mulher foi considerada, por excelência, como ser de natureza. A mulher foi definida a partir de seu corpo e de sua função procriadora como algo que lhe era ineludível.

Ao longo da história da humanidade, as noções de homem e de mulher foram organizadas a partir de uma lógica binária que atribui ao sexo masculino as propriedades do humano. Do ponto de vista científico, formulava-se a existência de um único sexo, que poderia ser mais ou menos bem sucedido em sua evolução. Do ponto de vista religioso, a mulher, na versão do Gênesis, era um produto derivado do homem. Nesse aspecto, tudo o que foi associado ao feminino deixou de ser considerado em sua especificidade, passando a ser tratado como o negativo daquilo que é hegemônico (o masculino).

No plano da sexualidade, o órgão genital masculino e as representações associadas a ele passaram a ocupar o lugar de grau zero da sexualidade, enquanto o órgão genital feminino veio a ocupar o lugar de menos um, do enigmático, do desconhecido.

Porém, como foi possível conceber a sexualidade feminina como sendo o modelo negativo do masculino?

Voltemos um pouco no tempo para lembrar que, desde a Idade Antiga (4000 a.C. - 476 d.C.), o mundo se debatia com a problemática do feminino e da mulher através da ocorrência da histeria. Hipócrates (460 - 375 a.C.) e Platão (427 - 347 a.C.) defendiam a tese de que a histeria era uma enfermidade orgânica de origem uterina e, portanto, especificamente feminina. Eles imaginavam que o útero era o responsável direto por tudo quanto dizia respeito ao mundo feminino, alimentando a crença de que a anatomia designava seu destino e único desejo: o de ter filhos. Nessa perspectiva, o útero não deveria ficar inativo e estaria sempre a serviço da procriação para o próprio bem estar psíquico da mulher (LAQUEUR, 2001).

Na Idade Média (476 d.C. – 1453 d.C.), o útero ainda era o responsável pelo comportamento emocional e moral das mulheres, bem como aquilo que definia o lugar social delas: o lar, na posição de mães. No período do obscurantismo medieval, milhares de mulheres foram queimadas vivas nas fogueiras da inquisição. Durante quatro (aproximadamente do século XIV até meados do XVIII) séculos de caça às bruxas, no auge do tempo das fogueiras, vamos presenciar a repressão sistemática do erotismo feminino: guiada pelo Malleus Maleficarum, também conhecido como O Martelo das Feiticeiras (escrito em 1484 pelos monges dominicanos alemães Heinrich Kramer e James Sprenger), processa-se a mais delirante perseguição às mulheres e ao prazer a elas associado. O mais importante tratado sobre a tortura apresenta o fenômeno da anestesia histérica diante das picadas das agulhas como uma prova da insensibilidade demoníaca (TRILLAT, 1991).

Entre os séculos XII e XVII, a mulher foi estigmatizada como a representação do mal. Filha e herdeira de Eva, fonte do Pecado Original e instrumento do diabo sobre a face da Terra, seu corpo feminino era visto como um conjunto de imperfeições, quer do ponto de vista moral, quer fisiológico, transformando-se em algo maligno, essencialmente impuro. Ligada à natureza, à carne, ao sexo e ao prazer, ela foi responsabilizada por induzir o homem à traição e ao pecado. Essa concepção enaltecia o homem enquanto a mulher e a sexualidade eram penalizadas como causa máxima da degradação humana (NUNES, 2000).

No século XVII (plena Idade Moderna 1453-1789), o neurologista francês Charles Lepois (1563-1633) levantou a tese de que os sintomas histéricos se originariam no cérebro e seriam comuns aos homens e as mulheres, sendo um absurdo atribuir sua origem à matriz. Porém, foi o anatomista inglês Thomas Willis (1622-1675) quem realmente a explicou como sendo uma patologia cerebral (TRILLAT, 1991).

Essa posição pouco alterou a associação existente entre o feminino e a histeria e quase nada modificou a condição da mulher, que, no século XVIII, desempenhava o papel de propiciar as condições necessárias para que o homem pudesse produzir seu saber. As mulheres não tinham acesso ao estudo, viviam exclusivamente para o âmbito doméstico, e sua ambição era passível de castigo. Dessa forma, a mulher não podia desejar, senão ser desejada; ela era pensada desde o desejo do outro: o homem (ROITH, 1989).

Por essa época, eclodia a Revolução Francesa (1789 - 1815), que punha em cheque o sistema político e social então vigente na França e no resto do Ocidente. Esse movimento revolucionário serviu também para as mulheres denunciarem a sujeição em que eram mantidas e que se manifestava em todas as esferas da existência humana (jurídica, política, econômica, educacional). A partir daí, elas puderam começar a se interrogar sobre sua própria identidade e refletir sobre a inexorabilidade de seu destino.

A mulher do século XIX fez uma passagem da condição de herdeira de Eva à de filha da Virgem Maria. Essa imagem da santa representada pela Madona com o menino Jesus ganhava o status do que há de mais sublime e santo na feminilidade. Na medida em que a maternidade aparecia como um ideal ao qual a mulher deve almejar, a visão dos órgãos femininos transcendia a categoria da perfeição, e o útero passava a ser considerado um órgão nobre (NUNES, 2000).

Banhada pelas novas formas de manifestações histéricas, a medicina apresenta as etapas fisiológicas da vida feminina como doenças, sendo a mulher vista como um ser eternamente enfermo. É nesse panorama que encontramos o neurologista francês Jean-Martin Charcot (1825-1893), que desenvolveu trabalhos sobre a etiologia traumática da histeria, ensinando que a formação do sintoma histérico era de natureza funcional. Nessa época, a cura da histeria saiu do âmbito familiar, onde o controle dos sintomas se dava através do casamento, e se trasladou às mãos do médico encarregado de domar a feminilidade rebelde (TRILLAT, 1991).

Entre uns e outros tratamentos bizarros, o saber psiquiátrico seguia fazendo suas incursões exploratórias no corpo feminino, cobaia dos experimentos sádicos de homens que não as escutavam, mas as tocavam intrusivamente.

Foi nesse cenário que Freud (1856 – 1939) emergiu com a proposta de não mais tocá-las, senão de adentrar em seu universo psíquico a fim de escutá-las em suas penas. Através da compreensão dos afetos que a fala continha, Freud promove uma espécie de decodificação dos sintomas histéricos, inaugurando uma nova via de leitura para esses fenômenos.

Como componente dessa nova perspectiva, Freud (1896) postula uma origem traumática para a sexualidade, já na infância, a partir de experiências de sedução. Tais experiências explicariam a etiologia das enfermidades nervosas, em especial, das neuroses histéricas, revelando que a causa da histeria era sempre de natureza sexual.

Pouco tempo depois, Freud (1950 [1892-99]), na famosa carta 69 a Fliess, de 21 de setembro de 1897, abrirá mão dessa teoria, renunciando ao conceito de trauma real e da cena de sedução e passando à concepção de uma sexualidade oriunda de um organismo corporal que se excita endogenamente. Dessa maneira, os processos psíquicos se iniciariam a partir do próprio sujeito, tendo uma origem claramente endógena, predeterminada, na qual o papel do outro adulto não ocupa um lugar primordial na fundação do inconsciente nem na constituição da sexualidade.

Gostaríamos de ressaltar que ao longo da trajetória psicanalítica, não só as variantes do modelo terapêutico elaborado por Freud, como também as interpretações ou leituras de seus textos se diversificaram e se multiplicaram. Laplanche (1988, 1970, 1992a, 1992b, 1997, 2001), por exemplo, trabalha os conceitos freudianos confrontando suas contradições. Estuda Freud sempre com a intenção de criar uma nova espiral que abra outros caminhos ao pensamento. Possui uma produção conceitual própria, que o converte em um dos psicanalistas mais respeitados de nosso tempo. Famoso por ser rigoroso em suas colocações e profundo conhecedor da obra freudiana, Laplanche se posiciona claramente a favor do conteúdo sexual do inconsciente.

Laplanche (1988) resgata a via da sedução, que, a seu ver, é recalcada pelo próprio Freud em sua obra e desenvolve a Teoria da Sedução Generalizada e o conceito dos significantes enigmáticos, com vistas a retomar a prioridade do outro na fundação do inconsciente, recusando-se a pensar que o infante parta de uma sexualidade dada como algo inato.

Nesse aspecto, o inconsciente possui um caráter rigorosamente cultural, é efeito do recalque e, indubitavelmente, produto do encontro com o inconsciente do outro. Não se trata simplesmente de algo externo e ininteligível para o sujeito infantil, mas de algo que é alheio ao próprio emissor desse mundo simbólico. Trata-se de uma relação enigmática do emissor com seu próprio inconsciente.

Com isso, desejamos assinalar que a Teoria da Sedução Generalizada (LAPLANCHE, 1988) nos possibilita ver a psicogênese do feminino de um ângulo bastante diferente. Pensar a sexualidade feminina sobre as bases de um endogenismo da pulsão sexual ou de uma sexualidade infantil que todo sujeito traz consigo, como traria consigo um inconsciente, presente assim desde o começo, não é o mesmo que colocá-la sobre a base de uma constituição exógena da pulsão sexual.

Já Freud (1931; 1933; 1937), ao manter uma concepção do inconsciente como originado endogenamente, de uma sexualidade infantil dada de forma espontânea e de uma teoria falocêntrica para explicar a gênese da psicossexualidade humana, pôs a mulher num continente negro; não entendeu a essência do seu desejo; remeteu-a aos poetas e, ao final de sua obra, vinculou a questão da feminilidade com a castração, considerando-a um obstáculo intransponível para o êxito da cura.

É certo que a construção do feminino na obra freudiana apresenta muitos pontos ambíguos, contraditórios e enigmáticos, pois muito dificilmente uma mulher aceitaria a condição feminina em sua versão imaginária infantil, da castração absoluta. Ademais, as principais ideias de Freud sobre a sexualidade feminina e sua feminilidade são concebidas desde uma análise comparativa que toma o homem como modelo-padrão, calcando o estudo do seu desenvolvimento psicossexual sobre as ciências da fisiologia, da anatomia, que determinava o destino da mulher, e da biologia, que estabelecia a hierarquia entre os sexos. Isso nos induz a pensar que: ou a mulher não se ajusta à teoria da feminilidade proposta por Freud ou é a teoria de Freud que não dá conta do feminino.

Curiosamente, ele transformou o mundo da mulher em algo obscuro e enigmático, quando foram precisamente mulheres como Dora que se deitaram em seu divã. Ora, se a histeria é o resultado de uma defesa contra desejos proibidos, então seria esse o drama de Dora, preferir a insatisfação ao risco do desejo? Ana O. havia ensinado que a sua fala continha os recursos necessários para fazer uma limpeza na chaminé, declarando que a cura estava nos afetos que a fala continha. Mas, algo escapou no percurso da fala à escuta porque, como disse Lichtenberg, talvez a teia saiba muitas coisas que a chaminé ignora.

O que precisamente Freud não logrou escutar no discurso dessas mulheres que ele mesmo convidou a falar? Parece que na passagem do silêncio ao discurso algo restou, sem que Freud pudesse ou desejasse ver, mantendo com isso um ponto enigmático sobre o feminino.

Nesse sentido, poderíamos pensar junto com Maria Rita Kehl (1998) que só aquilo que um homem se recusa a saber sobre seu próprio desejo seria capaz de produzir o efeito de mistério sobre seu objeto, nesse caso, o desejo da mulher.

A mulher freudiana terminou sendo concebida como um ser anatomicamente inacabado ao contrário do homem que possuía um corpo perfeito, posto que a natureza lhe havia presenteado o pênis, um órgão genital com vida própria, digno de ser apreciado em sua forma estética fomentando no homem a ilusão de ser um ser completo o que obviamente lhe induziu a negar a falta constituinte de todo ser humano.

Desde os inícios da civilização ocidental, o pênis foi muito mais que uma parte do corpo: foi uma ideia, uma medida-padrão conceitual do lugar do homem masculino no mundo. Isso porque os aspectos culturais e sociais entram em cena para confirmar a hegemonia do macho, o que implica dizer que o pênis foi, ao longo de toda a história da humanidade, investido de grande valor material, estético e psíquico. Foi divinizado pelas culturas pagãs do mundo antigo, endemoniado pela Igreja Romana em seus começos e, mais adiante, secularizado por anatomistas como Leonardo da Vinci (1452-1519).

Segundo Friedman (2002), os homens ostentarem um pênis é um fato científico, mas como pensam a esse respeito, como se sentem em relação a ele e o usam, não o é. Com isso, assinalamos que ser mulher não é mais enigmático que ser homem, pois o autêntico enigma é o da sexualidade humana em geral. Pois bem, sabemos que existe um desejo inconsciente que é enigmático a qualquer das criaturas humanas, bem como existe um desejo consciente que não se faz nada enigmático.

Dessa forma, o desejo feminino só é enigmático se comparado a uma espécie de transposição ou de uma identificação do feminino ao histérico. E ao colocar a mulher como alguém que, todavia não é, mas que deve vir a ser; como alguém excluído da palavra; um ser que não existe; o inverso do masculino; uma mulher que desfruta de um gozo místico que ela mesma desconhece; que é algo inalcançável, certamente deve-se colocá-la no discurso histérico. Nesse sentido, histeria e feminino passaram equivocadamente ao longo da história da construção da subjetividade feminina a serem considerados sinônimos.

Assim, também sucedeu com a teorização freudiana, que em grande parte de sua obra tende a confundir as relações entre histeria e erotismo feminino. Atribuímos boa parte dessa confusão a uma generalização de certas categorias, que inserem aquilo que é característico da histeria à teorização da sexualidade feminina (SCHAEFFER, 2000).

Freud, em suas hipóteses teóricas sobre a sexualidade feminina, também as recheou com o que corresponderia à histeria. O que dizia respeito à psicopatologia histérica foi atribuído à mulher. Dessa forma, a proposta freudiana sobre a sexualidade feminina considera em muitos aspectos como configuração normal aquilo que é próprio de diferentes constelações psicopatológicas.

Ademais, a feminilidade anunciada por Freud em 1931 e 1933 se refere ao papel da mulher na procriação, circunscrevendo a feminilidade como um paralelo da maternidade. Felizmente, hoje sabemos que o feminino se diferencia da histeria, porque o percurso do feminino não é o percurso histérico. E a mulher do século XXI é sujeito de um desejo cuja satisfação está além da aposta freudiana no casamento e na maternidade (KEHL, 1996).

É bom lembrar que os corpos de homens e mulheres não somente sustentam suas diferenças sexuais, mas também sustentam nelas os fantasmas que, desde o imaginário social, se constituem a esse respeito, dando viabilidade a seus respectivos e variados discursos ideológicos (FERNÁNDEZ, 1993).

A leitura do feminino deve surgir a partir do feminino e não pela via do discurso que alimenta o falocentrismo, que fala da origem do feminino através do masculino. Jacques André (2002) propõe que o feminino está nas origens da psicossexualidade humana. Entende a teoria da feminilidade como aquela que contradiz a teoria falocêntrica de Freud. Segundo ele, a sexualidade feminina, ao contrário do que propunha Freud, não é uma formação incerta e secundária da história edipiana, mas sim uma formação primária.

Pensa-se, pois, numa feminilidade que está profundamente ligada à constituição do sujeito psicossexual. Jacques André (1999; 2001; 2002) retomou a proposta freudiana de que o elemento essencialmente recalcado é sempre o elemento feminino, montando uma articulação entre o feminino e a alteridade, entre o feminino e o outro dentro de nós, atribuindo um caráter vital ao par feminilidade-passividade nas origens da psicossexualidade.

A tese da feminilidade constitutiva da sexualidade humana remete diretamente à ideia da passividade originária no estabelecimento da ordem pulsional humana. As primeiras experiências passivas do infante e a posição feminina tendem a aproximar a psicogênese da feminilidade à gênese da psicossexualidade humana, ao aproximar o elemento feminino ao inconsciente. A questão da sexualidade feminina conduz a um retorno às origens, das origens da sexualidade feminina ao feminino nas origens da psicossexualidade humana.

Na concepção de Emilce Dio Bleichmar (1997) a feminilidade preexiste à menina, à mãe e ao pai, e o estudo de sua ontogenia não pode deixar de fazer-se desde a prioridade da concepção da feminilidade nas instituições do simbólico que a constituem.

Esta feminilidade originária é uma feminilidade comum a todos os seres humanos independentemente do sexo. Cada um, ao nascer, é precipitado às turbulências das transformações do nascimento e recebe os efeitos psicossomáticos da feminilidade primária. Não se trata de uma feminilidade de mulher, mas do elemento feminino preponderante nessa etapa da vida. A feminilidade primária, então, constitui uma primeira representação da passividade da criança perante a uma situação traumática, em que o par feminilidade-passividade adquire um caráter vital nas origens da psicossexualidade. O feminino, portanto, está na origem da constituição psicossexual de todos os seres humanos.

Nesse sentido, a única e verdadeira situação da qual nenhum ser humano pode escapar é a sedução originária. Uma situação antropológica fundamental, calcada numa assimetria estruturante. Um infante confrontado com um mundo adulto que, de entrada, lhe envia mensagens impregnadas de significações sexuais inconscientes, que são percebidas como uma exigência a “traduzir”.

Apoiados na Teoria Tradutiva do Recalque (explicitada na antiga carta 52 a Fliess, de 6 de dezembro de 1896), somos convidados a fazer um movimento de destradução das velhas traduções que não foram bem sucedidas devido aos sintomas que elas suscitam. Laplanche (1992a), inspirado nos textos de Walter Benjamin, assinala a permanência de uma traduzibilidade que exige e resiste ao sentido. Todo texto já é uma tradução originária de outra coisa e toda tradução é traiçoeira, porque sempre deixará algo sem revelar, mas também acrescentará um novo elemento a sua história, algo regenerador.

Todos nós somos seres autoteorizantes, e é precisamente essa capacidade de autoteorizar que seguirá instigando o ser humano a construir, desconstruir e reconstruir sempre novas formas de escrever a vida e seus enigmas. Dessa forma, acreditamos que, devido a uma falha na tradução teórica freudiana, o feminino passou a promover contínuas aberturas no campo da teoria psicanalítica, a modo de um sintoma que durante todo o tempo insiste em fazer-se presente como algo que foi recalcado em suas origens e que com seu retorno nos convida a uma nova leitura.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Av. Nossa Senhora dos Navegantes, 370, 1º andar - Tambaú
58039-110 - João Pessoa/PB
Fone: (83)3042-4782
E-mail: m.muribeca@gmail.com

Recebido: 05/04/2010
Aprovado: 22/06/2010

 

 

1 Doutora em Psicologia (Fundamentos Psicanalíticos) pela Universidade Autônoma de Madrid - UAM - Madrid - Espanha.

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