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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.33 Belo Horizonte jul. 2010

 

 

A clínica do traumatismo sexual: mediação e desengajamento do traumático

 

The clinic of sexual trauma: mediation and trauma disengagement

 

 

Philippe Bessoles;I,1 Marilúcia LagoII,2

I Universidade Paris 7

IIUniversidade Tiradentes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O traumatismo sexual aparece na ordem do irrepresentável. Sua clínica implica a interpretação de seus danos e de suas formas silenciosas de manifestação tais como somatizações, déficits de aprendizagem, comportamento agressivo, além de manifestações difusas no campo do sensorial e do cinestésico. O traumatismo sexual, antes de tudo, é um traumatismo dos afetos e das expressões mais rudimentares da sensorialidade. O conteúdo traumático guarda as aglutinações sensoriais e sensitivas do trauma. Encarna verdadeiramente a onipresença do trauma independentemente da distância temporal e corporal entre os fatos ocorridos e a psicoterapia. O crime sexual continua atual, mesmo após anos ou décadas. Este artigo apresenta uma proposta terapêutica de base psicanalítica para a clínica do traumatismo sexual, que inicia com a apresentação ao traumatismo e caminha para o desengajamento do conteúdo traumático. Com o objetivo de separar a vítima do agressor e a vítima da agressão, apresentamos ainda, neste artigo, a proposta terapêutica da criação de um espaço de mediação, necessário para o distanciamento psíquico, tendo por base o modelo dos espaços transicionais proposto por Winnicott.

Palavras-chave: Traumatismo sexual, Regressão, Mediação, Representação


ABSTRACT

The sexual traumatism appears in the order of the unrepresentable. Their clinic presentation involves the interpretation of their injuries and their silent forms of manifestation such as somatization, learning deficits, aggressive behavior, and diffuse manifestation in the sensory and kinesthetic field. Sexual traumatism, after all, is a trauma of the affections and the most rudimentary expressions of the senses. The traumatic content saves clumps of the feelings and of the sensitivity of the trauma. It truly embodies the ubiquity of the trauma regardless of the temporal distance between the body, the events and the psychotherapy. The sex crime continues fresh, even after years or decades of its occurrence. This paper proposes a therapy based in psychoanalysis for the clinic of sexual trauma that begins with the presentation to the traumatism and walks to the disengagement of the traumatic content. With the aim of separating the victim from the aggressor and from the aggression, we present in this article, a therapeutic proposal for the creation of a mediation space necessary for the psychic distance, based on the model of transitional spaces proposed by Winnicott.

Keywords: Sexual trauma, Regression, Mediation, Representation.


 

 

Presença do traumatismo

Comecemos por pensar o que está em jogo nas patologias vitimárias e nas necessárias mudanças no processo terapêutico. A adesividade traumática constitui um primeiro desafio determinante. O conteúdo traumático guarda as aglutinações sensoriais e sensitivas do trauma. Encarna verdadeiramente a onipresença do trauma, independentemente da distância temporal e corporal entre os fatos ocorridos e a consulta clínica. O crime sexual continua atual, mesmo após anos ou décadas. Não raros são os relatos de que, mais de dez anos após o ocorrido, algumas vítimas apresentam uma sintomatologia traumática persistente e invalidante, susceptível de se tornar intensa a todo momento.

Essa possibilidade de atualização intensa do trauma caracteriza em geral as vítimas da criminalidade sexual. Apesar do empenho no processo terapêutico, os fatores de vulnerabilidade ficam potencialmente em risco patogênico tanto no plano semiológico como no estrutural. Conforme relatos televisuais ou manuscritos de algumas vítimas, nem o distanciamento nem os contrainvestimentos do tipo sociológico parecem ter uma eficiência comprovada. Estas remarcas iniciais não invalidam os passos pela cura através do processo terapêutico. Incidem sobre os riscos cicatriciais de todo genocídio individual e coletivo do qual emerge a clínica do traumatismo sexual. Esse aspecto sublinha a fragilidade cataclísmica do trauma quando abala a estrutura fundadora (originária) do processo identitário do sujeito. Paradoxalmente, essa fraqueza é necessária, não em lógica traumática, mas como atenção renovada à autoestima. Exprime-se em dinâmica de investimento resiliente, em forma de atenção às sensorialidades construtivas e criadoras ou a novas sexualidades e sensualidades florescentes.

O trauma torna-se a heresia maior do sexual. Sua cura se atesta na confiança ao feminino não reduzido ao sexual. Mesmo anos depois da ocorrência do trauma, algumas pacientes trazem esse conteúdo em forma de falsa coincidência:

Agora, me sinto bem, foi difícil aceitar, mas agora, estou bem comigo mesma, posso conversar com um colega homem sem abaixar os olhos, posso dizer brincadeiras sobre sexualidade, mas não aguento as brincadeiras mais graves, não suporto as mulheres vítimas de estupro que fazem do seu drama um fetiche tais como um soldado de guerra exibindo suas medalhas […].

Também pode estender-se às inscrições de maternidade para algumas vítimas.

 

A criação de um espaço terapêutico de mediação

Com o objetivo de separar a vítima do agressor e a vítima da agressão, tentamos introduzir o espaço necessário ao distanciamento psíquico, tendo por base o modelo dos espaços transicionais proposto por Winnicott (1975). Esse descolamento se encontra materializado pela passagem fenomenológica da presença do traumatismo à apresentação do traumatismo. O que está em jogo nessa estratégia terapêutica é a necessidade de introduzir uma mediação para promover uma posição subjetivante, ou seja, sem a absorção na espiral mortífera traumática.

Concretamente, esse espaço é criado gradualmente pela promoção dos afetos no âmbito benevolente da dinâmica terapêutica. O objetivo é (re)criar um espaço básico de confiança que possa acolher toda a violência sofrida. Esta se exprime em gritos, choros, abandono corporal, colapso tônico, tremor, caretas, etc. O traumatismo sexual, antes de tudo, é um traumatismo dos afetos nas expressões mais rudimentares da sensorialidade. A violação/invasão confisca essa expressão. Essa fase delicada num plano terapêutico é dirigida, como vimos em trabalhos anteriores, para esvaziar a efração traumática do seu excedente de sensorialidade (BESSOLES, 1995, 2008). Nessa fase, a escuta atesta a necessidade do livramento sensorial: “quero livrar-me para sempre de toda essa merda”, “sofro duma diarréia ininterrupta há oito dias... esvazio-me continuamente”, “queria poder lavar-me no interior”. Acompanhadas algumas vezes de estados ou experimentações confusas, as (re)vivências indiferenciadas aumentam os distúrbios sobre um plano semiológico.

As (re)vivências traumáticas podem causar equivalentes delirantes de indistinção ou de indiferenciação do tipo ilusões ou alucinações onde cada um (o terapeuta, a família, os homens em geral) pode ser percebido como criminoso ou potencialmente criminoso, perseguidor, violento ... e estuprador. Acontece algumas vezes durante o processo terapêutico quando a indistinção entre dizer e fazer está em causa, inclusive durante a pesquisa anamnésica ou invasão de afetos de dor. Ainda que transitório, esse momento é particularmente prolífico sobre o plano semiológico com uma agravação da sintomatologia. Um aspecto já sublinhado anteriormente indica que existe uma canalização dos afetos sob formas primárias não secundarizadas. Essas formas de linguagem são necessariamente violentas e destrutivas em palavras diante da violência sofrida. Podem encontrar, ao final, uma passagem no ato de palavra, também potencialmente destrutivo.

A função terapêutica, nesse momento, é a do holding e da resistência, para não potencializar a experimentação destrutiva que o paciente sofre. A função do resto diurno, promotor de pensamentos relativos ao trauma, promete uma saída do drama para se representar não como vítima, mas como pessoa vítima de uma violência. As falas de algumas pacientes comprovam essa mescla de indistinção e violência: “não tem direito de me fazer isso! Antes, eu ia um pouco melhor e agora estou cada vez pior. Você me faz reviver o estupro com suas perguntas. Será você sádico ou o quê? Tenho pesadelos agora que pensava ter esquecido tudo. Voltou tudo por sua culpa.” Os equivalentes delirantes e a sua projeção são constantes: “duvido que o meu colega não tenha tido uma ereção quando almoçamos juntos.”

Esse amálgama necessário testemunha a invasão causada pelo traumatismo e a contaminação das figuras ou as imagens criminógenas. A possibilidade de criação de um espaço de encenação ou de protorrepresentações substitui a cena do trauma. Esse espaço é promotor do trabalho da segunda fase, que nominamos de apresentação ao traumatismo. Essa irá conceder à alteridade uma intenção provisória criminógena. Tem o lucro, através da desqualificação (sem dúvida pela identificação projetiva), de introduzir um espaço entre a vítima e um agressor potencial. A atribuição do perigo torna-se exterior, mesmo se continua presente. Gera o espaço potencial de uma elaboração na iminência do perigo. A diferença da fase anterior é que desata as adesividades e as introjeções. Essa área de criatividade particular abre um espaço de permissão à própria violência do paciente que convém ser acolhida mesmo com toda sua virulência e destrutividade. No caso de uma criança, pode se apresentar em forma de uma agressão a uma boneca que a criança vai despedaçar ou se dirigir contra outro adulto de forma bastante agressiva ou vulgar.

 

A apresentação ao traumatismo

Esta fase é bastante delicada. Seu objetivo é promover a apropriação do traumatismo em posição mediatizada e distanciada. É marcada por uma grande verbalização dos afetos que se tornam paroxísticos nas suas expressões e são reintegrados na ordem da linguagem. O crime é nomeado, inclusive no seu indizível: “lhe cuspirei na cara, lhe arrancarei os órgãos genitais, minha psoríase me dá nojo tanto como ele me fez vomitar, lhe cortarei os t... e o farei comê-los...” Os discursos de ódio e de destrutividade são frequentemente exacerbados, desde que se chocam com certa incapacidade das palavras em traduzir a emoção traumática. Os gestos acompanham sempre o discurso para marcar ainda mais a visceralidade do momento da enunciação. A sensorialidade se desafoga sem o desfalecimento sensitivo e cinestésico da fase anterior, mas com a violência do simbólico suportada pela linguagem. Existe, algumas vezes, um prazer sádico ao usar palavras e cenas obscenas diante do desespero sofrido. Certas vítimas vão até a provocação caracterizada (indelicadeza por exemplo) como sair da consulta batendo a porta ou proferindo ameaças no corredor. A reação terapêutica negativa torna-se mais visível. O movimento de ir e vir testemunha o distanciamento que se constrói progressivamente pelas alternâncias de ódio e de destrutividade.

A travessia do traumatismo constrói uma dominante psíquica que se desliga progressivamente da sua factualidade no sentido da ocorrência criminosa e exclusivamente real. É o princípio de uma posição vitimária distanciada do desfalecimento traumático imediato e devorante. O paciente ainda está em uma situação precária. Passa de um estado de ser, uma matéria traumática, a ter sofrido um traumatismo horrível. Nesse primeiro movimento da curva terapêutica, o paciente torna-se mais complacente com o terapeuta. Porém, existe nesta segunda fase, a propensão de surgirem distúrbios somáticos. Em pacientes mais jovens ou em idade escolar, o efeito dirige-se também ao nível das performances escolares sob forma de dificuldades, por vezes maiores, mas sem comprometerem o conjunto dos investimentos. Parece que o conteúdo sofre um deslocamento como última resistência à representação ideica.

 

A (re)presentação do traumatismo

Esta terceira fase atribui ao processo terapêutico uma direção mais clássica, a condição de ficar vigilante sobre os riscos de reações terapêuticas negativas. Nunca nada é definitivo dentro do contexto da criminalidade sexual, mas seria errado dizer que as sequelas póstraumáticas nunca são resilientes. Em termos figurativos, podemos dizer que o processo terapêutico ajuda a cicatrização, ainda que algumas cicatrizes fiquem temporariamente sensíveis ou dolorosas. É nesse sentido que insistimos no aspecto da fragilidade da pessoa vítima, não no sentido da desconfiança permanente, mas no de restabelecer de maneira dinâmica, e permanente, a autoestima. A representação do traumatismo abre a possibilidade dos processos internalizados do psiquismo, notavelmente no plano econômico. Essa gestão econômica se torna possível graças à reconstrução identitária, definida pelas duas fases anteriores. Permite uma reconstrução interacional tanto externa como interna. O trauma não é só apreendido na dimensão dinâmica pulsional, mas através das secundarizações, devido às (re)ligações afeto/representação. O afeto deixa de ser sinônimo de desintegração psíquica, e a representação fica suficientemente desintoxicada (BION, 1966, 1969) do seu excesso traumático. Ao mesmo tempo, há a reconstrução gradual dos espaços endopsíquicos, e o paciente reelabora de maneira gradual a ligação intersubjetiva, de alteridade, psicossocial, cultural, etc.

Esse terceiro tempo terapêutico permite atribuir ao trauma seu gênero não sexual para o conferir (e o tratar) na sua dimensão destrutiva. A imputação do registro da violência criminal participa do processo de integração de uma sexualidade não invasiva. O encontro terapêutico tem que (re)sexualisar o sexo e promover a dinâmica do ser desejoso. Esse desejo não pertence ao registro do genital. Promove a erotização (no sentido de Eros = pulsão de vida) do corpo. Tem a função de (re)atribuir um desejo de agradar, de seduzir, de mudar de look, de abrir-se a outros encontros gratificantes, de consentir a sensualidade para si e para os outros, é um passo em direção à reapropriação de si tal como a reapropriação de uma casa depois de um assalto. A invasão do espaço íntimo da habitação pode conduzir a mudança de casa, de reforçar as aberturas, de limpar os danos ocasionados, de repintar as paredes ou de mudar a ordem da mobília, instalar um alarme, etc. Podemos dizer, com reservas, que a reforma psíquica procede de um trabalho similar com todas as saídas possíveis e individuais de resiliência. Encontra-se uma analogia com o lugar geográfico como uma metonímia do lugar psíquico. Esse lugar geográfico também pode ser uma oportunidade de estabelecer, novamente, as escolhas profissionais ou afetivas, por exemplo, de mudar de centros de interesse culturais ou outros.

A reconstrução psíquica evita futuros riscos potenciais e abre uma nova lucidez, esclarecida pelo horror. O drama pode se historicizar como um momento dramático da história do paciente, mas não pode mais (sendo assim limitado) devastar toda a história vivida nem a história a viver. Reinscrever o tempo pertence a essa fase em que a reparação significa dar um tempo para si, recuperando o que estava confiscado pela tutela do trauma. Não esquecer o traumatismo permite, ao mesmo tempo, consentir um trabalho de memória para si como um momento de experiência última, mas ultrapassável, que permite o esquecimento sem esquecer. O trauma acede ao estatuto da lembrança, ultrapassando a revivência traumatogênica para fazê-la aceder à rememoração.

 

Interface do sensível e do senso: o espectro de representabilidade

O espectro de representabilidade corresponde a uma faixa individual de representabilidade acessível ao representável traumático. Também supõe um irrepresentável como o impensável do traumatismo sofrido. Situa-se na interface do sensível e do senso e pode cobrir as zonas indizíveis sem produzir o pathos. Fica na margem da expressão formalizada ou formulada, tal como um sentido partilhado ao seio do processo terapêutico. Dizer tudo corresponderia a um novo cataclisma psíquico. Essa parte cega não pode ser traumatogênica. A interface do senso e do sensível é um movimento do corpo que testemunha uma compreensão. Aparece como um lenço que damos a um paciente ou uma compaixão do tipo “fale no seu tempo... compreendo que seja difícil”.

Nem tudo pode ser dito do trauma. Respeitar essa parte maldita que não se pode dizer não significa uma complacência à patologia. Essa atitude confere à experiência última sua experimentação exclusivamente pessoal, como se sua formulação ou sua verbalização fosse sinônimo de despossessão ou de despersonalização. Guardar em si uma dor ou uma parte dessa dor não é necessariamente patogênico ou masoquista. Isso significa guardar uma parte do que é vivo, mesmo se é dentro do horror, para resistir à viuvez que o testemunho aportaria. Esse aspecto difícil de compreender tende a conservar uma memória de uma passagem, de uma experiência última da qual se saiu vivo. Também corresponde, sem dúvida, a manter uma parte do íntimo que não pode se dizer totalmente sem tocar as exibições não necessárias. Permite ao terapeuta reinscrever o pudor, como se dizer tudo fosse impudico. Esse aspecto não significa um trabalho sistemático sobre certos detalhes da cena traumática. Esse trabalho toca o pathos. Que ele se esconda nos pormenores ou no geral é indiferente. Etimologicamente, obscenus vem de pecado, portanto convém restituir a obscenidade à cena criminosa e ao criminoso para subtrair disso a vítima.

A investigação policial procede de uma lógica, conferindo à credibilidade e às provas sua própria sequência. A vivência da vítima é outra. Essa vivência pode se inscrever dentro de um processo de sobrevitimização, incluindo a histerização da cena. Também pode eludir ou transformar (aumentando ou minimizando) a realidade dos fatos para responder às sugestões conscientes ou inconscientes tanto da polícia como do terapeuta. Algumas vezes, a indução torna-se flagrante ou desconcertante como no caso de uma paciente que declamava quase de cor certas frases de um livro (que conhecemos) que trata das patologias consequentes ao trauma sexual. Os detalhes de que estamos falando não pertencem a essa lógica objetiva do processo de investigação policial ou jurídica. No caso da jovem paciente acima, as contradições decorrem de uma suspeita de falsas alegações. Ao contrário, as experimentações subjetivas podem invalidar as provas concretas através de uma profusão de detalhes, os mais horríveis possíveis.

A interface do sensível e do senso confere à subjetividade traumática sua importância na avaliação do traumatismo e nos seus remanejamentos terapêuticos. O risco de fascinação por seu próprio traumatismo como a fascinação de certos terapeutas pelas patologias vitimárias (independentemente da veracidade dos fatos) mantêm ou então alimentam um encrustamento patológico e o risco do crônico e da descompensação.

 

Clínica da aestésica

O traumatismo sexual é um traumatismo do sensorial. A aestésica responde a essa variável em que o sujeito se constrói através de sentidos sensoriais, sensitivos, cinestésicos e proprioceptivos. A inscrição pictográfica caracteriza a irradiação do traumatismo sexual pelo excesso de sensorialidade que ele gera. Essa saturação dos sensos vem do irrepresentável em representação, conduzindo a verdadeiras hemorragias de afetos inassimiláveis pela psiquê. Abrandar essa afluência, ou então essa torrente sensorial, implica a passagem do sensível ao senso segundo a proposição heurística da fenomenologia clínica. Isso supõe dois momentos terapêuticos essenciais e determinantes.

A passagem ao sensível depende da construção prévia e reconstrução dos agrupamentos psíquicos primários do Eu-pele para recriar um ambiente continente e sossegado para o paciente. Esse ambiente não é só psíquico, mas se conjuga na frequência das sessões. O teste da credibilidade do terapeuta, seu contato, seu olhar e sua veracidade, em que o paciente testa o falso para obter a verdade, etc. É um confronto da garantia para validar a resistência e a plasticidade do quadro físico e psíquico terapêutico no qual o terapeuta é interpelado e, em certos casos, provocado e agredido. O que está em jogo é a segurança que o fator continente psíquico aguenta para fazer face à irrupção do trauma.

A passagem ou a promoção do sensível revela a promoção da expressão dos afetos. Esquematizando o processo em uma referência à clínica fenomenológica, propomos a tríplice seguinte:

 

 

A pressão corresponde ao acolhimento e à promoção das sensações de sufoco, de contração, de espasmo, de convulsão, de rigidez, de constrição, de cãibra, etc. Define um alcance essencialmente proprioceptivo da ordem da experimentação cinestésica. A pressão é inexprimível, pois é somente quantitativa, a saber, tônica e clônica. É frequentemente agressiva no comportamento e na atitude. Engloba a linguagem articulada que não pode dizer nada sobre isso, somente um fluxo de onomatopeias, de suspiros, etc.

A impressão inicia a premissa não do sentir, mas do ressentir. Esta fase inicia uma apropriação. O terapeuta deve regular essa passagem para destoxificar os efeitos destrutivos. Sua capacidade de regular acompanha-se por reajustamentos constantes dos sentidos do paciente como dos seus próprios ressentimentos a acompanhar a travessia sensível das figuras do horror. Esse trabalho, composto por intervenções sutis, tende a reinvestir o trauma em uma posição subjetiva para expulsar a sua toxicidade. Governa a fase seguinte de expulsão do pathos através da mediatização e do distanciamento trauma/vítima.

A expressão renova a percepção subjetiva da ocorrência do traumático da qual o paciente foi objeto. Pressagia a representação nas suas formas iniciais perceptíveis para elaborar-se gradualmente na cena mental a sua simbolização. É importante ressaltar que os três tempos não são lineares nem contínuos. Eles se interpenetram e são interativos. Cada parte da cena traumática é independente das outras. Só o primitivo da representação poderá definitivamente unificá-los.

 

A promoção de afetos

O traumatismo sexual é a princípio um traumatismo dos afetos. Afetos que são eliminados para manter uma homeostase de sobrevivência precária. Experimentar algum sentimento, alguma emoção traz perigo. Fazer-se morto é a linha de conduta além da qual o paciente está em perigo. A promoção de afetos supõe a reconstrução preparatória de uma continência psíquica na qual eles possam desafogar-se. O fluxo de afetos, verdadeiramente hemorrágico, causa verdadeiros momentos de pânico. Promover os afetos consiste em requisitá-los dentro da normalização do ressentimento e da sua expressão. Normalizar a expressão de um terror, de um pânico, tende a conceder a dimensão humana da vida dos afetos, quaisquer que sejam. Empatizar não é o equivalente da contratransferência. É testemunhar, não uma neutralidade, mas uma comunidade de benevolente atenção ao que dói. Normalizar não é sinônimo de boa ou má expressão de afetos, reduzindo-o a uma expressão socializada não incomodante. É atribuir à brutalidade da sua expressão a sua brutalidade traumática de lágrimas, de choque, de dor. A vigilância do terapeuta deve referir-se aos efeitos da destrutividade da qual a expressão é potencialmente trazida tanto pelo paciente como pelo terapeuta. Tanto um quanto o outro podem, em certos momentos do processo terapêutico, como vítima ou como testemunha, tornar-se bode expiatório da destrutividade.

Aleijar o outro ou a si próprio permite objetalizar uma dor insuportável como descarregar a raiva em um inocente ou em um anônimo para focalizar ou cristalizar o drama sofrido. Esse aspecto é bem conhecido dos serviços pediátricos onde a criança abusada se prende a alguém demonstrando precisar de suporte para exteriorizar o mal sofrido. A destruição de um objeto serve para canalizar a destrutividade da qual a vítima é afligida. O risco interpretativo deve ser sublinhado em função da projeção do intolerável em si. Potencialmente na fronteira do risco paranoico, o terapeuta funcionando como suporte promocional de afeto, sofre por vezes, ataques verbais ou gestuais.

 

Restauração dos envolvimentos psíquicos primários

A restauração dos envolvimentos psíquicos torna-se preparatória de toda intervenção terapêutica na clínica do traumatismo sexual. Ela inclui as variáveis de reconstrução dos dados e das bases da imagem do corpo, do esquema corporal e do corpo fantasiado. Essa restauração abarca, em referência ao trabalho de Anzieu (1995), os significantes formais e a sua sensorialidade de dobraduras de encurvamento, de inclusão. Várias vezes, perguntamos ao paciente “O que você sente?” e não “diga-me”, para requisitar as expressões, incluindo as mais básicas ou ordinárias, da experimentação do corpo e de suas posturas. Essas experimentações, coaguladas na sideração psíquica, não podem viver no sentido sem o mínimo do ressentir, até mesmo o som de uma respiração parece sinônimo de ameaça. Atribuir a vida do corpo, voltar à palavra permite essa restauração dos envolvimentos psíquicos internos (pressão sanguínea manifestada pelo rubor, cólera contida pelo branqueamento da pele, tensão nos ossos ou nas cervicais, etc.)

 

A função clínica do trabalho de sonho e de pensamento

Tomamos emprestada de Pierre Fédida a expressão “resto diurno do terapeuta’’ para significar a função clínica de reinício do trabalho de sonho e de pensamento. A promoção dos afetos e das protorrepresentações passa por essa iniciação, ou melhor, inicialização, das solicitações e dos convites ao trabalho psíquico do trauma. Promover vem de promoção no sentido do movimento de pensar, e não dos pensamentos. Como no trabalho do sonho, o resto diurno é só um pretexto para a dinâmica do trabalho dentro e pelo sonho. Esse resto promove os movimentos da psiquê numa dinâmica de quase revitalização do psiquismo. Não sai necessariamente do registro verbal. A sua presença permite essa abertura ao relato traumático desde que a confiança básica esteja restabelecida. Essa confiança é sistematicamente testada pelo paciente algumas vezes de maneira extremamente violenta.

O terapeuta pode então condensar, dentro da transferência intensa e invasiva, todas as figuras perseguidoras e violentas que o paciente não pode elaborar. Esse trabalho do sonho acordado (no sentido genérico e não do sonho acordado) é promovido pelo início da interpretação. Esse início permite trazer à tona o trauma, sobre a cena terapêutica e não mais na cena do real. Isso funciona como uma muralha contra a realização real, é como um precursor da realização fantasmática. A cena sexual invasiva polui todas as outras cenas sexuais, incluindo as cenas fantasmáticas possíveis. O resto diurno está aqui bloqueado, coagulado de algum modo. Só se pode apresentar reassegurando-se de não-sexuação que vem dar a garantia de uma não-invasão possível. A revelação não tem estatuto metafórico e não é simbolizável. Torna-se um objeto concreto em um pensamento exclusivamente operatório. O dizer seria fazer.

A preparação da reconstrução supõe a restauração do contrato narcísico e da confiança em si e, necessariamente, nos outros. O objetivo terapêutico será o de restabelecer uma confiança na relação, não reduzida a um princípio, mas a uma credibilidade na relação respeitosa e de confiança entre duas pessoas de sexos diferentes. A questão não é o evitamento programado da sexuação e da sexualidade do paciente, mas sim a equivalência entre o seu sexo e o sexo oposto como gerador de violência. A diferenciação que sustentará o processo terapêutico terá raiz no amálgama feito pelo paciente entre sinceridade e tentativa de relação sexual. O resto diurno abarca esse jogo que produzirá o trabalho de pensamento e do sonho tanto nos seus aspectos destrutivos quanto nos construtivos. Tanto uma quanto outra posição conjugam o resto terapêutico. A promoção do resto diurno age também como uma redinamização das lógicas individuais do desejo. Seu início é a restauração do pudor que faz a revelação no imaginário e no simbólico e a não-realização no real (sem que seja irrealizável). Abrir a dimensão do realizável permite introduzir a ambivalência (e não a ambiguidade) das relações entre os sexos sem assinalar o outro na sua própria sujeição. A ambivalência permite reinscrever o trabalho de sedução, de reciprocidade de desejos, de prazer partilhado, etc., que pacifica a troca e a relação.

 

Referências

ANZIEU, D. Le moi-peau. Paris: Dunod, 1995.         [ Links ]

BESSOLES, P. Le dejà lá de la mort et du sexuel. Nimes: Théétète, 1995.         [ Links ]

__________. Viol et identité. Paris: MJM Fédition, 2008.         [ Links ]

BION, W. R. A linguagem e o esquizofrênico (1953). In: Novas Tendências na Psicanálise. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Zahar; 1969.         [ Links ]

BION,W.R.__________. Aprender com a experiência. In: Elementos de Psicanálise, cap. 26-28. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Trad. de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marilúcia Lago
Rua Francisco Rabelo Leite Neto, 439 - Apto 12 - Atalaia
49037-240 - Aracaju/SE
Fone: (79)9151-5595
E-mail: marilucialago@yahoo.fr

Recebido: 31/05/2010
Aprovado: 27/06/2010

 

 

1 Dr. Psychologie Clinique et Psychopathologie - Université De montpellier - France - HDR Habilitation a Diriger Recherche, Professor da Universidade Paris 7 et Universidade de Grenoble - França.
2 Doutora em Psicologia Clínica e Psicopatologia - Université de Nice Sophia Antipolis - França. Professora Titular da Unit.

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