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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.33 Belo Horizonte jul. 2010

 

 

Psicanálise e crítica literária

 

Psychoanalysis, literature and literary criticism

 

 

Stetina Trani de Meneses e Dacorso1

Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ

Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora

Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A psicanálise sempre se utilizou da literatura desde Sigmund Freud. A literatura, por sua vez, também se utiliza da psicanálise seja na construção de seus textos, seja na forma de crítica literária. Este artigo tem por objetivo analisar abordagens da Crítica Literária Psicanalítica e as várias formas de análise de um texto sob a ótica da psicanálise.

Palavras-chave: Psicanálise, Literatura, Crítica literária.


ABSTRACT

The psychoanalysis always made use of the literature since Sigmund Freud. The literature itself also makes use of the psychoanalysis either in the construction of their texts or in the form of literary criticism. The article aims to analyze Psychoanalytic Literary Criticism approaches and several analysis forms of a text under the optics of the psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalysis, Literature, Literary criticism.


 

 

E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem diante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.
Sigmund Freud

 

Sigmund Freud, durante sua produção, utilizou da arte para fazer uma articulação com os conceitos psicanalíticos. No suceder das décadas, principalmente após a Primeira Grande Guerra, os artistas na ânsia de quebrar os parâmetros vigentes, buscaram suporte na psicanálise. Literatura, arte e psicanálise continuaram se implicando. Profissionais da literatura e artistas de todas as áreas fazem cursos de psicanálise e leem seus textos. Por sua vez, os psicanalistas fazem cursos de letras, mestrados, escrevem, pintam, e produzimos encontros com a temática Psicanálise e Arte. Dois saberes se entrecruzando.

Em 1910, Freud, referindo-se a Leonardo da Vinci, escreveu que "o artista usa do pesquisador para servir à sua arte" (p.71). Assim consideramos importante que possamos investigar a partir dos dois saberes, este entrelaçamento. A base deste artigo é um capítulo da nossa dissertação de mestrado em Letras com o tema: "Máscaras", de Menotti Del Picchia, sob o enfoque da crítica literária psicanalítica. Naquele momento, foi sentida a necessidade de organizar um conhecimento de como os dois saberes comungam, de forma a respeitar os dois enquadres sem destituí-los de suas características. É esta pesquisa que agora apresentamos, de forma sintetizada e guardando as devidas restrições decorrentes da escolha dos teóricos de ambos os lados.

Comecemos pelos teóricos da crítica literária que explanaram sobre a crítica psicanalítica. Primeiramente, vamos esclarecer que crítica literária é uma atividade intelectual, reflexiva, usando raciocínio lógico-formal de acordo com a natureza do fenômeno que estuda, no caso, a obra de arte da linguagem.

Coutinho (1976) explica que, do final do século XIX até o início do século XX, a crítica literária era, em sua maioria, de cunho histórico, sociológico e biográfico, encarando a obra literária de fora, de sua periferia, na sua moldura histórica, no ambiente que a cerca, nas causas externas e elementos exteriores. A obra literária era vista como uma instituição social, um documento de uma raça, uma época, uma sociedade, uma personalidade. O movimento moderno da teoria crítica inclina-se na obra em si para analisá-la em seus elementos intrínsecos, precisamente os que lhe comunicam especificidade artística. É a crítica intrínseca, egocêntrica, operocêntrica, verdadeiramente estética, literária ou poética. Antônio Cândido (2000) analisou que o Romantismo concebeu de maneira nova o papel do artista e o sentido da obra de arte, pretendendo liquidar a convenção universalista dos herdeiros da Grécia e Roma, em beneficio de um sentimento novo, embebido de inspirações locais. O individualismo e o relativismo podem ser considerados a base da atitude romântica, em contraste com a tendência racionalista para o geral e o absoluto. Do egocentrismo surge como consequência natural o sentimento de missão, de dever poético em relação aos outros homens, em cujo coração se pode ler o bem e o mal, além das aparências.

Para Cândido (2000), a consciência literária deve ter ficado muito desamparada com a passagem do mecenato ao profissionalismo. A ruptura dos quadros sociais que sustinham o escritor alterou a sua posição, deixando-o mais entregue a si mesmo e inclinado às aventuras do individualismo e inconformismo. Para ele essa nova atitude deu origem ao individualismo acentuado e o desejo de desacordo com as normas e rotinas.

Tadié (1992) procurou esclarecer o novo rumo seguido pela crítica literária. Para o autor, a crítica literária a partir do século XX desejou se igualar às obras por ela analisadas; assim vários críticos são excelentes escritores como Roland Barthes, Jacques Revière e Maurice Blanchot entre outros. Isso aconteceu porque a obra de arte se modificou. Ela perdeu seu caráter sagrado e a unidade de sua significação, precisando de intérpretes. A interpretação passa a fazer parte do texto. O autor dedica-se à chamada "crítica dos professores", que nomeia como crítica científica. Considera que ela preserva o passado da literatura e proporciona uma descrição e interpretação mais precisa, mais técnica e mais científica. O diálogo mantido pela cultura entre todas as áreas deu origem a métodos que deram um final à ideia de que havia uma única maneira de comentar textos. Isso ocorreu devido à influência da linguística, psicanálise, filosofia e sociologia. Referindo-se aos alexandrinos, que já possuíam catálogos e inventários, pontua: "a crítica é a luz que clareia as obras do passado, sem as ter criado, que as domina, sem provocar seus iguais: é o farol de Alexandria"(1992, p.16).

Na introdução de seu capítulo sobre crítica psicanalítica, Tadié (1992) analisa que, se não quiser vagar no vazio, a análise do imaginário deve encontrar-se com na psicanálise. Para ele, até 1930 só havia o trabalho de Jacques Rivière sobre Proust e Freud. Em 1929, Charles Baudouin publica Psicanálise e arte, que pretende pesquisar as semelhanças que a arte mantém com os complexos, sejam pessoais e/ou primitivos, tanto junto ao artista criador como junto ao apreciador da obra. Baudouin, segundo Tadié, usa de complexos e conceitos da psicanálise para analisar a criação, procurando reconstituir a gênese da obra não por meio de manuscritos, mas pela biografia do autor articulada à situação recente. Em relação aos leitores, Baudouin (apud TADIÉ, 1992) escreve que realizam a leitura por meio das suas tendências inconscientes, projetando nela seus conflitos e suas soluções; nessa relação entre leitor e autor no plano inconsciente é utilizada a teoria dos sonhos. Para ele, a afinidade entre arte e sonho ocorre porque a obra faz sonhar. A comunicação não se processa de subconsciente para subconsciente, ocorre em uma região do primitivo, do inconsciente coletivo que se exprime nos símbolos e mitos e permanece na região do consciente, que a psicanálise tende a negligenciar.

Tadié (1992) passa a apresentar Charles Mauron e sua psicocrítica que implica interpretar o material literário com algumas informações biográficas. A crítica literária não busca um diagnóstico, o sintoma constitui a obra de arte. A tarefa é estabelecer o entrelaçamento de imagens, associações, sistemas metafóricos para chegar aos complexos clássicos. O símbolo vai exprimir ao mesmo tempo o inconsciente inferior e a espiritualidade superior. O inconsciente é monótono e, como uma obsessão, determina a obra, fixando-a. A psicocrítica é independente da época e do gênero literário considerados, seu ponto de aplicação é universal. Mauron considera a psicanálise uma ciência de conhecimento e de utilização indispensável, usa-a para unir uma ciência a uma arte. Procura associação de ideias involuntárias sob as estruturas voluntárias do texto, constituindo entrelaçamentos despercebidos. Ao longo de uma obra, vão se procurar as modificações das estruturas, que designam figuras ou situações de modo a liberar o mito pessoal que reflete a personalidade inconsciente do autor, situação dramática interior modificada, sem cessar, por elementos externos, mas sempre reconhecível e persistente. E procuram-se correspondências com a vida do escritor, o método propõe uma síntese das linguagens inconsciente e consciente, combinando várias lógicas ao mesmo tempo, como o crítico que passa do freudismo para a literatura.

Tadié (1992) também faz uma exposição sobre Jean Bellemin-Nöel e sua psicanálise textual ou textanálise. Se não se pode psicanalisar seriamente nem o autor, nem seus personagens, resta a psicanálise de um texto, supondo-se um inconsciente do texto que não se confunde com o do escritor. A textanálise faz aparecer um desejo inconsciente singular em um texto singular. A singularidade de cada leitor encaixa-se em cada texto, e é ela que se deseja alcançar. A força da enunciação atravessa o enunciado que adverte o leitor, chamando-o a identificação. O desejo dos personagens é o do leitor. A outra possibilidade é psicanalisar o autor. Nesse caso, usa-se o conhecimento sobre a sua biografia principalmente na infância; procura-se captar as motivações inconscientes do processo criador, reconhecer a solidariedade profunda que une a vida de um homem e sua produção artística. O psicobiógrafo estuda na obra as repercussões do trauma infantil, porém a vida e a obra partem de uma fonte inconsciente comum.

Outro autor a que recorremos foi Eagleton (2003), em seu livro Teoria da literatura: uma introdução, no capítulo dedicado à psicanálise, analisa a relação da teoria literária moderna e a agitação política e ideológica do século XX. A turbulência cultural não é apenas uma questão de guerras, de depressões econômicas e de revoluções, é sentida, também, no plano pessoal. É tanto uma crise das relações humanas e da personalidade, quanto uma convulsão social. O significativo, para esse autor, é que as experiências pessoais desse período se constituíram num campo sistemático de conhecimento chamado psicanálise. O autor recorre à teoria de Sigmund Freud e Jacques Lacan para pontuar em cada uma delas pontos que considera importantes na abordagem de um texto literário. Para ele, a crítica literária psicanalítica pode se voltar para o autor da obra, para o conteúdo, para a construção formal ou para o leitor. A análise psicanalítica do autor é um trabalho especulativo que enfrenta problemas sérios porque estamos trabalhando com suposições, dados biográficos e com a interferência subjetiva daquele que faz esse tipo de análise. A psicanálise de conteúdo, por sua vez, tem um valor limitado porque utiliza de conceitos centrais e estruturais da teoria psicanalítica em uso. Sobre as questões da forma, Eagleton refere-se à teoria dos sonhos de Sigmund Freud (1905). Como o sonho, a obra toma certas matérias- primas: linguagem, outros textos literários, maneiras de perceber o mundo e os transforma em um produto. As técnicas pelas quais essa produção é realizada conhecemos como formas literárias. A crítica psicanalítica literária vai trabalhar o texto como no sonho, observando aparentes evasões, ambivalências e pontos de intensidade na narrativa: palavras que não são ditas, palavras que são reiteradas com excepcional frequência, duplicações e lapsos de linguagem. Revela alguma coisa do subtexto que, como um desejo inconsciente, a obra revela e disfarça.

No quarto tipo de crítica literária psicanalítica, que é a que remete ao leitor, Eagleton (2003) analisa que a forma literária tem uma influência tranquilizadora, combate a ansiedade e celebra nossa dedicação à vida, ao amor e à ordem. Articula o texto Além do princípio do prazer (1920) de Freud, com a narrativa em que uma estrutura original é desorganizada e acaba sendo restaurada. Desse ponto de vista, a narrativa é um consolo: os objetos perdidos são causa de ansiedade para nós, simbolizando perdas inconscientes mais profundas. Em uma narrativa, alguma coisa deve ser perdida, ou estar ausente, para que ela se descubra; se tudo estivesse no lugar, não haveria história a ser contada. A perda é perturbadora, mas também excitante; o desejo é estimulado por aquilo que não se pode possuir totalmente, e essa é uma fonte de satisfação da narrativa. Se nunca o pudéssemos possuir, nossa excitação poderia se tornar intolerável e se transformar em desprazer. A excitação é liberada de maneira satisfatória: nossas energias são presas artificialmente pelos suspenses e repetições da narrativa, mas apenas como um preparo para seu emprego agradável. Concluindo sua apresentação, o autor menciona que existe uma relação simples entre a psicanálise e a literatura. Certa ou errada, a teoria freudiana considera que todo comportamento humano é motivado pela fuga da dor e busca do prazer. A razão pela qual a maioria das pessoas lê poemas, romances e peças, está no fato de elas encontrarem prazer nessa atividade.

Adalberto de Oliveira Souza (2005) apresenta elementos que considera fundamentais a uma crítica literária psicanalítica. Para ele, a psicanálise é uma metodologia clínica e terapêutica, e a crítica psicanalítica é de orientação interpretativa, procurando captar um sentido irredutível às intenções reveladas pelo autor. O relacionamento entre psicanálise e literatura se reduz ao objeto do processo psicanalítico e do sentido reprimido que se procura recuperar. Filman (1982), citado por Souza (2005), analisa que a psicanálise é o sujeito, e a literatura é o objeto: "a literatura é a linguagem que a psicanálise usa para falar de si mesma, para dar nome a si. A literatura não está fora da psicanálise, já que motiva e nomeia seus conceitos" (FILMAN apud SOUZA, 2005, p. 287). Souza continua analisando que a literatura se apropriou de várias descobertas realizadas pelos psicanalistas, porém, para se fazer uma abordagem psicanalítica de um texto, o critico deve sempre avisar quais são as suas escolhas, seus pontos de vista e seus métodos segundo o texto analisado.

Até o momento, recorremos a teóricos da crítica literária que descrevem o uso da psicanálise ou mesmo a utilizam em suas produções. Vamos agora abordar psicanalistas que se utilizam da literatura. Veremos que são óticas diferentes. Sigmund Freud, como sabem, o fez constantemente. Não vamos cair no lugar comum de repetir as obras usadas por Freud nessa articulação; recorreremos a outros autores, de forma a ampliarmos nosso olhar, mesmo porque todos citam um ou outro artigo freudiano.

O texto freudiano que merece ser citado antes de nossa abordagem é o de 1907, Escritores criativos e devaneios. Para Freud, uma experiência muito forte no presente desperta no escritor criativo uma lembrança, geralmente de sua infância, da qual vai se originar um desejo que encontra realização na obra criativa. Analisar com ênfase as lembranças infantis da vida do escritor deriva-se da suposição de que a obra literária, como o devaneio, é uma continuação ou substituto do que foi o brincar infantil. Percebemos, partindo dessa colocação freudiana, como se torna árduo o trabalho de analisar-se o autor de uma obra, já que trabalharemos o tempo todo com suposições oriundas de biografias autorizadas ou não. No mesmo texto, Freud se refere ao prazer provocado em nós pela obra de arte. A satisfação que usufruímos com uma obra procede de uma liberação de tensões em nossa mente. O artista nos oferece a possibilidade de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem autoacusações ou vergonha.

Depois dessa introdução feita através do criador da psicanálise, vejamos como os seus descendentes trabalham seu legado articulando-o à literatura.

Kaufman (1996), compara o romance com o sonho na similitude das metáforas. O modelo usado pela psicanálise é de uma superfície, fachada, máscara com uma profundidade que deve ser aperfeiçoada para ser aplicada ao texto. Na operação da leitura do texto - comparado ao sonho manifesto - entra em jogo a recepção feita por um sujeito que lê. Na construção de um sentido na leitura, cada leitor é como um intérprete particular movido por um desejo inconsciente que pertence apenas a ele. Assim como o prazer de escrever provém de algo interno do escritor, é a mesma relação do escritor com a leitura. A obra, discurso de um sujeito, pode ter valor de metáfora geral, universal. Cada leitura pode construir mais de um sentido que "pertence" a cada leitor. É possível que exista uma universalidade na obra para que nela nos reconheçamos ou para que sejamos afetados, tocados por algum traço inscrito na trama do material legado pelo escritor.

Tânia Rivera (2002), por sua vez, analisa que, a partir da Primeira Grande Guerra, os movimentos de vanguarda literária e artística fazem referências explícitas à psicanálise. Em nome de um cânone estético, que se afirma uma negação de todos os parâmetros vigentes, e pela busca de uma expressão revolucionária se aproximam das ideias de Freud. Alguns podem ser citados como André Breton, antigo aluno da psiquiatria que lança o Manifesto Surrealista em 1924; Tristan Tzara e Hugo Ball, criadores do movimento dadaísta em 1910. É a busca de novos parâmetros valorizando o irracional, espontâneo, uma expressão mais livre. Os artistas se apaixonam por arte africana, pintores autodidatas, obras de loucos internados no hospício.

Num mundo balançado pela máxima de Paul Cézanne de que "a natureza está no interior" e pela ênfase expressionista na subjetividade, não é de espantar que o inconsciente freudiano seja alçado à condição de fonte temática e formal pela criação artística. De fato, a busca de uma pureza artística, de se retomar a arte em suas origens - ingênuas, loucas ou primitivas - integra em seu ideal revolucionário o conceito de inconsciente como o que se oporia ao intencional, consciente ou racional, ponderado, e permitiria portanto uma irradiação de imagens supostamente livres das amarras das convenções e exigências estéticas (RIVERA, 2002, p.10-11).

Rivera esclarece que, após a publicação, em 1907, do livro de Otto Rank, O artista e a obra sobre Edgar Allan Poe lançada em 1903 por Marie Bonaparte, princesa e matriarca da psicanálise na França, privilegiou a análise temática de obras.

Bráulio Tavares, escritor e compositor, em 2007, no seu livro Freud e o estranho, seleciona contos do fantástico para articulá-los ao conceito de estranho, como algo que estava inconsciente e emerge abruptamente e ganha vida própria. Para o autor, o fantástico e o inconsciente se comunicam, os contos são território de disputa entre o texto que oculta e o texto que revela. Entre o texto que procura fazer o objeto proibido emergir no mundo e o texto que tenta empurrá-lo de volta às trevas.

Giovanna Bartucci, psicanalista e ensaísta paulista, organizou uma trilogia: Psicanálise, literatura e estética da subjetivação; Psicanálise, cinema e estéticas da subjetivação e Psicanálise, arte e estéticas da subjetivação. Em seu primeiro volume, sobre a literatura, ela se refere à crítica literária, considerando sua mudança nas últimas décadas (1996). Afirma que, no abandono dos critérios de literariedade, ressaltou-se a desvinculação do caráter fechado e autossuficiente do texto literário, acrescentando-se outros discursos tais como o da antropologia, sociologia, entre outros e da psicanálise. Trata-se de interpretar a literatura agora texto, escrita, escritura, como produto capaz de suscitar questões de ordem teórica, sem restringir-se a um público específico. A crítica literária psicanalítica tem apresentado modificações: antes se privilegiava a leitura preocupada em captar as motivações do autor, dando lugar a uma interpretação psicologizante do texto, uma psicografia; hoje, se usa do método interpretativo aplicado ao texto literário privilegiando o método psicanalítico de pesquisa do inconsciente (BARTUCCI, 1996).

A autora cita André Green, em O desligamento: psicanálise, antropologia e literatura (1922), que afirma ser a interpretação do texto o que se configuraria com a interpretação do crítico psicanalista acerca dos efeitos do texto sobre seu inconsciente. Assim o crítico psicanalista não lê o texto, ele o desliga, a partir das marcas que permanecem visíveis ao seu olhar-escuta.

Bartucci (1996) cita Ana Cecília Carvalho no texto É possível uma crítica literária psicanalítica?, ao analisar que há uma abordagem psicanalítica do literário se considerarmos um núcleo de verdade do desejo escondido e revelado na concretude das linhas do texto. Ao levarmos a interpretação psicanalítica para o campo da crítica literária, não tiramos dela sua função primordial. É característica da psicanálise delirar, tirar o texto de sua trilha. Sua eficácia está em mostrar que, no desvendamento das relações do texto com o inconsciente, faz surgir outra realidade que não é literária. Interpretar pela psicanálise o literário revela a transformação do não literário em realidade literária, isto é, ficcional. Dessa forma, se apagarmos no literário os limites entre realidade e ficção, a interpretação é que irá evidenciar, através do poético da linguagem , a eficácia da ficção como verdade.

Brandão (apud BARTUCCI, 2001) considera a literatura morada da escrita e do sujeito acolhendo a subjetividade em suas manifestações nem sempre de acordo com o senso comum, nem sempre de acordo com as representações sociais, previsíveis e garantidoras de uma estabilidade social e pessoal. O texto literário tem sua concretude no objeto-livro, nas letras impressas que ancoram seus significantes e o limitam sem limitar os efeitos da leitura que se produzem num ponto de articulação entre a ficção literária e fantasmas do leitor. Assim um crítico literário e um psicanalista leem o texto de forma diferente.

Norma Píngaro (2007), psicanalista e escritora, procura buscar pontos em comum entre psicanálise e literatura. Por sinal, ela considera que não conseguiu, já que o discurso é incapaz de tudo dizer. O escritor recorre ao ato de escrita para subjetivar-se através dela, essa seria a sua vocação. A sublimação é a operação necessária para isso. É na produção que aparece o sujeito porque é onde mostra o seu desejo. O escritor deve sê-lo de forma ativa, não pode responder à demanda de ninguém, porque ainda que o quisesse fazer, ao criar sempre aparece seu desejo, sempre fala daquilo que lhe falta, daí o seu desejar. Só se pode desejar porque algo falta, é faltante. Os escritores não podem fugir da necessidade de escrever e o fazem além do próprio benefício e bem-estar. Um ato criativo que lhes permite expressar em sua obra o que lhes falta. O silêncio, a dor, a incerteza, a dúvida, emergem como prenúncio da criação e também do amor, do assombro e a fascinação pela natureza e pela beleza. É sinuoso o caminho que fará surgir sua obra, e diferente do que havia imaginado. Se pensarmos na subjetividade do escritor, existem inúmeras razões, desconhecidas por ele, mas o que fizeram escrever. Assim a obra tem múltiplos significados.

Píngaro (2007) se pergunta: quem é o leitor? Que significado encontrará? O autor escreve para outros e dentro deles está ele mesmo, emite, desconhecendo o que diz. Sua obra faz laço social porque pressupõe pelo menos um leitor, por que precisa que alguém a leia, senão por que escrever? O leitor falará de uma obra com a qual o escritor se assombrará porque não a reconhece. Quem lê pôe em jogo seu desejo, segundo sua constelação fantasmática, dando diferentes sentidos de acordo com seus próprios desejos. Assim, deveria se analisar tanto o autor quanto o leitor em relação a uma obra, porque mesmo quando o leitor vê outro sentido, existe aquilo que o escritor lá colocou. Em seu livro, a autora procura buscar a resposta do que faz alguém escrever, sendo ela também escritora e psicanalista, levanta hipóteses pela psicanálise sobre esse desejo de escrever. Seu foco é o escritor, sua capacidade criativa. Ela expõe de forma brilhante, à nossa percepção, sobre o autor e seu processo de criar:

Na solidão de uma habitação, ou numa mesa de café, um homem escreve suas frases, tenta sair do real, deixar sua marca apropriando-se da linguagem materna, recorre à dor de suas perdas, detendo-se nas palavras escritas, reitera seu lugar no universo como sujeito. A humanidade, através de suas criações, deixou seu próprio traço [...] Presentifica a eternidade em sua obra, em um tempo singular, tempo que fala de outro tempo: aquele relativo, o mítico de seus começos como sujeito (PÍNGARO, 2007, p.18).

Como se pode perceber, estivemos analisando as inúmeras possibilidades do uso da psicanálise num texto. Dependendo do lugar em que se está, na literatura ou na psicanálise, a última é usada de forma distinta. Pode-se aplicá-la sobre o autor usando de dados biográficos e da leitura de suas obras e, a partir daí, levantar hipóteses sobre ele, a razão de ter escolhido escrever: analisando sua vida, infância e pontos de fixação em sua organização psíquica, buscando nele justificativa para sua obra. Mas também podemos aplicar a psicanálise no texto, usando-o como um símbolo ou como dizem alguns críticos, escutar o texto como um sonho manifesto fazendo, então, surgir um outro texto latente àquele que se mostra. A crítica psicanalítica vai envolver o texto com seus conceitos, expondo um outro texto, na qual a realidade humana se expõe através do manifesto do enredo ficcional.

Como a crítica literária e a psicanálise são saberes distintos vão usar, por conseguinte, da psicanálise de forma singular. Cada um desses campos tem especificidades que, naturalmente, vão intervir no uso que cada uma pode fazer da outra. Se considerarmos que as duas se misturam, nós as destituímos de suas diferenças! Acredito que "psicanalisar" um texto é uma boa forma de articular os dois conhecimentos, sabendo de antemão que ele não será todo abarcado. Como bem reconheceu Píngaro acima, o discurso é incompleto. Nem o texto nos diz tudo nem nós ao abordá-lo psicanaliticamente seremos capazes de tudo apreender ou analisar. Não é possível tratar o texto de forma fechada, rígida, com um único sentido, considerado correto a partir daquele que interpreta. O que importa é que a obra deve ser considerada um texto em aberto, oferecendo-se àquele que o lê e foi por ele seduzido.

 

Referências

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E-mail: stetina-dacorso@ig.com.br

Recebido: 06/04/2010
Aprovado: 30/06/2010

 

 

1 Psicanalista CBP-RJ; Mestre em Letras-Literatura Brasileira CES-JF; Professora titular do curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora CES.JF; Membro efetivo do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBP-RJ);Supervisora e coordenadora dos seminários de Formação em Psicanálise Sobrap-JF; Mestre em Psicologia AWU-USA.

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