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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte dez. 2010

 

 

A escuta psicanalítica de uma criança autista

 

Psychoanalytic listening to autistic child

 

 

Anna Lúcia Leão López1

Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta o caso de uma criança autista que possibilitou à autora investigar sobre a importância do desejo do analista na clínica psicanalítica com autistas. A utilização da linguagemsonoro-musicalcomorecursopodeserfavorávelparapossibilitarocomparecimento do sujeito. É necessário que o analista aposte que o autista, mesmo não estando no discurso, está no campo da linguagem e seus atos podem assumir um estatuto equivalente à fala.

Palavras-chave: Autismo infantil, Desejo do analista, Musicoterapia, Psicanálise.


ABSTRACT

This paper presents the case of an autistic child that has given the author occasion of investigation of the importance of analyst's desire at psychoanalytical clinic. The use of musical sounds as a resource may be useful for making the subject appear. The analyst must bet that the autistic child, even being out of the discourse, is into the field of language and that his/her actions may assume an statute similar to speech.

Keywords: Infantile autism, Analyst's desire, Music therapy, Psychoanalysis.


 

 

Quando o analista toma em tratamento uma criança autista, aposta que, ao reconhecer um valor significante em toda a produção da criança, gestual ou linguageira, e, ao constituir a si mesmo como lugar de endereçamento do que considera, desde então, como mensagem, a criança vai poder se reconhecer a posteriori como fonte dessa mensagem.
Laznik

 

Este artigo apresenta uma experiência clínica de escuta psicanalítica de uma criança autista. Foi através dessa escuta, sustentada pelo desejo do analista e utilizando a lingua-gem musical como recurso, que foi possível o comparecimento do sujeito Rafael.

Rafael tinha nove anos e o diagnóstico de autismo infantil. Não fazia contato com o olhar e rejeitava o contato físico. Não apresentava controle de esfíncteres, seu comportamento era rico de estereotipias, que lhe provocavam lesões no corpo, e sua fala se caracterizava por ecolalia. Ecolalia entendida como a repetição da voz do outro sem atribuição de significado.

Rafael relutava a entrar na sala de atendimento. Quando entrava, insistia em permanecer próximo à porta da saída e debatia-se em protesto caso a porta da sala fosse fechada. Deixando de dar importância para a porta, o investimento foi direcionado para que fosse possível chegar até ele. Após várias tentativas fracassadas de aproximação, foi criada a improvisação de uma melodia no violão usando seu nome como letra, sendo a primeira vez ao longo do processo que Rafael dirigia o olhar.

Com a repetição da música, criada com seu nome, Rafael aos poucos foi se aproximando. Ficava atento e permitia ser tocado pela música. Ao longo dos atendimentos, Rafael, cantarolando a melodia, solicitava que as sessões iniciassem e terminassem com a sua música.

O fragmento de experiência relatado demonstrou que o desejodo analista é decisivo para a clínica com autistas e manifesta-se na aposta em uma posição receptiva da ordem do ato, na qual se abandona o ideal terapêutico e o ideal pedagógico, que são sustentados, respectivamente, no desejo de curar, de ensinar.

De outra maneira, na análise com crianças autistas investe-se no estabelecimento de um laço social, ou seja, na entrada do autista no discurso. O desejo do analista, por isso, não é desejo de cura nem pedagógico: ele se fabrica no processo analítico e está sustentado pelo ato de escuta e acolhimento da palavra ou do ato do sujeito.

O desejo do analista é que permite que a sua função se coloque para o autista como aquela que fornece os significantes, oferecendo um espaço analítico com o objetivo de possibilitar que ele advenha como sujeito.

Segundo Elia:

A aposta do analista ao tomar todas as manifestações dos pacientes no campo do sentido, o que equivale a tomá-los, os pacientes, no lugar de sujeitos, é uma aposta no devir dos acontecimentos, e não no presente imediato: haverá – poderá haver ou não – o sentido/ advirá – poderá advir ou não – o sujeito. Tratase de um ato do desejo do analista posto em operação, o que deve ser radicalmente diferenciado de uma ação interpretativa e indiscriminada, seja ela precisa ou difusa (2005, p. 118 e 119)

Por meio da aposta do analista na existência de sentido no ato do autista, aquilo que ele diz poderá vir a assumir um senti-do, que poderá estar no campo do sentido, para o que evidentemente é necessário que desde logo algo deste campo se institua, e este algo é o campo do Outro, que, assim, é introduzido como tal pelo analista como um campo que poderá advir para o autista também.

Segundo Lacan (1960):

Com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele, e é aí que ele se apreende, e tão mais forçosamente quanto, antes de – pelo simples fato de isso se dirigir a ele – desaparecer como sujeito sob o significante em que se transforma, ele não é absolutamente nada. Mas esse nada se sustenta por seu advento, produzido agora pelo apelo, feito no Outro, ao segundo significante. (1998, p. 849)

Pensar no desejo do analista na clínica com crianças autistas, para Kaufmann (1996, p. 63), é "apostar unicamente na força de seu desejo, é levar essa aposta tão longe quanto possível, é nisso, nem mais, nem menos, que o analista se empenha". O autor aponta para o objetivo dessa clínica, que é o de encontrar o caminho do Outro do desejo. E coloca que a tarefa do analista é restaurar o lugar do sujeito, ocultado ou renegado, procurando pistas no seu local de desaparecimento.

O trabalho analítico com crianças autistas é, então, propiciar um advir de um pedido ao analista, ou seja, um apelo ao Outro. Trata-se de um processo que só tem validade porque o analista oferece a palavra ao sujeito, mesmo quando ele não fala. De acordo com Elia (2005, p. 117): "Partimos, então, daquilo que eles nos falam mesmo que às vezes sem utilizar as palavras".

É essa especificidade da formação do psicanalista, a operação a partir de um furo de saber, sustentando o real e dando lugar ao inconsciente, que permite o exercício da função de analista na clínica com autistas, seja em uma instituição, consultório particular ou ambulatório público.

O lugar do analista na clínica com crianças autistas é dar acolhimento à palavra ou ao ato do sujeito. Segundo Elia (2004, p. 41), "o que chega a ele é um conjunto de marcas materiais simbólicas – significantes – introduzidas pelo Outro materno, que suscitarão, no corpo do bebê, um ato de resposta que se chama sujeito".

É por ser afetado pelo desejo do analista que o autista pode vir a fazer um apelo ao Outro. A partir da sua escuta, o analista toma palavras e atos dos autistas em um campo de sentido, dando o valor de significante. Esse ato do analista possibilita que o sentido possa advir daquelas palavras e atos, com uma implicação do sujeito, esboçando o que pode vir a ser uma demanda.

A criança autista não faz do Outro lugar de demanda, por não suportar a demanda. Para eles, a demanda do Outro é mortífera, ou seja, quer que o sujeito não advenha. Segundo Elia (11 de dezembro de 2004), "o autista sai da demanda, do circuito das trocas, o que é escandalosa e emblematicamente representado por sua recusa à mais forte das demandas: o falar".

A clínica do autismo convoca o analista a trabalhar tomando as manifestações apresentadas por essas crianças como atos, como produções que, de alguma forma, buscam alguma inscrição significante.

No caso clínico, Rafael, no momento da sessão em que a analista interrompia a música, parando de tocá-la ao violão, Rafael levava as mãos ao instrumento musical quase encostando as mãos nas cordas. Esse ato era escutado pela analista como um pedido para que a música voltasse a ser tocada, sendo confirmado com expressões e movimentos de prazer de Rafael ao escutar a música novamente. Pode-se dizer que, nesse momento em que a manifestação de Rafael foi acolhida pela analista, houve possibilidade da construção de uma demanda.

Outro ponto importante, nesse caso, foi a música criada pela analista que usou apenas o nome do Rafael como letra, em uma melodia e harmonia simples. Uma vez que as crianças autistas não tomam um significante para se fazerem representar, a música criada possibilitou que o Rafael se representasse, sendo atribuído valor significante a essa produção sonora.

A psicanálise sustenta que o sujeito não existe a priori, pois ele é constituído na relação com o Outro, entendido como lugar da linguagem. Lacan define o campo do Outro como aquele no qual se dá a constituição do sujeito, pois é dele que advêm os significantes. Segundo Freire, Wheatley e Costa (2003, p.128), "em psicanálise, falamos de 'adven-to': o sujeito psicanalítico não se confunde com o corpo biológico, constituindo-se em relação ao Outro".

Para Lacan (1968),

Quando uma criança tapa os ouvidos, ela está para alguma coisa que está sendo falada – já não está no pré-verbal visto que se protege do verbo, o que atesta a sua relação com o Outro e permite afirmar que o sujeito autista está na linguagem, ainda que não fale. (2003, p. 128).

A relação do autista com a linguagem percorre a discussão sobre a sua posição na operação da alienação, entendida como alienação no campo do Outro, o lugar da linguagem, tesouro dos significantes.

A operação da alienação no autismo se sustenta mas sem afânise. Afânise, assim como o recalque, é uma respiração, uma pausa fundamental e necessária entre as operações de alienação e separação. O sujeito é um ex-nada passando a ser um nada, a um futuro nada, um candidato a nada. É pontual e evanescente. Mas o nada em que ele se torna não é da mesma ordem, do mesmo estatuto, do nada que ele era antes da operação, pois é um nada que se sustenta "no apelo feito agora no Outro pelo segundo significante" (LACAN 1960/1998, p. 849).

Durante o atendimento do Rafael, uma condução que foi intencionalmente adotada e se repetia ao longo das sessões era a insistência em proporcionar pausas, com diferentes durações, na execução de músicas ou sons trabalhados com ele. Essas iniciativas provocavam momentos de respiração que, de alguma forma, atingiam Rafael fazendo com que ele se manifestasse. As manifestações, palavras/atos, de Rafael eram percebidas como um ensaio da afânise.

A afânise é o intervalo entre os dois significantes, que liga o desejo oferecido ao balizamento do sujeito na experiência do discurso do Outro, do primeiro Outro. É no que seu desejo é desconhecido, é nesse ponto que falta, que se constitui o desejo do sujeito.

No sujeito autista, não se verifica a incidência do fading ou desaparecimento. Para Lacan (1960): "Efeito de linguagem, por nascer dessa fenda original, o sujeito traduz uma sincronia significante nessa pulsação temporal primordial que é o fading constitutivo de sua identificação. Esse é o primeiro movimento" (1998, p. 849).

No momento em que a analista acredita que há fala/ato no autista, pode-se considerar a inserção dele na linguagem, pois os vocábulos ou fonemas usados por ele não são aleatórios. Os vocábulos e os fonemas retornam e se repetem e "é com alguns significantes, seletos e sempre os mesmos, que o autista comparece" (BASTOS, 2003, p. 141).

No caso de Rafael é destacado um fragmento clínico que ocorre onde, em meio a uma fala que mais parecia um monte de letras pronunciadas aleatoriamente, ele faz a seguinte pergunta: o que 'cê quer?. Essa pergunta surge no momento em que era aguardada a continuação da música como uma tentativa da construção de uma demanda. Essa resposta de Rafael é percebida como a possibilidade do seu comparecimento como sujeito.

A posição diante do Outro é uma questão que concerne a todo tratamento possível do autismo. O Outro é o terreno no qual o sujeito se constitui diante da alternativa: o ser ou o sentido? O sentido só é possível no campo dos significantes, que é o campo do Outro.

No momento em que Rafael responde com a pergunta o que 'cê quer?, ele está admitindo a presença da analista. Admitir a presença da analista e responder a ela, como a clínica demonstra, é já estar no campo do Outro.

A escuta da analista, partindo da aposta de que o sujeito está no campo da linguagem, comparece, no caso do autismo, através da insistência em autenticar o recebimento de um dito e proporciona a possibilidade de a criança autista se reconhecer como agente desse dito e ser convocada a dizer.

A criança autista é excluída desse importante efeito que faz do discurso um laço social. Ao ser excluída, ela encontra a sua maneira de viver tendo como estratégia se proteger do verbo. Sobretudo do verbo daqueles que se ocupam dela.

Lacan (1975), no texto Conferência em Genebra sobre o sintoma, diz que os autistas não conseguem escutar o que temos a dizer-lhes enquanto nos ocupamos deles, enquanto nos colocamos na posição de querer cuidar/tratar. Essa posição faz com que as crianças autistas ocupem um lugar onde se protejam, e a clínica psicanalítica com crianças autistas nos mostra que é necessário sair/desocupar desse lugar de cuidador e perseverar em escutá-los.

O autor, no mesmo texto, afirma que "os autistas escutam a si mesmos. Eles ouvem muitas coisas" (1975, p. 13). Cabe ao analista procurar saber onde escutam e o que articulam.

Lacan ressalta que o que faz com que não os escutemos é pensarmos que eles não escutam. Mas não podemos pensar que os autistas não escutam nem falam. Afinal, de acordo com Lacan, os autistas são "personagens de preferência verbosos". (1975, p.14)

A clínica psicanalítica com crianças autistas nos coloca em uma posição de escuta desses sujeitos, tratando-se de um investimento para que a fala tenha possibilidade de advir.

A clínica nos revela também que não é uma tarefa fácil essa forma encontrada pelos autistas de viver, ou seja, a árdua tentativa de se proteger do Outro. Di Ciaccia (2005, p. 39) sustenta que: "A criança autista mostra, de maneira tangível, que vai à deriva, que perde não só a âncora que a liga ao mundo, como também a bússola que a orienta: o desejo do Outro".

Para Lacan, a criança autista está na linguagem, mas não está no discurso, pois estar no discurso é saber se virar com as diversas formas do laço social que se instauram entre os seres falantes.

O analista deve considerar que, mesmo não estando no discurso, os autistas estão no campo da linguagem, e seus atos podem assumir um estatuto equivalente à fala. É importante ressaltar que é necessário não fazer uma leitura simplista dessa afirmação, pois ela se apresenta como questão central da clínica psicanalítica com crianças autistas.

Lacan (1954), na lição A função criativa da palavra, afirma que uma palavra não é palavra a não ser na medida exata em que alguém acredita nela, ou seja, que a palavra é um meio de reconhecimento. E, mais adiante, afirma que "na medida em que se trata para o sujeito de se fazer reconhecer, um ato é uma palavra" (1986, p. 279). Portanto, pode-se considerar o ato do autista como a sua forma de se fazer reconhecer. Pois, na clínica, no decorrer do processo analítico, vê-se aquele ato aleatório do autista sendo/ podendo ser, aos poucos, direcionado para o analista. E, nesse momento, podemos considerar que o autista envia uma mensagem para o analista procurando um reconhecimento.

Na clínica com criança autista é preciso que a criança institua o analista como tal. Para Freire, Wheatley e Costa (2003, p. 134), na clínica com crianças autistas, "o analista entra no tratamento com a permissão da criança, devendo compreender suas referências como trabalho e se deixar 'regular' por ele".

Na tentativa de conseguir a permissão para o estabelecimento de contato com a criança autista, a clínica revela a eficácia do recurso da linguagem sonoro-musical.

O diálogo sonoro entre mãe e bebê autista se apresenta como uma emissão sem resposta, sem eco, uma emissão que não se torna uma mensagem a ser decodificada.

A clínica com criança, ao utilizar como recurso a linguagem sonoro-musical, possibilita que a emissão possa vir a tornar-se uma mensagem, desde que o analista ocupe o lugar daquele que se dispõe a escutá-la e decodificá-la.

Para compreender a linguagem sonoromusical é importante se afastar da estética musical e pensá-la como toda produção sonora entendida como uma mensagem que espera por alguém para escutá-la. De acordo com López:

A prática clínica da Musicoterapia é definida como uma modalidade terapêutica que emprega a linguagem específica da música e do som como objetos intermediários na relação com o paciente. Essa linguagem leva a canais de comunicação que permitem a expressão e veiculação dos conteúdos internos do paciente sem que haja qualquer barreira preconceitual. [...] Para o musicoterapeuta, o importante é a produção em si mesma, e não uma elaboração estética (1998, p. 14).

As diversas possibilidades sonoro-musicais são experimentadas através dos instrumentos musicais, dos objetos, do ambiente externo (setting, por exemplo) e do próprio corpo.

A linguagem sonoro-musical pode tornar possível fazer emergir o estabelecimento de um vínculo com as crianças autistas, uma vez que esta linguagem não é ameaçadora, intrusiva e persecutória. E apresenta uma via de contato com essas crianças, que permite ao analista a escuta da linguagem sonoro-musical delas.

O caso de Rafael sustenta que há a possibilidade da escuta da musicalidade também no sujeito autista, estando a musicalidade tanto do lado do analista quanto do lado do autista.

Rafael toca/esfrega sua genitália quando escuta determinadas músicas infantis (cantigas de rodas, músicas folclóricas) e improvisações musicais. Esboça um sorriso, imerso em risos frenéticos, que se mostra afastado do riso estereotipado e tão constante.

Ao perceber que a música termina, Rafael deixa os ombros caírem em um movimento brusco. Para rapidamente o riso e fica com um olhar à procura. Mesmo que distante do som, permite um breve encontro com o seu olhar.

Em todos esses atos -ato de tocar sua genitália, ato de sorrir, ato de caírem os ombros, o ato do olhar, foi possível enxergar algo singular do sujeito e desconectado da Estereotipia.

O atendimento psicanalítico ao autista é a clínica em ato, do inesperado, da surpresa. Ser analista de autistas é enfrentar a clínica da devastação absoluta sem se deixar ser devastado. O que implica a necessidade de uma invenção, de uma dotação de sentido ao ato do autista.

De acordo com Ribeiro:

Na clínica do autismo parte-se de uma aposta – que se sustenta no desejo do analista – de que, ao deixar-se regular pelas construções da criança, o psicanalista pode se fazer parceiro do trabalho que a criança autista já realiza para tentar produzir-se enquanto sujeito (2005, p. 91).

Durante as sessões, Rafael olhava rapidamente sua imagem emoldurada no espelho, existente na sala de atendimento. Em um desses momentos de rápidas olhadas no espelho uma mensagem é direcionada a Rafael: Quem é no espelho? É o Rafael! Em uma sessão, surge uma resposta de Rafael: Tá! Essa resposta é escutada como: 'tá ali, está ali, estou ali'. Ou seja, o sujeito dá as caras, emerge e tem a possibilidade de ser reconhecido como tal.

Não se trata aqui do ato como a manifestação automática e repetida das estereotipias das crianças autistas, mas de um ato que tem a possibilidade de ser uma via de comparecimento para o sujeito.

Outro ato é feito por Rafael: o ato de levar suas mãos às cordas do violão, ora sem tocar as cordas ora tocando brevemente com a ponta de um dedo. Esse ato representa a possibilidade de o trabalho psicanalítico existir, uma vez que é por meio dele que se dá a aposta na existência do sujeito autista. A analista investe por esse caminho, entende a demanda de Rafael e pergunta a ele se quer continuar a escutar a música. Recebe de Rafael a confirmação, através de seu olhar direcionado aos olhos da analista que em seguida se volta para o violão, de que gostaria de continuar a escutar mais música. Em outros momentos, Rafael bate na madeira do corpo do violão, o ato para solicitar música.

Na relação da criança autista com o Outro, a criança fica sem possibilidade de advir como sujeito, pois sua mensagem não é decodificada, uma vez que seus atos são vistos como manifestações aleatórias e sem sentido.

Segundo Santos:

os deslocamentos surgem como resposta imediata ao Outro que não se faz presente através de uma demanda [...], mas que oferta uma presença, vazia de toda e qualquer demanda, capaz de promover a abertura ao que a criança diz (2002, p. 251).

No caso de Rafael, a posição ocupada pela analista era de ofertar essa presença esvaziada de demanda possibilitando alguns ditos. Porém, ao final de uma determinada sessão, foi demandado que Rafael abrisse a porta e ele me responde: Por quê? Nesse momento, a analista ocupa a posição de uma presença que não estava esvaziada de demanda, a qual Rafael barrou.

A analista entende o ato de Rafael como positivo, pois demonstra a possibilidade de não atender a demanda da analista de abrir a porta. Trata-se da demarcação da sua posição de sujeito Rafael, que barrou a invasão pelo Outro, lugar ocupado pela analista.

Este trabalho pretende demonstrar a importância da escuta psicanalítica na clínica com crianças autistas. Através do caso relatado no decorrer do artigo, costurado por questões cruciais da clínica psicanalítica como: desejo do analista, a construção de demanda na clínica com crianças autistas e a aposta de que existe sujeito autista, é possível entender que o autista está no campo da linguagem, e seu comparecimento ocorre, na maioria das vezes, através do ato. Cabe ao analista escutar esse ato.

 

Referências

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Endereço para correspondência
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E-mail: annalucia@openlink.com.br

Recebido: 30/09/2010
Aprovado: 18/11/2010

 

 

1 Psicanalista; membro efetivo e coodenadora da comissão científica e de formação permanente do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro; musicoterapeuta pelo Conservatório Brasileiro de Música; especialista em Educação Psicomotora pelo Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação; especialista em Psicanálise e Saúde Mental pela UERJ, e mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pelo Programa de Pós-graduação do Instituto de Psicologia da UERJ.

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