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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte dez. 2010

 

 

Regulamentação da profissão de psicanalista

 

Regulation of the psychoanalyst’s profession

 

 

Déborah Pimentel1

Círculo Brasileiro de Psicanálise
Círculo Psicanalítico de Sergipe

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora apresenta a proposta de um projeto de lei que está tramitando no Senado Federal e que tem o objetivo de regulamentar a profissão de psicanalista; argumenta que somente diante da experiência do seu próprio inconsciente é que um candidato a analista se capacita ao exercício de escuta em um registro que possa ser qualificado de psicanalítico. Não se transmite o ato psicanalítico, ele é sempre uma criação singular vinculada mais à ética do que à técnica. Sem a integração entre a análise pessoal, estudos teóricos e uma boa supervisão de técnica, não existem processos de formação analítica.

Palavras-chave: Regulamentação, Profissão, Psicanalista, Ética, Inconsciente.


ABSTRACT

The author presents the proposal of a draft statute that is currently being discussed in the Federal Senate and aims to regulate the psychoanalyst’s profession and argues that it is only by facing the experience of his/her own unconscious that a candidate to psychoanalyst becomes capable of a listening that can be qualified as psychoanalytic. The psychoanalytic act can not be transmitted; it is always a singular creation that is linked more to ethics than technique. Without the integration of personal analysis, theoretical studies and a good supervision of the technique, there are no processes of analytic formation.

Keywords: Regulation, Profession, Psychoanalyst, Ethics, Unconscious.


 

 

Sempre foram uma preocupação do Círculo Brasileiro de Psicanálise os inúmeros projetos que surgem, tentando regulamentar a profissão de psicanalista que não é regulamentada na maioria dos países (PIMENTEL, 1993).

Diante da existência de instituições inescrupulosas e da nossa preocupação a respeito daquilo que é oferecido como formação psicanalítica, surgiu o que chamamos hoje de Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, um grupo que tem na sua formação um tripé comum: análise do candidato a psicanalista, estudos teóricos e supervisão dos casos clínicos. Este grupo se reúne há quase uma década no Rio de Janeiro e é formado por representantes de instituições de psicanálise que se reconhecem entre si, a exemplo do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP), da Federação Brasileira de Psicanálise, da Escola Letra Freudiana, do Corpo Freudiano, da Sedes Sapientiae, da Escola Brasileira de Psicanálise, da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, entre muitas outras. Como resultado dessas discussões, editou-se e publicou-se um livro com essa temática, organizado por Sônia Alberti, Wilson Amendoeira, Edson Lannes, Anchyses Lopes (CBP)e Eduardo Rocha (ALBERTI et al. 2009).

As instituições da Articulação pensam de forma semelhante: a psicanálise não é práxis específica de nenhum profissional, como o próprio Freud advogou no seu artigo A questão da Análise Leiga (1926), apontando que a habilitação legal por capacitação universitária não autoriza nenhum médico ou psicólogo a ser psicanalista, pois o seu saber está além do saber universitário.

Ser psicólogo ou médico não oferece garantias para uma boa prática. Por outro lado, a psicanálise, por não ser uma prática profissional regulamentada nem regulamentável, pode ser exercida por "qualquer pessoa" que queira percorrer as trilhas do seu próprio inconsciente, se submeta a uma supervisão e estude a teoria freudiana. Outrossim, não podemos nos distanciar do fato de que a apreensão teórica da psicanálise não é suficiente para que se forme um analista.

Somente diante da experiência do seu próprio inconsciente é que um candidato se capacita ao exercício de escuta em um registro que possa ser qualificado de psicanalítico. Não será um título de especialista devidamente registrado em um conselho que autorizará um especialista ao seu ofício. Entretanto sabemos o que significa um apelo de um curso lato ou stricto sensue o valor das publicações em periódicos indexados.

Constroem-se hipóteses acerca dos verdadeiros objetivos de uma regulamentação e de uma sistematização de ensino universitário para a psicanálise. Apesar de muitos psicanalistas estarem inseridos no mundo acadêmico e de gostarem muito do que fazem, eles também percebem o distanciamento das propostas e a inviabilidade de ensinar a clínica psicanalítica dentro de uma universidade.

Freud, no texto de 1919, Sobre o ensino da psicanálise nas universidades,advertiu sobre a impossibilidade da formação de psicanalistas no espaço acadêmico e revelou seu desejo de que a psicanálise fosse objeto de estudo na grade curricular da formação médica. Ou seja, o fundador da psicanálise deixou claro que ensino e formação são coisas diferentes.

Há um projeto de lei (PLS 64/09) tramitando no Congresso e que está na Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal, que muito nos assusta. O projeto dispõe sobre a regulamentação do exercício das atividades de terapias, a criação do Conselho Federal de Terapeutas (FENATE) e dos Conselhos Regionais de Terapeutas, suas atribuições e responsabilidades. De acordo com a proposta, o exercício das atividades de acupuntura, homeopatia, terapia floral, fitoterapia, psicanálise, psicoterapia, tai-chi-chuan, do-in, auriculoterapia, entre outras, será regulado pelo Conselho Federal de Terapeutas (LIMA, 2009).

As atividades, estabelece a proposta do autor do projeto, serão exercidas por profissionais qualificados em cursos reconhecidos pelo FENATE, com carga horária mínima de 180 horas, acrescidas de estágio. Para oferecer formação adequada aos profissionais em terapia, foi sugerida a criação de uma Faculdade de Terapias Profissionais, reconhecida pelo Ministério da Educação. E, enquanto tal faculdade não for oficializada, o autor propõe a criação de curso de capacitação profissional técnica de nível médio. Tais cursos, pela proposta, deverão ter supervisão e matriz curricular aprovadas pela FENATE. Imaginem, instituições tradicionais na formação de psicanalistas, como as que fazem parte da Articulação, a partir da promulgação dessa lei, não teriam mais autonomia para funcionar, salvo com autorização da FENATE.

Com a regularização proposta mais uma vez, afinal este não é o primeiro e nem tampouco será o ultimo projto de lei que aborda o tema, a psicanálise seria considerada um saber completo, uma obra fechada.

É, sem dúvida, uma ilusão imaginar que alguém detém o saber psicanalítico que não se submete a nenhum saber completo.

Lacan disse que o saber é fruto positivo da revelação da ignorância, que é o não saber , que por sua vez, não é uma negação do saber, mas a sua forma mais elaborada.

Manter a psicanálise entre as paredes de uma instituição de nível médio, como deseja o autor desse projeto, ou mesmo universitária, é querer reduzir o saber psicanalítico. É tomar o desejo do saber como uma demanda de simples orientação. Freud foi quem afirmou que o saber como tal é uma das formas mais requintadas da resistência à psicanálise, e essa pretensão, portanto, não se sustentará, uma vez que o saber universitário é incompativel com a psicanálise, comprometida com a verdade do inconsciente. A regulamentação da profissão, por conseguinte, sob essa ótica, não seria uma forma de monopolizar o saber e reter o poder, numa ostensiva distorção da transmissão empsicanálise? Aqui devemos fazer uma correção, pois no novo modelo seria transmissão dapsicanálise. Pois uma faculdade ou escola de psicanálise seria capaz de, no máximo, transmitir informações acerca de um saber que seria dito completo. Ou ainda, uma es-cola ou faculdade de psicanálise poderia dar instrução, ou seja, seria, sem dúvida, capaz de transmitir certos conceitos metapsicológicos, mas nunca formar um psicanalísta, pois a informação não é, por si só, suficiente para tal.

Quem formaria, portanto, os analistas? Quem ensina a psicanálise e não vive a inquietude da análise e as suas vicissitudes ligadas à criatividade como consequência de uma demanda da própria teoria analítica e do desejo do saber não pode por conseguinte formar psicanalistas. Até mesmo porque a formação de um analista só pode ser resultante da análise de um sujeito, processo esse impossível de ser regulamentado, enquadrado e ter efeitos previsíveis e, portanto, sem garantias.

Fala-se em garantias porque talvez seja essa uma das alegações dos defensores da regulamentação da profissão, talvez eles queiram, com razão, dar um basta aos excessos antiéticos dos jogos perversos que se estabelecem em algumas relações ditas terapêuticas. Imagino também que esses excessos continuariam a acontecer e dessa feita sob a tutela do tal Conselho, a FENATE, uma vez que profissionais que tenham certos títulos se sentiriam autorizados a uma prática sem nenhuma habilitação para tal. Portanto, ao invés de garantias, teremos oficialização de práticas muitas vezes perversas.

Diz o autor justificando o seu projeto de lei que "a corrida desenfreada por esse mercado, bastante atraente e vulnerável à entrada de aproveitadores, coloca, muitas vezes, em risco a saúde e até a vida do usuário, sendo necessária a criação de instrumentos para impedir que pessoas despreparadas nele atuem". Portanto, outro argumento, suponho, seria o de encerrar as disputas acerca de quem são os verdadeiros psicanalistas. Mas esse desejo não denunciaria também um interesse de manter o controle simbólico sobre a legitimidade no campo psicanalitico?

De que transmissão afinal estaríamos falando? Seria uma simples passagem de um conhecimento entre dois sujeitos? A transmissão em psicanálise é única e é exclusivamente a transmissão de uma experiência analítíca e, portanto, pertence ao campo do testemunho. Não se transmite o ato psicanalítico, ele é sempre uma criação singular vinculado mais à ética do que à técnica. Sem a integração entre a análise pessoal, estudos teóricos e uma boa supervisão de técnica não existem processos de formação analítica.

Numa escola de nível médio ou mesmo em uma universidade, essas coisas não fazem sentido. A transmissão não está submetida a estudos ou regras; nesse campo há que se criar, mas sempre via escuta do inconsciente. Aquele que assim o fizer sabe, ou seja, sabe que não sabe. O trabalho de formação diz respeito a cada um. A função de analista não é transmitir, mas permitir que um processo de psicanálise ocorra. A psicanálise só pode ser vivida na própria pele via ato analítico, que permite um encontro com o saber que escapa sempre na procura permanente do objeto causa do desejo. Será através da báscula do não-saber (que não é paixão pela ignorância) que advirá a associação livre, a regra fundamental da psicanálise.

Mas não criemos ilusões, pensando que apenas o famoso Conselho (FENATE) que seria criado por lei e o ensino na universidade poderiam ser ameaças ou traição ao espírito da psicanálise. É para as próprias instituições formadoras que devemos também estar atentos já que, sob o risco de se instituírem como autoridade que é lei, e não como portadoras dela, podem determinar o percurso, exigir uma análise por encomenda e apontar os possíveis analistas e determinar os requisitos que devem ser burocraticamente preenchidos para outorgar uma autorização para se dizer analista.

Com isso reafirmamos que o objeto de transmissão é o inconsciente e que o ensino da psicanálise não pode ser regulado e massificado por leis ordinárias, pelo fato de ser um ofício que usa o inconsciente como instrumental do trabalho e que, por suas peculiaridades, é intransmissível.

É isso que uma verdadeira psicanálise produz: o abandono da presunção de se apropriar da técnica sem passar pela experiência. Um analista estará para sempre marcado pelas vicissitudes da sua relação transferencial com o inconsciente. Diferentemente do médico ou do psicólogo que coloca o sintoma apenas do lado do paciente, um analista se interroga como sintoma em sua própria experiência: ponto tensional, virulento, que não deixará de marcar toda a sua prática. Nesse sentido, há, na metapsicologia freudiana, o rastro de um pensamento ético que, de certa maneira, alinhava os desdobramentos da transferência.

Acreditamos que ainda é a instituição psicanalítica, apesar das dificuldades de se conviver com o narcisismo e as diferenças de seus pares, o lugar simbólico que melhores condições tem de abrigar a produção e reprodução da psicanálise, dando sustentação para uma prática clínica reconhecida, regida, sem dúvida, por uma ética que se refere a uma instância ideal de regulação da experiência psicanalítica, a que todos os seus membros estão submetidos na condição de agentes dessas experiências.

Em consequência da articulação que se faz entre ética da psicanálise -ou seja, ética do desejo ou ainda reconhecimento do sujeito da diferença -e ética da instituição psicanalítica, é que se conclui que a psicanálise não se ensina, mas se transmite. Por não se poder falar em ensino da psicanálise, conclui-se novamente que a formação de um analista se dá pela experiência psicanalítica fundada na transferência e nunca pelo caminho do saber universitário, uma vez que o ensino teórico da psicanálise deve se submeter sempre às exigências éticas da individualidade ao acesso ético do desejo do analista: únicos valores éticos que de fato regulam a experiência psicanalítica e a formação de psicanalista.

 

Referências

ALBERTI, S.; AMENDOEIRA, W.; LANNES, E.; LOPES, A; ROCHA, E. (orgs). Oficio do psicanalista: formação versus regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009.         [ Links ]

FREUD, S. [1919]. Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. In: _____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1988. v.XVII. p. 185-189.         [ Links ]

FREUD. S. [1926]. A questão da análise leiga. . In: _____. Edição standard bras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v.XX. p.205-293.         [ Links ]

LIMA,A. Projeto de lei 64/2009. Disponivel em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=89701 Acessado em 23 de fevereiro de 2010.         [ Links ]

PIMENTEL, D. Psicanálise: formação ou ensino? Belo Horizonte, n.16, p.43-45, outubro 1993.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Praça Tobias Barreto 510/1212 - Bairro São José
49015-130 - Aracaju/SE
E-mail: deborah@infonet.com.br

Recebido: 20/09/2010
Aprovado: 01/11/2010

 

 

1 Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (2008-2010) e do Círculo Psicanalítico de Sergipe (20092011). Editora da Revista Estudos de Psicanálise. Doutoranda em Ciências da Saúde, curso do Núcleo de Pós-graduação em Medicina da Universidade Federal de Sergipe.

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