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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte dez. 2010

 

 

Nem identidade, estrutura ou personalidade: reflexões sobre o lugar da "subjetividade" e sua incidência no pensamento psicanalítico contemporâneo

 

Neither identity, structure or personality: reflections on "subjectivity" and its impact on the contemporary psychoanalytic perspective

 

 

Júlio César Diniz HoenischI1; Carlos da Silva CirinoII2

IFundação Oswaldo Cruz
IIUniversidade Federal da Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo principal problematizar o uso do conceito "subjetividade" no discurso psicanalítico e suas raízes filosóficas em Michel Foucault, bem como as contribuições de Deleuze e Guattari para a clínica. Desenvolve-se uma análise do histórico do conceito de subjetividade no "campo psi", destacando as diferenças entre subjetividade, identidade, estrutura e personalidade. Os autores sugerem pistas para o termo "subjetividade", ainda que se mostre necessária maior discussão epistemológica para esclarecer seu emprego em Psicanálise sem contradições com os termos "identidade", "estrutura" ou "personalidade".

Palavras-chave: Identidade, Estrutura, Personalidade, Subjetividade.


ABSTRACT

The following discusses the main use of the term subjectivity" in the psychoanalytic discourse, its philosophical origins in Michel Foucault and the contributions of Deleuze and Guattari to the clinic. It develops an analysis of the historical concept of subjectivity in the "psi field" and highlights the differences between subjectivity, identity, structure and personality. The authors write some topics about the term "subjectivity", even though an epistemological discussion is necessary to clarify its use in psychoanalysis, without contradictions with the terms "identity", "structure" or "personality.

Keywords: Identity, Structure, Personality, Subjectivity.


 

 

Subjetividade, genealogia e fronteiras teóricas: breve incursão

O conceito de subjetividade não é novo, mas apresenta papel crescente no campo da Psicanálise contemporânea em diferentes acepções e é hoje uma referência para grupos de pesquisa, críticas à cultura, teses, dissertações e artigos. Introduzindo a questão, podemos dizer que o termo subjetividade, da maneira como é empregado na Psicanálise, não deve ser confundido com uma visão particular de algo, ou como estamos habituados a ouvir, "essa é uma questão subjetiva". O par "objetividade" versus "subjetividade", posto como operações separadas, ainda que sejam mantidos em dicotomias tais como indivíduo e sociedade e assim por diante, não é sustentável no campo psicanalítico. A banda de Moebius, utilizada por Lacan para ilustrar a complexidade entre o que seria da dimensão do interior e do exterior, ilustra que, onde se julga haver uma oposição ou uma relação dialética, de fato é uma continuidade, em que é impossível delimitar o fm e o começo, o dentro e o fora, o avesso e o direito. Portanto, pensar a subjetividade e sua compreensão no saber psicanalítico implica, em primeira instância, perceber que diversos autores e escolas teóricas não só advindas do pós-freudismo, mas da Psicologia, Sociologia e Filosofa também o empregam. Tal constatação é importante para pensarmos que a delimitação desse operador conceitual – a subjetividade – merece detida análise sobre sua aplicabilidade e efeitos discursivos e políticos em um campo de conhecimento. Ao empregarmos o signifcante "subjetividade" como, por exemplo, pensar a subjetivação na perspectiva psicanalítica, implica esforço intelectual considerável para esclarecê-lo, não sendo, portanto, uma substituição para o conceito de psíquico ou de desenvolvimento psicológico. Caso subjetividade seja compreendida como sinônimo dos conceitos acima mencionados, é pertinente ao pesquisador esclarecer que o toma como tal. A perspectiva e a conceituação de subjetividade para a Psicologia sócio-histórica certamente diferem dos empregos do termo para a teoria psicanalítica, o que nos remete à pluralidade de signifcados possíveis, retratando a complexidade das teorizações sobre a subjetividade.

Em que pese as diversas possibilidades de sentido de subjetividade e subjetivação, para compreender seu surgimento, em maior ou menor grau, é necessário que recorramos à Filosofia - em especial a Michel Foucault – e aos estudos empreendidos pelos teóricos Gilles Deleuze e Felix Guatarri. Para o primeiro, a subjetividade é da esfera da produção de um "si" (FOUCAULT, 1995), sobretudo. É na obra de Michel Foucault que a idéia de processos de produção de formas de ser, emaranhada a questões como política, poder, linguagem e verdade, é delimitada como ferramenta analítico-conceitual. As razões que levam Foucault a realizar essa invenção conceitual parecem ocorrer pela compreensão desse autor de que o conceito de ideologia não é suficiente para dar conta dos fenômenos sociais e humanos que se testemunham no final do século XX, sobretudo após as experiências do socialismo real, aplicado na extinta União Soviética.

Do sujeito do iluminismo e da reflexão clássica da Filosofia e, eventualmente capaz de se emancipar pela via da razão, Foucault pretende propor o conceito de subjetividade como sendo "a maneira pela qual nos tornamos o que somos" (FOUCAULT, 1995, p. 246). Constrói-se um aparato intelectual para referir o homem ou a subjetividade como resultante de um processo amplo, que implica a História, a Antropologia, a Medicina, a Sociologia e todo acervo justamente das "Ciências Humanas". Para Foucault, somos então essa resultante de atravessamentos, ordenamentos semióticos, regimes de verdades e controle, além de aparatos linguísticos. Convém salientar que Foucault não considera que seja suficiente para compreender os processos de subjetivação apelarmos unicamente à Linguística. O ser é em parte ser da linguagem, mas a emergência de novas figuras existenciais supera o conceito de sujeito tal como é descrito pela Filosofia. Devemos agregar ainda à subjetividade e aos processos de subjetivação a temática do poder. Des-sa forma, tornarmo-nos o que somos não pode ser dissociado do poder e das gerências ortopédicas que este engendra a partir do século XVII, segundo o autor.

Subjetividade e processos de subjetivação não devem, todavia, ser confundidos. Os processos de subjetivação são estratégias criadas pelo poder para produzir não só corpos dóceis, mas subjetividades alinhadas a determinadas finalidades. Em termos gerais, poderíamos dizer que a subjetividade é um feixe de linhas finas, que congregam o resultado de vários processos de subjetivação. Se assim é, torna-se significativo para os pensadores do chamado "campo psi" esclarecer o que queremos dizer ao utilizar o significante "subjetividade", sob o risco de estarmos tomando um conceito por outro ou incorrendo em consideráveis fragilidades do ponto de vista epistêmico. No presente trabalho, o termo "campo psi" abarcará as práticas, discursos e produções teóricas da Psicologia, Psicanálise e Psiquiatria em suas intersecções com o pensamento freudiano e as Ciências Humanas.

É relevante destacar que é na esteira do pensamento de Foucault e amplamente inspirados por ele que surgem os princípios de uma crítica contundente ao sujeito - sobretudo o sujeito da Psicanálise. Os grandes responsáveis pela divulgação dessa recusa ao sujeito psicanalítico (sujeito do desejo e da falta) serão Gilles Deleuze e Felix Guatarri. Autores do campo psicanalítico inicialmente – inclusive tendo frequentado ambos os seminários de Lacan – no decorrer de seu amadurecimento intelectual passam a questionar o primado do significante e as compreensões psicanalíticas sobre as implicações de compreender o sujeito como efeito do discurso. A ruptura dos autores com o campo psicanalítico englobará também uma recusa aos princípios linguísticos de Saussure, de onde Lacan buscará inspiração para a construção dos conceitos de significante e produção do axioma "inconsciente estruturado como uma linguagem".

Lacan não utiliza os conceitos de significante e significado da mesma forma que o criador da Linguística Estrutural, antes realizando uma reversão entre a primazia do significado sobre o significante, de maneira que a organização linguística que se observa na Psicanálise é uma aproximação e diálogo com o estruturalismo linguístico, não uma incorporação da linguística em seu campo pura e simplesmente. Em que pese tal diferenciação, a estrutura como um elemento aberto e livre de significados fixos sofrerá críticas do movimento pósestruturalista (DOSSE, 2007). As críticas mais ferrenhas à noção de estrutura estão presentes no trabalho de Deleuze e Guatarri, postas em uma obra de grande impacto intelectual na França, denominada "O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia" (DELEUZE; GUATARRI, 1972). Entre outras críticas agudas, toma-se a esquizofrenia em sua dimensão positiva, propondo-se que, na verdade, louco está o mundo. Também a partir da organização das ideias desses autores em diálogo com variadas áreas de saber, se proporá o surgimento de um movimento – que não pode ser definido como uma "escola" – denominada esquizoanálise. É apropriado destacar que a esquizoanálise rechaça enfaticamente a ideia de que seus princípios se tornem uma escola teórica ou uma matriz de pensamento. Peremptoriamente os autores defendem a ideia de princípios de criação, não reprodução de pensamento. A lógica formal, a Linguística, tudo é referido como instrumentos ou ferramentas. Nenhum conceito deve ser engessado e remetido à ordem de instituído, pois a proposta de trabalho é justamente desconstruir a reprodução "ad infinitum" de fórmulas e pensamentos cristalizados. Por isso defendem a proposição de um paradigma ético-estético-político.

Ao inconsciente "mecânico" proposto pela Psicanálise, sobretudo por Lacan e seu já referido axioma, "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", Deleuze e Guatarri propõem o conceito de "inconsciente maquínico", muito distante do freudo-lacaniano e sem negatividade inerente ao desejo. Um desejo de pura positividade.

Se para Freud e Lacan o sujeito deseja porque há algo -o objeto -perdido, para a esquizoanálise o que teremos é pura positividade do desejo. Nada falta ao desejo, pois o desejo é construído, semiotizado, lapidado, efeito de diversos agenciamentos coletivos de enunciação (GUATARRI, 1989), portanto passível de ser capturado pelos aparatos do poder e da sociedade capitalista, com seus dispositivos de controle. Esses conjuntos de agenciamentos produzem, então, subjetividades hegemônicas, uniformizando os coletivos, tendo como resultado formas de ser serializadas. Essa hegemonia então produzida atenderia às diversas demandas do que os autores denominam "Capitalismo Mundial Integrado" (CMI) -um conjunto de forças sem rosto, que cada vez mais regulariam a existência e norteariam a face mais visível das formações de subjetividade, que são as identidades.

 

As identidades, as identificações e a subjetividade

Identidade não deve ser confundida com o conceito de subjetividade nos princípios esquizoanalíticos e tampouco para a própria Psicanálise, notadamente a lacaniana. Em verdade o pensamento de Lacan estende-se de maneira distanciada do freudiano no que concerne aos conceitos de identificação. Segundo Roudinesco e Plon (1998), ao retomar de Freud o conceito de traço único da identificação regressiva, La-can o supera ao formatar a Proposição do "traço unário". Remete-se o unário ao um, que no pensamento do autor não implica o mesmo sentido da lógica clássica, nem de um que remete à unidade, mas sim à diferença.

Para os princípios esquizoanalíticos, a identidade seria uma cristalização de um território existencial, aprisionante do devir, do vir a ser que está presente como condição de possibilidade a todo ser. Já para a Psicanálise, não encontramos na obra freudiana o conceito de identidade. Ao invés de identidade, cabe no pensamento freudiano o termo "identificações"; processos primitivos que implicam a lenta produção de um sujeito – nesse caso, tratando-se de sujeito por sujeito do desejo. De acordo com o pensamento freudiano, a identificação será o primeiro traço do bebê como humano, de onde nascem os rudimentos de Eu e outras linhas de identificação, que serão primordialmente de natureza inconsciente(FREUD, 1996). É imperativo ainda ressaltar que a concepção de identidade pode ser encontrada na Psicologia do Ego, mas mesmo assim somente como representante do sentimento de continuidade – inerente ao Eu - e soma de representações que o sujeito produz de si mesmo. Todavia é importante lembrar que essas representações de si são mantidas em grande parte na relação de alteridade e olhar, logo não completamente fixa e imutável.

No sistema de pensamento lacaniano, a teorização mais próxima que obtemos sobre a identidade seria o resultado do Estágio do Espelho, onde a criança se identifica a partir do olhar da mãe – obviamente aqui tomado como metáfora – com uma imagem integrada, toda, justamente em um momento em que a vivência corporal é de fragmentação.

Não que não haja um esboço de sujeito antes do Estágio do Espelho; a existência do sujeito é, com efeito, já acenada no desejo dos pais e no bebê virtual, aquele que é desejado e que habita o psiquismo deles. Sempre é relevante lembrarmos que as operações e metáforas psicanalíticas devem ser tomadas justamente por metáforas, operações simbólicas e funções. Se operarmos com o Édipo, castração e outros conceitos em sua dimensão imaginária, o resultado será inevitavelmente uma leitura simplista e conservadora dos fenômenos, incorrendo em equívocos graves, como o mito da "família estruturada" e seus supostos desvios.É digno de destaque como o mito da família desestruturada é resistente, ainda que inúmeros estudos indiquem que esta expressão é inadequada e tributária do modelo burguês de família, em especial da família patriarcal romana. Sustentar sua defesa na contemporaneidade é um risco, tendo em vista os novos arranjos familiares. Mesmo as próprias diferenças culturais da humanidade já seriam suficientes para indicar que o conceito de família é largamente divergente no espaço e no tempo.

Como alguns segmentos psicanalíticos já indicaram exaustivamente, o sujeito e seus rudimentos genealógicos remontam a uma época anterior à identificação com o olhar da mãe, via função materna, que é sustentada pelo Outro. Por tratar-se de função simbólica ou um lugar vazio, pode ser ocupada pela mãe, mas também pelo pai, pela tribo, por qualquer um que nomeie e sustente um desejo para que este sujeito exista. O resultado no jogo das identificações é uma identidade inacabada, pois constantemente resvala na incompletude da falta; por isso o estatuto de ficção atribuído à suposta estabilidade do Eu. Não há estabilidade em virtude de que a falta e o que pudesse eventualmente tamponá-la não cessam de escorregar de um objeto para outro, em uma incessante miríade que remete o desejo para mais adiante. Logo não há princípio do idêntico, pois mesmo a repetição do sintoma apresenta uma diferença em relação à sua insistência pulsional.

O risco que corremos ao tentar aproximar ou incluir o conceito de subjetividade como construto psicanalítico está em essa inclusão resultar obscura e por vezes tomada como sinônimo de identidade, o que, pelo que vimos aqui e em outra oportunidade (BERNARDES; HOENISCH, 2003), não seria cabível. Se tomarmos, ainda que genericamente, o termo subjetividade, poderíamos, realizando uma "torção" teórica, afirmar que todas as teorias do "campo psi" apresentam uma concepção de subjetividade. Nesse caso, estaríamos tomando a ideia de "como um sujeito se constitui como tal", como sinônimo de subjetividade.

Esta pode ser uma saída teórica razoável, mas novamente nos remetemos ao risco de equívocos teóricos importantes. A constituição da subjetividade para o lacanismo se afasta largamente das teorizações da esquizoanálise. Não que o significante "subjetividade" não esteja presente nas teorizações e ensino de Lacan, por exemplo. Temos na Psicanálise um importante conceito que é a "retificação subjetiva", que em termos gerais implica uma retomada de coordenadas do sujeito diante de seu sintoma e forma de gozo. A retificação subjetiva remete a uma reorganização entre saber, sintoma e relação com o Outro, favorecendo a produção de diferença de si e a desconstrução da alienação do desejo. Mas certamente não figura substituindo o conceito de subjetividade e subjetivação. Em revisão empreendida por nós, o verbete "subjetividade" não foi encontrado em nenhum dos mais conhecidos dicionários do campo psicanalítico, o que justifica a necessidade de buscar esclarecer seu lugar teórico-conceitual nas produções desse campo. Foram consultados os seguintes dicionários: "Dicionário Internacional de Psicanálise", com direção geral de Alain de Mijolla (2005); "Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e La-can", editado por Pierre Kauffman (1996); "Dicionário de Psicanálise", organizado por Elizabeth Roudinesco e Michel Plon (1998) e, por fim, o já clássico e renomado "Vocabulário de Psicanálise", de Laplanche e Pontalis (2001).

 

Estrutura e personalidade

Se o verbete "subjetividade" não é encontrado nos dicionários referidos, o mesmo não pode ser afirmado sobre o conceito de "estrutura". Este último é mais examinado e discutido que o conceito de subjetividade -mas não menos controverso ou polêmico. Justamente essas discussões nos permitem compreender que a estrutura não é equivalente ao uso de subjetividade ou subjetivação. Para o processo de constituição da estrutura, o termo cabível é estruturação, que podemos afirmar, em linhas gerais, tratar-se da constituição de uma configuração de elementos dentro de um campo. A configuração do campo implica uma possibilidade de arranjos desses elementos, sem, contudo, abandonar uma constância – que é justamente a forma ou limite para os ordenamentos dos elementos no sistema. Se tivermos um conjunto com os elementos "A", "B" e "C", circunscritos a um espaço, estes poderão ser rearranjados e combinados de inúmeras formas, sendo possível inclusive sua combinação para daí emergirem novos elementos, mas de forma relativamente circunscrita.

Mas mesmo o conceito de estrutura, caro à Psicanálise clássica, pode ser perfeitamente deixado de lado por outros segmentos, também sob a denominação de Psicanálise, que compreendem a subjetividade como da ordem do pós-estrutural.

Essa breve explanação serve de ilustração sobre o controvertido tema da possibilidade da mudança de estrutura, por exemplo, de psicótica para neurótica. Ainda que todos os elementos das três estruturas estejam presentes na organização psíquica e se apresentem na forma de traço ou montagem, a partir dos destinos da travessia do complexo de Édipo e do encontro com a Castração é que as operações psíquicas serão construídas em seus limites, inclusive por ausência de elementos constitutivos para sua ocorrência.

Por exemplo, o fracasso do complexo de Édipo, que resulta em sua não ocorrência, está alinhado a uma configuração estrutural psicótica. Assim, ainda que elementos neuróticos e perversos estejam presentes nessa configuração, sua expressão e ancoragem imaginária (no caso da psicose), papel na economia psíquica, formação de sintoma e inscrição social serão modestos. Discutir em profundidade a conceituação de estrutura na teoria psicanalítica supera em muito as dimensões deste trabalho. Se a retomamos aqui é basicamente para delinear as consideráveis diferenças entre estruturação e subjetivação, dois processos que deverão ser considerados como fundantes e fundamentais, que por vezes apresentam convergências, mas jamais são sinônimos. A mesma distância teórica cabe ao conceito de personalidade.

Se o conceito de subjetividade surge com a finalidade de desalojar o sujeito da razão e da emancipação, como pensá-la análoga à personalidade? Ademais, o próprio conceito de personalidade fica sumamente vago e indefinido, em que pese as tentativas de sistematizá-lo. No campo do Direito, por exemplo, essa diversidade de conceituações de personalidade, ou pelo contrário, falta de clareza sobre ele, abre um flanco infinito de equívocos e discursos despregados, sobretudo na Criminologia, com seu inapropriado conceito de "personalidade criminal".

Somemos a isso a compreensão de que subjetividade e personalidade também não são equivalentes aos conceitos de estrutura e teremos um debate fecundo ainda por ser travado. O conceito de estrutura, caro a alguns segmentos da Psicanálise, é perfeitamente deixado de lado por outros que também se denominam psicanalíticos. A diferença é que há um segmento de psicanalistas que compreendem a subjetividade como um fenômeno eminentemente pós-estruturalista.

Haveria uma Psicanálise pós-estruturalista, portanto? Não foram poucas as críticas à Psicanálise em sua junção ao pensamento estrutural, sendo este visto como uma tentativa de tornar o referencial psicanalítico "científico". Em nossa opinião, este debate ainda não está encerrado, e a questão do avanço do uso do termo subjetividade pode, em alguns casos, estar sendo utilizada para contornarmos justamente essa discussão sobre o lugar da estrutura na conceituação psicanalítica. A fecundidade desse debate reside em esclarecer – função do pensamento psicanalítico, alinhado à ciência, mas não submetido a ela -os usos dos termos estrutura, subjetividade e subjetivação com vistas a produzir novas formas de compreensão do lugar da Psicanálise no contemporâneo. Dessa forma, respondendo aos desafios e críticas que a acompanham desde sua criação por Freud. Se a estrutura não é o equivalente à essência – e isso parece já estar claro no campo psicanalítico – se o lugar do sujeito é um lugar vazio, a ser ocupado pelos significantes por ele passíveis de incorporação, a complexidade da formação do sujeito em Psicanálise ainda está longe de ser uma etapa encerrada por nossa disciplina e urge continuarmos o debate sobre a genealogia do sujeito e suas aproximações e afastamentos do conceito de subjetividade.

 

Referências

BERNARDES, A. G.; HOENISCH, J. C. D. Subjetividade e identidades: possibilidades de Interlocução da Psicologia Social com os Estudos Culturais. In: BRUSCHI, M. ; GUARESCHI, N. M. Psicologia Social nos Estudos Culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2003. p.95-126.         [ Links ]

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ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Marques de Monte Santo, 59 - Ap. 203
41940-330 - Salvador/BA
E-mail: cesarhoenisch@gmail.com

Recebido: 29/09/2010
Aprovado: 17/11/2010

 

 

1 Psicólogo, Especialista em Saúde Pública/FioCruz, Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), Prof. Visitante do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana/BA, pesquisador do Núcleo de Estudos da Contemporaneidade.
2 Psicólogo, Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (2003).

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