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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte dez. 2010

 

 

Como suportar o insuportável de nossos pacientes? Uma reflexão sobre o manejo clínico do além do princípio de prazer

 

How to bear the unbearable of our patients? A reflection about the clinical management of the beyond the pleasure principle.

 

 

Ligia Maria DurskiI1; Nadja Nara Barbosa PinheiroI2

IUniversidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo se constitui uma reflexão sobre qual seria o manejo possível, na clínica da psicanálise, diante de quadros que apontam para o além do princípio do prazer, denotando o que aparentemente pode se configurar como uma busca a um "puro sofrimento". Para tanto, recortaremos a especificidade do percurso freudiano sobre o ponto de vista econômico do funcionamento psíquico (principalmente no que concerne à teoria pulsional), demonstrando que o paradoxo inerente entre pulsão de vida e pulsão de morte pode nos auxiliar a pensar sobre uma pergunta específica: como suportar o insuportável de nossos pacientes?

Palavras-chave: Psicanálise, Clínica, Pulsão de morte.


ABSTRACT

This article was written as a reflection about what is the possible handle, in the psychoanalytic clinic, of cases that point to the beyond the pleasure principle, denoting a search for a "pure suffering". For that, it was made a cut inside Freud’s work, specially under the economic point of view of the psycho labor, showing that the paradox between pulsion of life and pulsion of death can permit a study about one specific question: how to bear the unbearable of ours patients?

Keywords: Psychoanalysis, Clinic, Pulsion of death.


 

 

Introdução

Com a leitura de seus textos, podemos perceber que Freud, ao longo de toda sua obra, deixou claras a importância e as implicações do ponto de vista econômico para o funcionamento do aparelho psíquico. Tendo isso em vista, neste artigo realizaremos um breve recorte sobre a especifcidade da construção da teoria pulsional sublinhando o que o autor apontou como sendo as principais forças vigentes na vida psíquica.

Em nosso percurso, nos pautaremos, principalmente, no texto "Além do Princípio do Prazer", no qual Freud, em 1920, abriu as portas para uma questão fundamental dentro da clínica da psicanálise: a pulsão de morte. Com o estudo da compulsão à repetição na brincadeira infantil, nos sonhos da neurose pós-traumática e na transferência, o que Freud sublinhou foi uma busca por sofrimento aparentemente a expensas do princípio de prazer, denotando a existência de um além dos domínios desse princípio organizador.

Pretendemos, com nossa revisão, unir importantes informações na busca de soluções e refexões para impasses que, na clínica da psicanálise, podem se apresentar na forma de paradoxos que ultrapassariam a tendência ao prazer, denotando um "cultivo" a um "puro" sofrimento. Com isso, visamos possibilitar mais um ponto de vista, dentro de incontáveis pontos de vista possíveis, sobre o manejo clínico disso que aponta para um além do princípio de prazer e que coloca em jogo, na clínica, a capacidade do analista de suportar certos movimentos "destrutivos" e/ou "autodestrutivos" de seus pacientes.

Devemos ressaltar que, na construção de nosso questionamento, partimos de nossa própria experiência clínica ao nos depararmos com dificuldades de manejo que nos autorizam a propor como questão: como suportar, em transferência, o que parece se apresentar como insuportável para nossos pacientes?

A sequência teórica escolhida -em decorrência de nossa pergunta e do recorte do ponto de vista econômico da obra freudiana – ficou, então, assim definida: 1) Destacar, no início da obra freudiana, alguns elementos que possibilitaram ao autor formular sua primeira teoria pulsional caracterizada pela du-alidade Pulsão do Eu X Pulsão Sexual, tendo como ponto de partida seus estudos sobre os sonhos e a histeria sustentados sobre a ideia de uma "economia da excitação" intrínseca à vida psíquica; 2) recortar, no desdobramento da obra freudiana (entre 1911 e 1920), importantes impasses teóricos e clínicos que lhe permitiram rever sua primeira teoria pulsional, abrindo passagem para a postulação de um novo dualismo; 3) propor algumas considerações sobre a decisão freudiana de sustentar sua segunda teoria pulsional sobre o paradoxo entre "Pulsão de vida / Pulsão de morte", e 4) com referência ao recorte teórico realizado, propor algumas reflexões que nos auxiliem em um manejo possível para aquilo que se apresenta, na experiência da clínica, como se situando em um além do princípio de prazer.

 

A histeria como porta de entrada ao ponto de vista econômico sobre o funcionamento psíquico

Comecemos, pois, pelo início da obra freudiana, o qual demonstra que o estudo da histeria contribuiu significativamente para um aprofundamento sob o ponto de vista econômico intrínseco ao funcionamento psíquico.

Já no ano de 1893, no texto "Alguns pontos para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas", Freud, ao comparar uma paralisia orgânica com uma paralisia histérica, se deparou com algumas dificuldades específicas acerca da questão "somático/psíquico" que fizeram com que ele chegasse à seguinte conclusão:

Afirmo que a lesão nas paralisias histéricas deve ser completamente independente da anatomia do sistema nervoso, pois, nas suas paralisias e em outras manifestações, a histeria se comporta como se a anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta. (FREUD, 1893, p.234).

Freud então indagará: se a histeria se comporta como se a anatomia não existisse, quais seriam as vias utilizadas na ocorrência de uma paralisia dessa ordem? Aliás, de que ordem é a paralisia na histeria? Uma vez que esta:

(...) ignora a distribuição dos nervos, e é por isso que ela não simula paralisias periféricomedulares ou paralisias em projeção. (...) Ela toma os órgãos pelo sentido comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna até sua inserção no quadril, o braço é o membro superior tal como aparece visível sob a roupa. (FREUD, 1893, p.234, o grifo é nosso).

A par destas observações, Freud teve de admitir uma etiologia da paralisia na histeria que não se embasasse, portanto, exclusivamente em dados fisiológicos, ou em psíquicos, mas em ambos: "Juntamente com os sintomas físicos da histeria, pode ser observada toda uma série de distúrbios psíquicos." (FREUD, 1898, p.89).

Fica claro que, com o estudo da histeria, Freud começou a defender a importância de pensarmos o ponto de vista econômico ao estudarmos fenômenos que se refiram ao funcionamento psíquico, advertindo o leitor de que esse ponto de vista econômico dirá respeito não somente às reações psíquicas ocorridas em consequência de efeitos e exigências somáticas, mas também aos efeitos e exigências do mundo externo ao corpo orgânico.

Portanto, diante da importância disso que estava se delineando como uma questão econômica, Freud conseguiu inferir que o segredo de uma paralisia histérica estava relacionado a uma impossibilidade de alguma ideia específica ter acesso à consciência e, por alguma razão, conseguir escoamento apenas por uma via somática: "na histeria a idéia incompatível (à consciência) é tornada inócua pelas transformações da soma de excitação em alguma coisa somática. Para isso eu gostaria de propor o nome conversão." (FREUD, 1894, p.61, o grifo é nosso).

Já no ano de 1895, no texto "Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular intitulada neurose de angústia", Freud fará outra comparação, agora entre a histeria e a neurose de angústia e, entre as similaridades e diferenças entre estas patologias, vemos que a ênfase dada ao ponto de vista econômico não só se tornou necessária para explicar alguns fenômenos psíquicos, mas que tal economia estava diretamente relacionada às relações "somático/ psíquico":

(...) a neurose de angústia é realmente a contraparte somática da histeria. Na última como na primeira, há uma acumulação da excitação (que é talvez a base da similaridade dos sintomas que mencionamos). Na última como na primeira, constatamos uma insuficiência psíquica, em conseqüência da qual surgem os processos somáticos anormais. Também na última como na primeira, em vez de uma sobrecarga psíquica da excitação, ocorre um desvio dela para o campo somático; a diferença é simplesmente que na neurose de angústia a excitação, em cujo deslocamento a neurose se expressa, é puramente somática (excitação sexual somática), enquanto na histeria é psíquica (provocada por um conflito) (FREUD, 1895, p.134).

Freud então passará a se dedicar a definir melhor sua recém-formulada teoria da "economia de excitação". Cabe sublinhar o que está sendo designado como "excitação", posto que Freud realizará uma importante diferenciação entre "excitações internas" (do corpo orgânico) e "excitações externas" (do mundo externo) para essa economia das excitações.

Essa ideia de uma "economia de excitação" foi o gérmen necessário para o desenvolvimento da primeira teoria pulsional. Vejamos como se sucedeu tal passagem.

 

Da economia de excitação à primeira teoria pulsional

Pois bem, percebendo como que um "jogo de forças" inerente ao funcionamento psíquico (jogo este implicado tanto na etiologia da histeria como no estado normal de sono), Freud ponderou que seria o arcoreflexo a atividade que marca a tendência inicial das manifestações psíquicas.

O arco-reflexo se define como, uma inclinação do aparelho psíquico a livrar-se dos estímulos que lhe acometem, descarregando-os, a princípio, pela via motora, declarando certa tendência à inércia pela resposta de fuga a tais estímulos:

(...) a princípio, os esforços do aparelho tinham o sentido de mantê-lo tão livre de estímulos quanto possível; conseqüentemente, sua primeira estrutura seguia o projeto de um aparelho reflexo, de modo que qualquer excitação sensorial que incidisse sobre ele podia ser prontamente descarregada por uma via motora. (FREUD, 1900, p. 542).

Uma vez que essa primeira resposta de descarga é pela via motora, Freud acrescenta que são as "exigências da vida" que impedem a suficiência dessa função, movimentando o desenvolvimento do aparelho:

As exigências da vida confrontam-no (o aparelho), primeiramente, sobre a forma das grandes necessidades somáticas. As excitações produzidas pelas necessidades internas buscam descarga no movimento, que pode ser descrita como uma "modificação interna" ou uma "expressão emocional". (FREUD, 1900, p.543, o grifo é nosso).

Freud perceberá que a situação permanece inalterada mesmo com essa tentativa de descarga pela via motora, "pois a excitação proveniente de uma necessidade interna não se deve a uma força que produza um impacto momentâneo, mas a uma força que está continuamente em ação". (FREUD, 1900, p.543).

Vemos que, até o ano de 1900, o ponto de vista econômico auxiliou Freud a construir isso que então se definia como uma relação entre algo que produz excitações (no caso, as necessidades somáticas) e algo que reage a essa excitação (aparelho psíquico). A partir disso, será para tentar "lidar" com estas excitações que Freud defenderá sua concepção de como nosso aparelho psíquico formula arranjos, desarranjos e re-arranjos em seu funcionamento e constituição.

Ou seja, até a "Interpretação dos Sonhos", o que parece definir o aparelho psíquico na obra freudiana é a capacidade de reação e de tentativa de controle de estímulos. No en-tanto, se o aparelho psíquico se constitui na medida em que tenta se livrar daquilo que o movimenta, poderíamos afirmar que o aparelho psíquico é/funciona na medida mesma em que objetiva não ser (busca a inércia)? Mantenhamos essa pergunta em mente para melhor discuti-la quando trouxermos à tona a definição de pulsão de morte.

Pois bem, na sequência de suas especulações, Freud demonstra que, nessa tendência a livrar-se de estímulos, fica óbvia outra relação específica vigente no funcionamento psíquico: a relação prazer/desprazer.

Sendo, precisamente, a sensação de prazer correlacionada a uma redução da tensão, e a sensação de desprazer, a um aumento da tensão [Acrescentemos aqui a ressalva de que essa relação entre aumento de tensão/ desprazer e diminuição de tensão/prazer mudará drasticamente dentro da teoria psicanalítica quando Freud considerar a ocorrência de aumentos de tensão prazerosos e reduções de tensão desprazerosas]. Consiste, portanto, na relação prazer/desprazer a primeira forma (como uma primeira classificação) do aparelho psíquico selecionar aquilo que lhe interessa e aquilo que causaria aversão.

Ou seja, resumidamente, depois de fracassar em livrar-se completamente das excitações, parece que o aparelho se esforça por "criar referências" que o auxiliem a lidar com essas excitações, e tais referências se dariam, num primeiro momento, a partir dessas sensações de prazer e desprazer. Enfatiza-se, pois, a importância da intensidade e da frequência das vicissitudes que acometem o aparelho para a seleção daquilo que é ou não prazeroso.

Podemos perceber que a capacidade de memória será então fundamental para que o aparelho consiga identificar/transformar quantidades de excitação em qualidades prazerosas ou desprazerosas e para que se constitua um sistema de categorização que o auxilie num "controle" dessas excitações, ficando definitivamente evidente a importância desse "lidar com as excitações" para o desenvolvimento do aparelho.

A originalidade da especulação freudiana diante da questão econômica também tornase mais demarcada com a correlação que Freud sublinha sobre um modo específico e primitivo de reação às excitações, modo que se distingue da descarga motora: o alucinar. A característica específica de vivência contida na alucinação - na qual aquilo que é alucinado é ilusoriamente percebido como real - será outra tendência inicial do aparelho psíquico funcionar e que permanece operante, mesmo após o desenvolvimento de outras formas de funcionamento psíquico.

No alucinar, o bebê presentifica o objeto que proporcionaria a satisfação de alguma carência, sendo essa "ação" uma característica de seu funcionamento psíquico ainda imaturo e sendo que tal "ação" não é completamente abandonada quando da formulação de outras "ações", pois tal modo de operar continua existindo tanto na vida onírica como em certas patologias (a exemplo das alucinações na esquizofrenia).

Justamente, foi com o estudo dos sonhos que Freud observou que tal modo de funcionamento continua operante:

(...) O sonhar é, em seu conjunto, um exemplo de regressão à condição mais primitiva do sonhador, uma revivescência de sua infância, dos impulsos instintuais que o dominaram e dos métodos de expressão de que ele dispunha nessa época. (FREUD, 1900, p.528).

Ou seja, aquilo que um dia dominou a vida de vigília, quando o aparelho psíquico ainda tinha desenvolvido precários modos de funcionamento, será banido para a vida onírica, sendo o sonho um fragmento do modo de funcionamento psíquico infantil. Modo esse que se apresenta como ainda incapaz de satisfação das carências em relação ao mundo externo, uma vez que o objeto alucinado não necessariamente supre a carência (em outros termos, por exemplo: o fato de que alucinar o seio não propicia a ingestão real de leite).

Poucos anos mais tarde, no texto "Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade" (1905), Freud fará uma revisão da implicação da lógica prazer/desprazer que acompanha a então nomeada "teoria pulsional".

De modo geral, Freud frisa, nesse texto, a importância do fator sexual no funcionamento psíquico de qualquer indivíduo, sendo este fator diretamente correlacionado à relação prazer/desprazer e à questão da meta de satisfação observada desde a infância pela via da descarga motora e do alucinar.

Freud nos adverte também nesse texto que não devemos nos enganar com a relação entre o que seria da ordem do "sexual" e o que seria da ordem do "genital" para pensarmos a questão da sexualidade humana. Será, pois, especificamente ao nos referirmos à lógica prazer/desprazer que poderemos pensar a questão da sexualidade humana para a Psicanálise.

Também aí começam a ficar mais claras a relevância e implicação do desenvolvimento da relação objetal para o desenvolvimento psíquico e, sobre isso, vale lembrar que Freud declara que o "essencial (no estudo do funcionamento psíquico) não é a gênese da excitação, mas sua relação com o objeto." (FREUD, 1905, p.59).

O exemplo do chuchar e do alucinar, explícito nos "Três Ensaios", denota a tendência à busca por um objeto de satisfação que, quando alcançado, proporciona a suspensão temporária de alguma carência. Porém, como nem tudo que proporcionaria essa suspensão temporária da carência esta "à mão" para o bebê, será necessário que este comece a conceber o mundo externo para alcançar seus objetos de satisfação; nesse trabalho de conceber o mundo externo, diferenciações começam a se efetuar, tais como: mundo interno/mundo externo, Eu/não-Eu, sujeito/objeto, entre outras.

Com o estudo da sexualidade, Freud definirá então as chamadas fases de desenvolvimento da libido que se constituem na especificidade das formas de relação objetal e seus respectivos modos de satisfação. São elas: a) as fases pré-genitais (oral, anal e fálica) e; b) a fase genital. Adverte que, obviamente, não devemos pensar em passagem de uma fase para outra nesse contexto. Portanto, não poderíamos dizer que, por exemplo, ao chegarmos à fase anal, a fase oral se encerre.

O que fica claro na obra freudiana é uma "continuidade/coexistência de fases", como se uma se sobrepusesse à outra, não haven-do um fim definitivo da fase anterior. Além disso, essa linha de pensamento demonstra uma coerência impressionante de Freud em outro aspecto de sua obra: o do modo primitivo de funcionamento psíquico do alucinar e o fato desse modo não ser de fato "abandonado". Será, pois, sob uma perspectiva "não-evolutiva", "não-desenvolvimentista", por assim dizer, que se baseará a noção de aparelho psíquico para Freud.

Em resumo, temos que, pelo fato de essas "exigências imperiosas oriundas de necessidades internas do organismo" perturbarem o estado de repouso psíquico, este tem uma de suas primeiras reações na forma de escoamento pela via motora e/ou pela alucinação daquilo que apaziguaria essas tensões - estando esse mecanismo de alucinar ainda presente em nossa vida onírica -; porém, pelo fato de o alucinar não ter se mostrado eficaz, a via alucinatória teve de ser "abandonada" (do estado de vigília e na melhor das hipóteses), para que o bebê concebesse o mundo externo e, só assim, pudesse realizar uma modificação deste, aproximando-se da meta de satisfação. Vemos, pois, que até mesmo o desagradável teve de ser concebido e, assim, instaura-se o princípio da realidade.

Concomitantemente, para que ocorra a ação de atenção ao mundo externo, é preciso que haja um mundo externo e, em consequência, um mundo interno [Também, a atenção pressupõe um desconhecido que impele essa "precaução" de "estar atento" como que para evitar surpresas e, se há um desconhecido, há uma falta, algo que não se sabe, um não saber.]. A concepção do mundo externo -a necessidade de considerá-lo para que os objetos de satisfação sejam alcançados - permite, em contrapartida, também a construção/ concepção de um mundo interno. Ou seja: um se constrói/é em referência ao outro.

Numa franca busca por concretizar sua teoria pulsional, Freud percebeu ser necessário definir aquilo que ele chamava de "pulsões originais". Sobre isso, vejamos a seguinte citação: "Que pulsões devemos supor que existam e quantas?" (FREUD, 1915, p.150). A essa pergunta acerca do conteúdo temático das pulsões, Freud revelou que talvez fosse mais profícuo nos perguntarmos se "esses conteúdos pulsionais tão especializados não deveriam ser retroativamente decompostos na direção das fontes pulsionais, a fim de se chegar às pulsões originais, àquelas não mais divisíveis, e atribuir apenas a estas uma efetiva importância." (FREUD, 1914, p.150). Tendo tal perspectiva em mente, até o ano de 1920, Freud definiu a divisão original das pulsões entre: Pulsões do Eu X Pulsões Sexuais. Freud advertia ainda que quaisquer outras qualificações da pulsão – como: pulsão oral, pulsão escópica, etc. – seria apenas uma ramificação das originais.

Portanto, de modo geral, a primeira divisão pulsional - chamada de "primeira teoria pulsional" - se pautava na divisão entre Eros e Ananke, ou Amor e Necessidade. Porém, com a relevância da questão da relação de objeto, se Eros precisa de objetos externos para se satisfazer, também Ananke (a necessidade de alimento, por exemplo) estipula a busca por um objeto externo (no caso, o alimento), colocando em contradição essa divisão. Freud foi então obrigado a rever essa primeira formulação sobre as chamadas pulsões originais.

 

Da oposição entre pulsões sexuais versus pulsões do eu, para o paradoxo entre pulsão de vida/pulsão de morte

Chegamos a um ponto de virada dentro da obra freudiana que marca uma nova fase em seus escritos, posto que, diante do dilema com o qual foi confrontado, dentro dessa confusão entre pulsões do Eu e pulsões sexuais, Freud precisou especular mais profundamente um tema específico: a formação do Eu.

Fica claro que, quando do aprofundamento sobre a questão econômica (culminando na primeira teoria pulsional), Freud precisou investigar outra perspectiva: a tópica – enfatizando o estudo da formação do Eu. Constam, especialmente no período entre 1911 e 1914, importantes textos freudianos que frisam esse estudo: como "O caso de Schereber", de 1911, ou o texto "À Guisa de Introdução ao Narcisismo" de 1914. O narcisismo foi, pois, imprescindível para Freud dar mais alguns passos na compreensão da economia pulsional, da formação do Eu e, de modo mais amplo, da constituição e do funcionamento psíquico.

Diante das contribuições advindas da investigação sobre a tópica psíquica, Freud estava começando a perceber que também o Eu pode ser um objeto de investimento libidinal; isso alteraria drasticamente a divisão/oposição feita entre pulsões do Eu e pulsões sexuais. Em outras palavras, como a questão econômica não pôde ser considerada sem referência à questão tópica, ao aproximar-se mais da análise do Eu, Freud teve de reconhecer que também parte das pulsões do Eu era de natureza libidinal, isto é, tomara o próprio Eu como objeto e, com o avanço do estudo do Eu, tal divisão tornou-se, pois, inviável.

Resumindo, o quadro estava se desenhando da seguinte maneira: 1) Se, por um lado, estava constatada a existência de pulsões autoeróticas (satisfazem-se no próprio corpo), também existem as pulsões que precisam de um objeto externo ao corpo para se satisfazerem, e; 2) Se, por um lado, estava constatada a existência de pulsões de autoconservação (comer, respirar, etc.), também existem as pulsões que, destacando-se das pulsões de autoconservação, buscam estritamente o prazer (por exemplo, o chuchar).

Vemos que se Freud, a princípio, estava tentando categorizar as pulsões a partir da diferença entre Fome X Amor, a questão das relações de objeto obrigou-o a rever esta divisão. Sendo o próprio corpo também um objeto, mesmo que não alheio e sendo o próprio Eu também um objeto, mesmo que interno, Freud começou a definir a existência de duas tendências ainda mais radicais que não simplesmente as de Amor X Fome (Eros X Ananke). São elas: uma tendência à construção (Eros) e uma tendência à destruição (Tânatos), tendências estas também referidas à oposição entre unir X separar.

Seis anos decorreram após "À Guisa de Introdução ao Narcisismo" (1914), para que Freud delimitasse, no texto "Além do Princípio de Prazer" (1920), que o fator fundamental no desenvolvimento do aparelho psíquico não será necessariamente a oposição entre pulsão do Eu X pulsão sexual, mas a existência de pulsões que reclamam um objeto e outras que o aniquilam. Freud aponta, então, para uma divisão pulsional ainda mais radical caracterizada pela paradoxal dupla tendência entre construção/aniquilação do objeto.

Em 1915, no texto ‘Pulsão e os destinos da Pulsão’, Freud já nos dava indícios dessa radical dupla tendência pulsional [Como nota, vejamos outra importante citação sobre isso: "Na medida em que é auto-erótico, o Eu não necessita do mundo externo. Entretanto, devido às experiências das pulsões de auto-conservação, o Eu passa a receber os objetos do mundo externo." (FREUD, 1915, p.158)], suas concepções foram sendo revistas especialmente no sentido de tornar claro isso que se constituiu como um paradoxo no funcionamento psíquico:

[Podemos definir] duas espécies de pulsões: aquelas que visam a conduzir a vida à morte (distender) e aquelas que estão continua-mente almejando e realizando a renovação da vida (tensionar), as pulsões sexuais. (FREUD, 1920, p.168).

Ou seja, há "duas espécies de processos opostos que se encontram constantemente em ação na substância viva: um construtivo ou assimilatório e outro demolidor e dissimilatório." (FREUD, 1920, p.171). Consequentemente, existem processos que ocorrem à revelia do princípio de prazer, sendo o próprio corpo orgânico um dos principais oponentes a este princípio, pois, pelo fato de este exigir objetos alheios (o ar para respirar, a comida para a nutrição, entre outros.), esse corpo orgânico também é perturbador da tranquilidade.

As moções pulsionais que perturbam a tranquilidade, Freud ligará às pulsões de vida, e as que objetivam a inércia ligar-se-ão às pulsões de morte:

Também seria uma questão interessante pensar no fato de que as pulsões de vida mobilizam muito mais nossa percepção interna -pois elas se apresentam como perturbadoras da tranqüilidade, trazendo contínuas tensões, cujo alívio é sentido como prazer -, enquanto as pulsões de morte parecem realizar seu trabalho de maneira mais discreta. O princípio de prazer parece, de fato, estar a serviço das pulsões de morte. (FREUD, 1920, p.181).

Freud referirá ambas essas pulsões como processos de construção e de demolição, no entanto, fica claro que dificilmente ambas se encontrarão completamente separadas, posto que, para que algo seja destruído, é preciso ter antes ocorrido uma construção e vice-versa:

A cada um desses dois tipos de pulsão corresponderia um processo fisiológico específico (um processo de construção ou de demolição), de modo que, em todo fragmento da substância viva, sempre encontraremos atuantes ambas as pulsões. No entanto, ambas atuam combinadas em diferentes porções. (FREUD, 1923, p.50).

A partir da última citação, a coexistência/ dupla-tendência entre pulsão de vida e pulsão de morte fica óbvia, demonstrando uma vez mais a importância de percebermos esse paradoxo radical no funcionamento psíquico.

Com essa nova perspectiva sobre a teoria pulsional, Freud então revisará - especialmente em 1924, no texto "Sobre o Problema Econômico do Masoquismo" - sua definição da relação prazer/desprazer ao se perguntar como são possíveis aumentos de excitação prazerosos e reduções de excitação desprazerosas, bem como a ocorrência de patologias que evidenciam um além do prazer e uma fixação no sofrimento. A exemplo disso, vejamos a seguinte citação:

(...) uma neurose que vinha resistindo a nossos esforços terapêuticos pode surpreendentemente desaparecer assim que o paciente entra em um casamento infeliz, perde seu patrimônio ou contrai uma perigosa doença orgânica. Vemos, então, que uma forma de sofrimento foi rendida pela outra, era apenas uma questão de manter ativa uma certa magnitude de sofrimento. (FREUD, 1924, p.111).

Portanto, até esta data, Freud correlacionará a tendência da pulsão de morte ao princípio de Nirvana (que prioriza a redução quantitativa da excitação); a tendência da pulsão de vida ao princípio de prazer (que prioriza a questão qualitativa da excitação), e a influência do princípio de realidade (que exige um postergamento da busca imediata de satisfação em prol da aceitação da realidade). Isso posto, vejamos a citação ipsis literis:

Nenhum desses três princípios destitui o outro do poder. Aliás, em geral, eles sabem conviver bem uns com os outros, embora, é claro, conflitos ocasionais sejam inevitáveis, pois um lado privilegia a redução quantitativa da carga de estímulos, o outro, as características qualitativas dessa redução de carga, e o terceiro, um adiamento do escoamento de estímulos acumulados, exigindo uma aceitação temporária da tensão gerada pelo desprazer. (FREUD, 1924, p.107).

Podemos perceber que, diante de tendências diversas e potencialmente contraditórias, a obra freudiana não fecha uma questão, mas, ao contrário, a amplia e demonstra claramente um buraco, uma falta, que pode tanto movimentar como paralisar o funcionamento psíquico, dependendo do caso a caso a possibilidade de re-arranjos.

 

Conclusões sobre a contribuição do ponto de vista econômico para uma reflexão sobre o manejo de impasses clínicos que apontam para um além do princípio de prazer

Ao nos aprofundarmos sobre o estudo do jogo de forças presente no aparelho psíquico, ironicamente, ao invés de fecharmos a questão dando uma resposta a nossa pergunta, a abrimos ainda mais. Ao sublinharmos um intrínseco paradoxo entre os princípios vigentes na vida psíquica, um buraco, um intervalo, uma escansão ficou exposta.

Em analogia, podemos destacar que tal "buraco" se tornou como que a folha em branco necessária para que qualquer escrita seja possível. No entanto, é impossível "cobrir totalmente tal folha", pois, se tal fosse possível, paradoxalmente, não teríamos um texto e sim uma "folha em preto", invés de uma "folha em branco". Ou seja, necessariamente, para que haja qualquer elaboração (qualquer escrita), será preciso um fundo de vazio de "espaço em branco". Toda elaboração pressuporá uma não elaboração e aí se encontra o núcleo interminável de uma análise.

O paradoxo inerente à vida psíquica nos permite, pois, inferir que haverá sempre algo de "não elaborável" que o paciente pode apresentar em maior ou menor grau, causando variáveis manifestações de angústia. Portanto, cobrir ou tamponar esse "não elaborável", além de ser inútil, não seria interessante, pois é também - e paradoxalmente - esse "buraco" que permite algum movimento, impedindo a vitória da tendência à inércia.

Porém, o que nos interessa sublinhar é que algo da ordem desse "não elaborável" parece muitas vezes apresentar-se na clínica como insuportável, insustentável para o paciente, deflagrando um desafio sobre qual o manejo clínico nessa especificidade de manifestações que, apontando para o além do princípio do prazer, denotam o que aparentemente – e, como vimos, apenas aparentemente - pode se configurar como uma busca a um "puro sofrimento".

Como especulação, parece possível afirmar que o manejo do "insuportável" não deve necessariamente ser o escoamento pela via da representação/palavra; se o fosse, entraríamos numa lógica "anticastração" na qual se considera que tudo pode ser dito e que isso é a solução, a fórmula mágica para a "cura" da angústia.

Pelo contrário, quando a angústia do paciente chega ao ponto perigoso de permitir a vitória da inércia, parece que uma saída possível é (obviamente apenas em alguns casos) simplesmente suportar esse insuportável, sustentá-lo, enquanto novas possibilidades ainda não se fazem propícias ao paciente. Em outras palavras: castração é vida, porém, a angústia de castração pode ser intensa a ponto de permitir a vitória da inércia.

Com isso, não podemos definir que o fazer clínico em Psicanálise se restringe ao chamado processo secundário de captura e enlaçamento pela via da representação (mais especificamente pela representação de palavra) como forma de lidar com as excitações, mas também abarca a necessidade de algo como que uma "sustentação do indizível" para que talvez sejam construídos pelo paciente desfechos mais suportáveis diante da briga de poderes dos três princípios vigorantes na vida psíquica (princípio de Nirvana, de Prazer e de Realidade).

Para concluir, podemos asseverar que é disso que também trata o desenvolvimento deste artigo: uma via de sustentação – prévia e precária – da angústia do "não elaborável".

 

Referências

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Endereço para correspondência
Praça Santos Andrade, 50
80060-300 - Curitiba/PR
E-mail: ligiadurski@hotmail.com

Recebido: 30/09/2010
Aprovado: 27/11/2010

 

 

1 Psicóloga, Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Membro do Laboratório de Psicanálise (UFPR).
2 Mestre e Doutora em Psicologia, Prof. adjunta da graduação e do mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Coordenadora do Laboratório de Psicanálise (DEPSI-UFPR).

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