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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte Dec. 2010

 

 

Escrever para não enlouquecer

 

Writing not to go crazy

 

 

Maria Helena Ricardo Libório Barbosa Mello1

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende trabalhar a função da escrita no contorno do objeto a, tomando como operador a relação literatura e psicanálise.

Palavras-chave: Escrita, Escritura, Objeto a.


ABSTRACT

This article intends to discuss the function of writing at the outlining of the a object, based on the relation between literature and psychoanalysis.

Keywords: Writing, Literature, Psychoanalysis.


 

 

Ponto de partida

"Se eu quisesse, enlouquecia [...] a nossa vida, a vida inteira, está como... como um acontecimento excessivo [...]" (HELDER, 2005, p.11).

Dito do poeta português, tomado pelo enviesado de sua fala, fazendo dobras onduladas na leitura.

... no princípio a escrita, a inscrição que faz sulcos na carne (HELDER, 2005).

Vem o medo, decerto. Talvez pela presença de uma travessia que se parece com a noite, inquieta, desasossegada, uma travessia do traço.

Vem a força assim parecida com um certo despertar. Despertar para significâncias que se abrem, na singularidade do estilo, sempre alteráveis, reorganizações de traços que se recusam a transcrições, a representações idênticas.

A força está na letra – o excedente que transborda da vida, o excedente fora de qualquer sentido e que causa o desejar. Esse é um trabalho de travessia, trabalho pulsional, pulsante, acorde perfeito de estranheza.

... no início a escrita...

No princípio, é o traço unário. [...]

Simplex, singularidade do traço, é isso que introduzimos no real, queira o real ou não. Uma coisa é certa: é que isso entra, e que já se entrou nisso antes de nós. Já é por esse caminho que todos esses sujeitos que dialogam, há alguns séculos, afinal, têm que se arranjar como podem com uma certa condição: a de que entre eles e o real, existe o campo do significante... É neste caminho e com o mesmo intuito que se situa a indicação que já lhes dei acerca de algo que vai muito mais longe, ou seja, a angústia (LACAN, 2005, p.31).

A imagem da mulher morta retornava numa insistência viva na memória. Sua carne morta para seus afetos, ora rugia como cães selvagens, ora sussurrava como arrulhos entre amantes, ressoando em outros corpos de afetos vivos, longínquas histórias que se entrecruzavam.

Que horror! Que beleza estranhamente fascinante havia na carne morta para seus afetos. De resto, lágrimas escorriam banhando rostos vivos. Silenciosa, muito calada e só, uma outra mulher alinhava numa escrita/não escrita, em tons pastel, num tear situado num lugar íntimo e outro. Uma bordadura na borda – dura. Quanta dor, quanto amor! Talvez dons. Estilhaços. Litoral.

Marguerite Duras, em seu texto "Escrever", milagrosamente nos fala do chorar, da vida e do escrever:

[...] E não chorar nunca é não viver. Chorar, é preciso que isso também aconteça. Se chorar é inútil, mesmo assim creio que é preciso chorar. Pois o desespero é tangível. Perdura. A lembrança do desespero, isto perdura. Às vezes mata. Escrever.Não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não se pode. E se escreve.
[...] Há uma loucura de escrever que existe Em si mesma, mas não é por isso que se cai na loucura. Ao contrário (DURAS, 1994, p.46-47).

A prática da letra, mais que qualquer outra, exige a vida. A vida se fazendo escrita ou mesmo o contrário: a escrita como chamamento à vida. A vida escrita, bio – grafia, assim escandida, nos possibilita o ofício da clínica, tomando a vida registrada não como um curriculum vitae, rol de repetição de gestos desencarnados, mas como fatos trans-individuais: "biografemas, cuja distinção e mobilidade poderiam viajar fora de qualquer destino e vir tocar como átomos epicuristas, algum corpo futuro, prometido a mesma dispersão" (PERRONE-MOISÉS, 1983, p.9).

O conceito de biografema proposto por Roland Barthes está associado à sua produção reflexiva, ao que foi chamado "nova crítica" por Raymond Picard. A "nova leitura", francamente influenciada pela psicanálise, rompe com uma interpretação e crítica ingênuas do texto, retoma, em contrapartida, a figura do leitor como aquele cujo ato de leitura interfere no próprio texto, deixandose literar. Há que se produzir um novo texto.

Esta perspectiva do novo, do inusitado, é íntima da noção de biografema; texto clínico, pois, ao invés de fazer centrais os fatos de uma vida, ocupa-nos com um certo tratamento de tais fatos, agasalhando-os num certo estilo:

Biografemas, pequenas unidades biográficas, índices de um corpo perdido e agora recuperável como um simples "plural de encantos". A vida não como destino ou epopéia, mas como texto romanesco, "um canto descontínuo de amabilidades" (PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 9-10).

Escritura/leitura, operaçãode contorno simbólico para a sobra, estilhaços, margens litorâneas para o resto, a letra, campo do real. A tecitura de tal operaçãotalvez sofra alguma ausência de significantes. Contexto de imprevisão, do revogável, da procura,da incompletude, da castração, enfim. É no jogo finitude da vida/infinitude das palavras, quiçá seja a herança que se transmita aos filhos da carne, herança absolutamente desassossegada, inscrita em algum compromisso com a vida.

 

Passagens pela solidão

Só pela boca de uma mulher alguns temas podem ser tratados. Será que é do feminino escrever a impossibilidade e/ou a impossibilidade de escrever?

Lacan: "Ela não deve saber que escreve, nem aquilo que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe".(LACAN apud DURAS, 1994, p.19).

Duras: "Esta frase tornou-se, para mim, uma espécie de identidade de princípio, um "direito de dizer "totalmente ignorado pelas mulheres"(DURAS, 1994, p.19).

Às mulheres, talvez, seja dado per-turbar-se diante da ignorância de certos afetos que nos assaltam, e, mesmo assim, diante do nada, ir adiante.

Marguerite Duras corajosamente nos coloca tal questão:

Achar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total, e descobrir que só a escrita pode nos salvar. Achar-se sem assunto para o livro, sem a menor idéia do livro significa achar-se, descobrir-se, diante de um livro. Uma imensidão vazia. Um livro eventual. Diante de nada. Diante de algo semelhante a uma escrita viva e nua, algo terrível, terrível de ser subjugado. Acho que a pessoa que escreve não tem a idéia de um livro, tem as mãos vazias, a mente vazia, e dessa aventura do livro ela conhece apenas a escrita seca e nua, sem futuro, sem eco, distante, com suas regras de ouro, elementares: a ortografia, o sentido (DURAS, 1994, p.19).

O buraco. O fundo do buraco. Diante de nada. A solidão exigida para que se dignifique a escrita não é uma solidão de paz, senão tumultuada, à beira do abissal. É a bordadura sem palavras de apaziguamento, sem objeto especularizável, apenas o traço da mão que traça.

Não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte do que si mesmo para abordar a escrita. É uma coisa gozada, sim. Não é apenas a escrita, o escrito é o grito das feras noturnas, de todos, de você e eu, os gritos dos cães (DURAS, 1994, p.23).

Há o grito das feras noturnas, há o interditado, desconexão, refugos, enfim. Há a experiência do desamparo sem par. Os significantes escapam, escorregam por entre os dedos e já não se conta com o cogito reflexivo. Vive-se o estranho em seu clímax: pontos de intradutibilidade. E a escrita só poderá vir marcada por sítios de perda. O sujeito está a perder-se. Seus enigmas vêm sob a avalancha da angústia. Está só. A bordadura é a tentativa.

A solidão da escrita é uma solidão sem a qual o texto não se produz, ou então a gente se acaba, exangue, de tanto procurar o que escrever. Sem sangue o autor não reconhece mais o seu texto. [...]
[...] Escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e que a encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca (DURAS, 1994, p.14 - 15).

Escrever, proeza de traçar o fora de sentido, aquele que Carece de qualquer ligadura.

Inventar, pois o sujeito está de mãos vazias de qualquer projeto, e as feras noturnas gritam. Estado de desespero sem dor.

Inventa-se ou morre-se.

A solidão, ainda não sei em que ela se trans-forma depois. Ainda não posso falar disso. O que acho é que essa solidão se torna banal, com o tempo ela se torna vulgar, e que isso é uma felicidade (DURAS, 1994, p.32).

 

Referências

DURAS, M.Escrever. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.         [ Links ]

HELDER, H. Os passos em volta. Rio de Janeiro: Azougue, 2005.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.         [ Links ]

PERRONE-MOISÉS, L. Roland Barthes. São Paulo: Brasiliense, 1983.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua do Ouro, 136/302
30220-000 - Belo Horizonte/MG

Recebido: 05/10/2010
Aprovado: 16/11/2010

 

 

1 Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

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