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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte dez. 2010

 

 

Psicanálise e Literatura: por que ler James Joyce

 

Psychoanalysis and Literature: why to read James Joyce

 

 

Marta Regina de Leão D’Agord1

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Quais são as contribuições que a teoria psicanalítica pode encontrar na Literatura? Os escritores seriam psicanalistas avant la lettre? Com o objetivo de contribuir para essas questões, a autora apresenta um percurso de leitura de três obras de James Joyce, a saber: Dublinenses (1914), Um retrato do artista quando jovem (1904-1914) e Ulisses (1921). Os temas e o estilo narrativo do autor são enfocados em um diálogo com conceitos da teoria psicanalítica.

Palavras-chave: James Joyce, Psicanálise, Projeção, Gozo.


ABSTRACT

What are the contributions to the psychoanalytic theory that can be found in the literature? The writers would be psychoanalysts avant la lettre? Aiming to contribute to these issues, the author presents a pathway of the reading of three works of James Joyce, namely: Dubliners (1914), A Portrait of the Artist as a Young Man (1914) and Ulisses (1921). The themes and narrative style of that author are focused in a dialogue with concepts of the psychoanalytic theory.

Keywords: James Joyce, Psychoanalysis, Projection, Enjoyment.


 

 

Introdução

No texto a seguir, apresento uma trajetória de leitura da obra de James Joyce (1882-1941), que inicia pela coletânea de contos Dublinenses (1914). Esses contos são fundamentais por introduzirem os leitores na atmosfera cultural do autor. Os contos apresentam personagens de Dublin, cidade de nascimento do autor. Nessas vinte narrativas, crianças e adultos vivem o drama universal da busca de reconhecimento e seus temores correspondentes, a rejeição e a exclusão.

Uma dessas histórias, "Argila", narra um dia na vida da antiga babá Maria. Ela agora trabalha como lavadeira e passadeira, quando é convidada para um chá na casa da família onde trabalhara há muito anos. A família se dispersou, é um dos irmãos, casado e com filhos, que a convida. O con-to descreve toda a preparação para esse encontro. Ela precisa pedir licença para sair mais cedo do serviço; no caminho para a parada de ônibus, ela compra doces e tortas para cada um da família que a convidou. Carregada de pacotes, sobe no ônibus ao cair da tarde. Durante o trajeto, um homem lhe cede lugar. A gentileza masculina e um leve roçar de um corpo ao seu a deixam enlevada. Ao chegar à casa da família e iniciar a distribuição dos presentes, falta um pacote, o melhor presente que levava. Ela se lembra, então, da gentileza no ônibus. É ao leitor que resta concluir. O roçar de um desconhecido a fizera devanear esperançosa, mas era de outra natureza esse leve toque. Ao final do jantar, a anfitriã ao piano, Maria canta uma velha canção da infância do anfitrião. Emocionados, ninguém faz notar a Maria que ela repetiu a segunda estrofe. Dois equívocos, dois atos, a segunda estrofe repetida, o presente furtado.

Outro conto, "Os mortos", nos apresenta a narrativa de um baile em que questões políticas e religiosas posicionam os personagens em cena. Quando, ao final da noite, um dos convidados entoa com voz rouca uma ária em irlandês arcaico, que diz: "Ó, a chuva cai em meus densos cabelos/O rocio orvalha a minha pele/Meu filho jaz enregelado..." (JOYCE, 2008, p. 205). Essa canção é epifânica para Gretta, ao lhe fazer recordar o primeiro amor de sua vida. Imediatamente, esse estado enlevado de Gretta produz em seu marido, Gabriel, um renascimento de seu amor por Gretta. Assim, por motivos diferentes, eles vivem uma epifania, ou melhor, cada um vive a sua epifania: ela por ouvir a canção, ele por olhar para seu rosto ruborizado, seus olhos brilhantes e seu estado silencioso: efeito da canção.

Enfim, nos contos de Dublinenses, os personagens estão aprisionados por convenções sociais e religiosas. Mas, apesar dessa atmosfera social de aprisionamento, algo do desejo dos sujeitos sutilmente se deixa entrever. Joyce sabia que o desejo é veladamente manifesto na fala dirigida ao outro.

 

O romance de formação

A obra Um retrato do artista quando jovem, datada 1904-1914, indica dez anos de trabalho sobre o texto. Nessa obra, Joyce faz uma narrativa na terceira pessoa, mas o personagem, Stephen Dedalus, é inspirado nas suas experiências da infância à juventude. A narrativa apresenta-se ora como a narração do que acontece com o personagem, ora como um diário. Em outros momentos, ainda, aparecem diálogos do personagem principal com seus colegas e professores.

Mas, na maior parte do tempo, a narrativa toma a forma de um fluxo de pensamentos, associação de ideias, palavras e imagens, atingindo uma forma onírica que é interrompida por diálogos. O leitor acompanha dois planos narrativos que se sobrepõem: de um lado, o fluxo de pensamentos do personagem principal, de outro lado, os diálogos.

Para o leitor, os diálogos são momentos de objetividade que o situam nos acontecimentos da vida do personagem. Se o leitor contasse apenas com a narrativa onírica, não conseguiria acompanhar o contexto em que essa narrativa se situa.

Poderíamos fazer um exercício de transposição desses dois planos de narrativa para a nossa experiência cotidiana. Imaginemos o que seria dos nossos pensamentos se não os expressássemos em palavras e não contássemos com a alteridade (da tela, do papel, do outro).

Teria sido através da escrita desse romance que Joyce teria conseguido transpor associações de ideias em literatura? Pois a alteridade exige coordenar em uma sintaxe as ideias que fluem. E as ideias, os pensamentos, não cessam de fluir. O romance mostra esse contraste. Seja o diálogo que interrompe o fluxo de pensamento, seja o fluxo de pensamento que tende a se afastar do diálogo com a alteridade.

Depois dessa parte analítica, uma visão geral da obra, formada por cinco capítulos organizados cronologicamente da infância à juventude. No primeiro capítulo, até a forma da linguagem é a de uma criança pequena. No segundo capítulo, encontramos o personagem em férias e seus pais decidem que ele estudará com os jesuítas no nível secundário. Ao final desse capítulo, ele está com 16 anos, é aluno brilhante e dedicado às atividades religiosas. No terceiro capítulo, é narrado seu drama de consciência entre o desejo e o pecado, sente-se culpado por desejar e condenado ao inferno. Penitencia-se. Mas ainda se sente culpado.

O quarto capítulo narra o início de sua crise de fé, justamente após ser convidado a seguir a vida religiosa. Ele se liberta da fé quando é escolhido. É no momento em que o reitor lhe confere um reconhecimento como uma pessoa especial que pode vir a compartilhar a vida religiosa jesuítica, que ele se sente distante em relação a esse projeto de vida. É nesse momento que Stephen Dedalus vive uma epifania, a sua vocação de artífice das palavras lhe é revelada: "agora, como nunca antes, seu nome lhe parecia uma profecia" (JOYCE, 2006, p. 180).

O quinto capítulo mostra Stephen dialogando com seus colegas universitários, distanciado dos seus familiares devido a sua crise de fé. Já tendo escolhido a arte como forma de libertar o espírito, ele decide abandonar a ilha da Irlanda e partir para o continente europeu.

Nesse quinto capítulo, a passagem central é aquela do diálogo com seu colega Cranly. Stephen lhe conta que na noite anterior discutira em casa porque a mãe não aceitava que ele não participasse do ritual da Páscoa. Cranly tenta convencê-lo a comungar mesmo sem ter fé, e assim se re-conciliar com a mãe. E ainda argumenta que, se em função da sua crise de fé, a hóstia se tornara apenas um pão, não haveria então problemas. Mas Stephen mantém-se em dúvida, como poderia não ser condenado aquele que comunga sem fé? Durante o diálogo, a defesa, por Cranly, da reconciliação com a mãe, faz Stephen devanear em torno da imagem da mãe de Cranly, seria jovem, seria madura?

E quanto ao nome do personagem? Stephanous significa guirlanda em grego e as guirlandas são imagens que se formaram em um devaneio do personagem durante uma caminhada pela praia. Dedalus, na mitologia grega, é o nome do artífice (artista) que constrói asas para fugir da ilha de Creta e se libertar. Essas escolhas são significativas, pois o personagem Stephen "voa" para a liberdade no continente europeu, abandonando por um par de anos a Irlanda.

A aproximação ao mundo grego representa a busca pela libertação do espírito da dominação dos corações e mentes dos irlandeses pelo poder católico e britânico. A minha leitura de Um retrato do artista quando jovem me faz refletir sobre a aproximação da igreja com o poder secular, e como o catolicismo mantinha e ainda mantém a capacidade de aprisionar corações e mentes. Uma idade média que se prolongava no despertar para o século XX na Irlanda de Joyce, e que, no Brasil, se prolongou durante o século XX. A heresia é tema que percorre Um retrato do artista quando jovem e que é retomada em Ulisses através de um projeto maior, a helenização, contra a dominação inglesa da Irlanda, o retorno aos clássicos gregos. Por isso a correspondência de cada capítulo de Ulisses com os temas da Odisseia de Homero.

 

O estilo narrativo em Ulisses

Sobre o estilo narrativo de Joyce, o que se encontrava incipiente ou hesitante em Um retrato do artista quando jovem, será consolidado em Ulisses. O fluxo de pensamentos, antes restrito ao personagem principal, será agora ampliado para diversos personagens: começando pelo jovem Stephen Dedalus -que retorna do exílio no continente devido à doença da mãe; Leopold Bloom, o personagem central; Molly Bloom e outros tantos personagens que assumem a voz narrativa ao longo dos dezoito capítulos da obra Ulisses.

O mais expressivo nessa obra de Joyce é que não encontramos apenas a oposição entre fluxo de pensamentos e diálogos, mas também a oposição entre estilos ou modo de pensar. E, para cada narrador, um estilo. Assim como em Um retrato do artista quando jovem havia um modo infantil de falar que era narrado de forma a se adequar à idade do narrador quando criança, agora será o modo de vida de cada personagem-narrador que dará forma ao estilo narrativo.

Assim, o ponto de vista será ampliado em diversas vozes que vão narrar, cada uma por sua vez, suas preocupações, seu cotidiano, tendo como pano de fundo a cidade de Dublin, tal como é percorrida por Leopold Bloom naquele 16 de junho de 1904. O percurso de Bloom é o fio condutor que reúne cada um dos diversos narradores, e o principal deles é o próprio Bloom.

A maior riqueza dessa obra é o contraste entre diversos planos narrativos: temos a forma narrativa da criança, dos trabalhadores, dos estudantes, da moça solteira, da senhora casada, cada uma dessas narrativas e diálogos porta um estilo de linguagem. A da moça solteira no capítulo treze contrasta, por sua delicadeza, com a rudeza do diálogo dos trabalhadores em uma taverna no capítulo doze.

E, mais do que isso, cada uma dessas narrativas também contrasta as diferentes impressões sobre o personagem Bloom, cada um deles narra como percebe Bloom; na taverna, Bloom é o estrangeiro e excluído, tratado com violência. Na praia, em um encontro de olhares, mas sem diálogos, a moça solteira devaneia com aquele homem que lhe parece tão encantador e poderia ser um futuro marido.

Enfim, o terceiro e mais criativo aspecto desse contraste entre planos narrativos envolve o não-dito nos diálogos. Há um nãodito como corrente de pensamentos dos narradores, sempre fluindo. Apesar do diálogo entre dois narradores, mantém-se um fluxo narrativo íntimo de cada um dos interlocutores, ideias que eles não se permitem ou não podem enunciar aos seus interlocutores. As narrativas oferecem aos leitores uma visibilidade do que está sendo pensado pelo narrador, mas não dito interlocutor.

A teoria psicanalítica, através do conceito de projeção, analisa o campo imaginário nos não-ditos. Se o que não pode ser dito ao outro é o que penso que sei sobre ele, mas que ele não pode saber. Isso que penso, os não-ditos, não seriam projeções? As projeções são imagens que o sujeito forma de si mesmo, mas desconhece, ou melhor, conhece desconhecendo, pois as reconhece apenas nos outros.

Uma projeção é, portanto, uma formação imagética que transita da imagem que o sujeito tem de si para a imagem dos outros e retorna como a imagem que o sujeito projeta (imagina) que os outros poderiam imaginar dele mesmo. É uma narrativa na qual alguém imagina o que os outros imaginam a partir do que esse alguém imagina de si mesmo.

A formação de uma projeção ocorre em uma sequência de planos narrativos encaixados um sobre o outro. Essa formação projetiva acontece quando alguém pensa que sabe o que o outro pensa e assim imagina: "ele sabe que eu sei que ele sabe que...". Esse recobrimento de um plano sobre o outro poderá tomar a forma de encaixes parciais ou totais. É de encaixes parciais que vivemos, e Joyce cria seus personagens sem desconhecer essa experiência tão universal.

 

O pai como ficção

Uma referência filosófica do persona-gem Stephen Dedalus é Tomás de Aquino. Em Um retrato do artista quando jovem, esse filósofo é uma referência estética para o artista: "Belas são as coisas que agradam aos olhos" e "Bom é aquilo para o qual tende o desejo" (JOYCE, 2006, p. 197).

Em Ulisses, essa referência a Aquino se amplia, enfocando a distinção entre o que é verdadeiro e o que é fictício. Uma referência a Tomás de Aquino vem seguida, ironicamente, de uma alusão à psicanálise. Stephen comenta que o que o filósofo "escreve sobre o incesto é de um ponto de vista diferente do da nova escola vienense" (JOYCE, 1983, p. 240). A essa referência ao incesto segue-se um discurso de Stephen, na biblioteca, sobre o que é um pai e uma mãe. "O pai é um mal necessário", a essa primeira afirmação segue-se uma consideração sobre o pai como mistério e incertitude, "porque a geração consciente é desconhecida ao homem" (JOYCE, 1983, p. 242). Em outras palavras, Stephen se refere à clássica oposição entre Pater incertus e mater certissima.

Enquanto o "Amor matris, genitivo subjetivo e objetivo, pode ser a só coisa verdadeira na vida" (JOYCE, 1983, p. 242). É de uma referência à verdade como oriunda dos sentidos de que trata Stephen, em uma articulação com a filosofia de Tomás de Aquino, citada pelo personagem Stephen em Um retrato do artista quando jovem. Em resumo, se a mãe é conhecida pelos sentidos, ela é verdadeira; enquanto "a paternidade pode ser uma ficção legal" (JOYCE, 1983, p. 243).

Assim, a mãe é verdadeira, porque a relação de maternidade pode ser testemunhada pelos sentidos; já o pai é ficção, porque a relação de paternidade depende não da certeza sensível, mas das palavras. Mas Joyce não recusa o poder da ficção, das palavras. Pelo contrário, seu projeto é justamente o de ser um artífice das palavras.

O ser humano não tem como não viver na ficção, no mundo das palavras. Mas essa ficção revela que algo foi perdido. Joyce tem consciência dessa perda quando, lucida-mente, afirma sobre Adão: "Antes da queda, Adão trepava, mas não gozava" (JOYCE, 1983, p. 60).

Essa observação do personagem Stephen Dedalus mostra que antes da queda, Adão não desejava porque nada havia sido perdido. É a expulsão do paraíso que lança Adão no mundo do gozo. E, seguindo por essa metáfora adâmica, de agora em diante, homem e mulher vão gozar da diferença sexual. Eles podem gozar dessa diferença porque vivem na ficção. Eles gozam da diferença, mas essa diferença não se expressa anatomicamente, mas pelos significantes que os diferenciam: homem e mulher.

Enfim, a obra de Joyce desafia os psicanalistas a reinventarem conceitos. Em especial o conceito de gozo. É importante considerar que o gozo se relaciona ao riso, por exemplo, o riso que os chistes provocam. E esse riso nada mais é do que um gozo com as palavras. É desse gozo com as palavras que a obra de Joyce é um testemunho.

 

Referências

JOYCE, J. Ulisses. Tradução de Antonio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1983.         [ Links ]

_________. Um retrato do artista quando jovem. Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.         [ Links ]

_________. Dublinenses. Tradução de Hamilton Trevisan. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Riveira, 600
90670-160 - Porto Alegre/RS
E-mail: mdagord@terra.com.br

Recebido: 29/09/2010
Aprovado: 23/11/2010

 

 

1 Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da UFRGS.

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