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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte dez. 2010

 

 

Serial killer: o novo héroi da pós-modernidade

 

Serial Killer: the new hero of the postmodernity

 

 

Miriam Elza Gorender1

Círculo Psicanalítico da Bahia
Universidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho busca alcançar melhor compreensão do fenômeno do serial killer na mídia, usando como exemplos Hannibal Lecter e Dexter (filmes e livros), e fazendo uma correlação com os conceitos de sociedade de consumo, canibalismo, reificação e o gozo lacaniano.

Palavras-chave: Serial killer, Canibalismo, Capitalismo, Reificação.


ABSTRACT

This paper endeavors to achieve a better understanding of the serial killer phenomenon in the media, using as examples Hannibal Lecter and Dexter (from books and movies) and relating the concepts of serial killer to those of consumer society, cannibalism, reification and the lacanian lust (Jouissance).

Keywords: Serial killer, Cannibalism, Capitalism, Reification.


 

 

Um dia, os homens olharão para a história e dirão que eu gerei o século 20.
Jack, o Estripador

 

Este trabalho procura investigar o surgimento da figura do serial killer como herói na mídia contemporânea. O termo serial killer não se refere a qualquer tipo de assassino. Não é igual também ao assassino em massa (ou spree killer), que mata indiscriminadamente grande número de pessoas como visto por exemplo no incidente da escola de Columbine. A característica que marca o serial killer como tal é precisamente a que lhe dá o nome: a serialidade das mortes. Essas se inserem em uma sequência na qual qualquer das partes pode ser substituída por qualquer outra. Dentro das propriedades comuns de cada série, qualquer de seus elementos é intercambiável.

E quero comentar não os serial killers reais, mas sua incidência na mídia, através de dois exemplos paradigmáticos: Hannibal Lecter e Dexter, tendo o primeiro dedicada a si uma série de livros de autoria de Thomas Harris (1983; 1989) e pelo menos quatro filmes; e o segundo também uma série de livros, por Jeff Lindsay (2004; 2005; 2007; 2009; 2010), e um seriado de televisão, já em sua quarta temporada.

O serial killing é, como prática, antigo, e a mudança ocorreu na ênfase dada pela mídia ou é um tipo novo de crime típico da cultura atual? Seja como for, o fascínio que o fenômeno exerce sobre o imaginário atual é inegável, a começar pelo ponto de origem da figura moderna do serial killer, ou seja, Jack, o Estripador. Apesar de real, a história que o cerca tomou já características verdadeiramente mitológicas.

Os personagens do mito parecem existir em uma realidade que lhes é própria, que tira sua força da realidade psíquica e do desejo que os alimenta e os faz permanecer. Um fenômeno que vem se repetindo na modernidade é a criação de histórias e personagens, não por comunidades, mas por indivíduos ou por pequenas equipes de pessoas, personagens criados com intenção artística ou de entretenimento, e que acabam por atingir dimensões míticas. Adquirem uma realidade tão palpável que recebem correspondência e podem ser noticiados na imprensa como pessoas re-ais. Exemplos antigos seriam Dom Quixote ou Robinson Crusoé, e mais recentemente Sherlock Holmes, Super-Homem ou Tarzan. (WATT, 1997).

E por que indicar um assassino como herói de um mito moderno?

Freud (2006 [1921]) fala do surgimento da figura de herói como consequência do assassinato do pai. Segundo um dos mitos fundadores da teoria psicanalítica, nos primórdios da humanidade os agrupamentos humanos eram dominados por um pai que detinha o poder de vida e de morte, excluindo seus filhos das possibilidades de gozo da tribo, como mulheres e alimento. Assim, os filhos se uniram para matá-lo e o comeram. Mas o pai, uma vez morto, e através da culpa, tomou uma envergadura na lembrança dos filhos que o tornou mais poderoso do que poderia ter sido quando vivo.

Foi então que talvez algum indivíduo, na urgência de seu anseio, tenha sido levado a libertar-se do grupo e a assumir o papel do pai. Quem conseguiu isso foi o primeiro poeta épico e o progresso foi obtido em sua imaginação. Esse poeta disfarçou a verdade com mentiras consoantes com seu anseio: inventou o mito heróico. O herói era um homem que, sozinho, havia matado o pai - o pai que ainda aparecia no mito como um monstro totêmico (FREUD, 2006 [1921], p. 146-147).

O herói é, portanto, desde sua origem, um assassino. Mas é importante notar que um assassino pode ser colocado no papel do herói ou da ameaça enfrentada. Como e por que Lecter é um herói? E que ele seja um herói mítico não pode ser negado. Não há como não vibrar quando, no final do filme, o personagem, já liberto, parte ao encalço de um jantar com um velho amigo. Os dois filmes subsequentes, Dragão Vermelho e Hannibal, são construídos em volta dele. O último filme tem inclusive seu nome. Na internet há cerca de 750.000 páginas relacionadas ao personagem criado por Thomas Harris como coadjuvante em Dragão Vermelho (1981). Como costuma acontecer aos melhores produtos de nosso inconsciente, nosso bom doutor logo ganhou vida própria.

A relação entre Lecter e Starling tem semelhanças com as “consultas” entre o profiler (agente especializado em compreender e ajudar a capturar criminosos) do FBI Robert Keppel e o serial killer Ted Bundy. Aí Bundy se ofereceu para ajudar o FBI a capturar o serial killer Green River (WIKIPEDIA, 2010a).

O retrato que Harris pinta de Dr. Lecter é vívido e aterrorizante. Seus olhos são castanhos, e sua voz tem um som com algo de metálico. Seus dentes são pequenos e bran-cos. Um homem maduro bem entrado na meia-idade, Lecter é pequeno e compacto e se move com graça e silêncio incomuns. Ele tem seis dedos em uma mão, o dedo do meio “perfeitamente replicado... a forma mais rara de polidactilia”. Seu sentido de olfato é altamente desenvolvido (HARRIS, 1989, p. 20-21).

Por que dotar Lecter de características tão extraordinárias? Sabemos que o herói mitológico não é em geral um homem comum, ele tem seu destino marcado por características que o põem em relevo, as quais são de origem divina, demoníaca ou animal. No caso de Lecter, saltam aos olhos características animais (como o olfato, a graça e o silêncio do predador, sua rapidez) aliadas a uma extrema sofisticação cultural e inteligência sobre-humanas. É de notar também a sua afirmação, no início do filme, quando Clarice lhe pergunta se não quer encarar o que quer que tenha lhe acontecido para transformá-lo em um monstro: “Nada me aconteceu, agente Starling. EU aconteci”.

O cinema moderno tem utilizado de forma livre as histórias dos mitos gregos. Uma lenda que se assenta firmemente na tradição cinematográfica americana é a de Theseus percorrendo o labirinto de Creta para ma-tar o monstruoso Minotauro, homem com cabeça de touro, que anualmente devorava jovens virgens de Atenas. Há uma frequente combinação desse mito, também, com o de Orfeu; neste, um herói deve arriscar sua vida para resgatar uma donzela em perigo, viajando ao escuro submundo (o inferno ou Hades), onde um monstro mortal o aguarda. Nos filmes do final do século 20, o submundo do desconhecido tem sido substituído pelo Hades da paisagem urbana, e o serial killer tornou-se o novo Minotauro: uma besta odiosa que caça os jovens, tem poderes super-humanos e apenas pode ser localizada e morta por um herói excepcional. O minotauro é um monstro assassino que representa um mundo onde reinam o caos e a escuridão.

Cada filme também apresenta um labirinto, uma zona de perigo física em que o herói deve entrar sozinho sem qualquer garantia de retorno.

Enquanto Clarice é a que deve entrar só no labirinto tenebroso da casa de Buffalo Bill, Lecter torna-se ao mesmo tempo a imagem do Minotauro e de seu destruidor. É dele a mão que guia Clarice, sem a qual ela nada faria (THE UNIVERSITY OF MELBOURNE, 2006).

Mas é muito importante notar que, no filme, figuram dois serial killers, completamente distintos entre si, Lecter e Jame Gumb.

Thomas Harris claramente usou modelos da vida real para o outro serial killer do Silêncio dos Inocentes. Jame Gumb (ou Buffalo Bill) lembra o serial killer Ed Gein, que também serviu de modelo para Norman Bates em Psicose, de Hitchcock. Gein, que vivia no interior de Wiscosin na década de 50, foi um homem quieto e introvertido, criado por uma mãe dominadora. Ele havia considerado uma operação de mudança de sexo para aliviar sua miséria, mas, considerando as limitações de sua vida em uma cidade pequena, acabou por decidir não fazêla. O que ele fez, em lugar disso, foi se vestir com a pele de mulheres. Gein, como Gumb, matava mulheres, tirava sua pele, curtia-a e vestia os resultados. Gein também confeccionou abajures e braceletes das sobras e até fez uma vasilha de um crânio de mulher. Harris também usou um pouco de Ted Bundy na criação de Jame Gumb. Bundy também usava um gesso falso no braço para atrair e atacar suas vítimas (HOME PAGE FOR TIMOTHY MASON, 2010).

No entanto, não há e não pode haver qualquer modelo da vida real para Lecter. E minhas conclusões têm a ver justamente com a diferença entre os dois. Lecter é não apenas refinado, sofisticado e inteligente. Ele se coloca contra toda espécie de rudeza e mediocridade. Veremos breve em que isso importa.

Há outra dimensão na imagem do serial killer que aponta diretamente para sua modernidade, a do canibalismo, embora não aquele que se mostra de forma evidente em Hannibal, o Canibal, e que também começou a ser conhecido com Jack, o Estripador. Tratase aqui do conceito de capitalismo enquanto canibalismo. O canibal, como ferramenta retórica, foi primeiro utilizado a partir da colonização do Novo Mundo, tendo origem nas histórias sobre os nativos do Caribe contadas pelos vizinhos e inimigos. Carib transformou-se em Canib e daí a canibal. A antropofagia, entendida como prática socialmente sancionada, é em si um mito segundo William Arens (apud LEFEBVRE, 2005), um construto imaginário de alteridade e que à época se traduzia por não branco e colonizável. Este conceito irá sofrer sua primeira torção às mãos de Montaigne, que o utilizou para elaborar uma crítica não dos povos colonizados, mas da selvageria de seus próprios compatriotas.

Irá infiltrar-se na literatura a partir de uma das personagens mais citadas como ilustrativas dos mecanismos do capitalismo, Robinson Crusoé. Apesar de Marx já chamar a atenção para ambos os polos, por várias décadas o interesse maior dentro do estudo do capitalismo voltou-se para a produção e seus meios. Mas o “pecado original” do capitalismo é tanto de produção como de consumo. E se o canibalismo representa o consumo sem reserva, segundo Bartolovich, “então o capital deve encontrar no canibalismo não apenas seu próprio limite – ao qual deve renunciar – mas também a figura de seu próprio desejo.” (BARTOLOVICH apud LEFEBVRE, 2005. p. 5).

O serial killing, como vimos, requer repetição, serialidade. De fato, o agente do FBI Robert Ressler (WIKIPEDIA, 2010 b), que criou o termo, diz que nisso foi inspirado em parte “pelas aventuras seriais que costumávamos ver aos sábados no cinema”. Cabe aqui um comentário sobre séries: interessa diferenciá-las dos conceitos de conjunto e cadeia significante. Em um conjunto, há vários elementos idênticos, mas o que os reúne é uma espacialidade. Um conjunto o é dentro de um determinado momento, o que não implica a passagem do tempo. Todos os elementos que exercem uma determinada função dentro de uma estrutura, por exemplo. Já em uma cadeia, por outro lado, há o desenrolar do tempo em uma sequência de elementos, mas estes são necessariamente diferentes para que possa haver produção de sentido. Uma série é uma sequência temporal de elementos idênticos naquilo que os caracteriza, constituindo-se portanto em pura manifestação do gozo no tempo. Ao falar em gozo e repetição, com frequência tem-se a impressão de algo estático e atemporal, mas em sua realização há uma dinâmica temporal muito bem figurada na série. O principal objetivo desta é manter uma cena fantasmática o mais imutável possível. Como isto se manifesta no serial killer?

As vítimas são escolhidas por possuir em comum certos traços que satisfazem determinadas condições internas para o assassino; por exemplo, mulheres morenas de uma certa idade, baixas e de cabelos compridos, sendo nisso intercambiáveis. Daí ter surgido inclusive a ciência da vitimologia. Sua individualidade, sua condição de sujeito, é por este ato completamente apagada. Ao escolher suas vítimas e consumi-las em série, o serial killer age da mesma forma que qualquer um pode escolher sempre uma mesma marca de um produto nas prateleiras do supermercado, identificando-o pela embalagem, seguro de que seu conteúdo será sempre idêntico.

Os serial killers transformam, então, suas vítimas em objetos seriais, de consumo em série. Marx descreve o fetichismo de mercadoria como o que acontece quando “uma relação social definida entre homens... assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX apud LEFEBVRE, 2005, p. 8). No contexto do capitalismo, canibalismo e serial killing se tornam eles mesmos imagens de reificação.

Se a questão se torna consumir ou ser consumido, uma forma de manter uma individualidade ilusória seria manter-se como consumidor. Nesse sentido o serial killer é um alvo à identificação.Também nesse sentido tanto Hannibal Lecter quanto Dexter Morgan podem ser vistos como cavalheiros e mesmo honoráveis, seguindo regras de conduta e tendo gostos discriminados. Há também em ambos os casos a insinuação de que as atividades de ambos seriam desculpáveis e quem sabe até mesmo louváveis por implicarem, em sua execução, um bem público. Lecter, em seu terceiro filme, é descrito como escolhendo como vítimas apenas aqueles que considera como ofensivos à sociedade. Dexter, que trabalha para a polícia de Miami como especialista em padrões de sangue, mata apenas assassinos.

E aqui vai uma última observação. Assim como Freud comenta, em seu Personagens Psicopáticos no palco (2006 [1942] ), que o herói se presta à identificação por parte do público, aquilo com que o público se identifica no caso dos serial killers não é apenas o consumidor, refinado ou não, mas o assassino em si. Lacan (1995), ao falar de Sade, lembra o sistema filosófico, trazido por este, do papa Pio VI, que defende o crime como colaborador para a harmonia da natureza, para logo reconhecer o argumento como tolo, utilizado para disfarçar a maldade no cerne do humano. Mais importantes são os derivados que daí surgem. Um dos motivos mais citados, além de sexual, para os serial killers, é a sensação de poder, de sentir-se um deus. E justamente Lecter traz este raciocínio: se Deus é o maior dos assassinos, por que não pode o homem também matar? E mais, se o homem foi criado por Deus à sua imagem e semelhança, criado em seu âmago com uma maldade fundamental que parte de seu gozo sobre o outro, o que o impediria de matar?

Em todos os tempos, as narrativas de morte e assassinato sempre fascinaram e atraíram. Citando Hitchcock (MODERN MYTHOLOGY, 2010), quanto melhor o vilão, melhor o filme. O que diz de nossa cultura que este fascínio tenha tomado precisamente esta forma?

 

Referências

FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego [1921]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v.XVIII. p. 79-156.         [ Links ]

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HARRIS, T. Dragão Vermelho. Rio de Janeiro: Record,1983.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Rua Marques de Caravelas, 217/901 – Barra
40140-241 - Salvador/BA
E-mail: miriamgorender@gmail.com

Recebido: 29/09/2010
Aprovado: 25/11/2010

 

 

1 Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, professora adjunta do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da UFBA, doutora em Psicanálise pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

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