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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte dez. 2010

 

 

A psicanálise tem os meios paratratar os pobres?1

 

Does psychoanalysis have the means to treat the poor?

 

 

Valéria Wanda da Silva Fonseca2

Associação Núcleo Sephoran de pesquisa sobre o Moderno e o Contemporâneo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discute as possibilidades de estudo no campo freudiano sobre a pobreza. Esta, como problemática social, perpetua a divisão do mundo entre os que têm e os que não têm direito à educação, aos serviços preventivos e curativos na saúde e, também, aos que não usufruem uma vida com qualidade. Freud não tinha dúvidas das indicações da psicanálise aplicada à terapêutica com a população pobre da sociedade. Porém, nos desafiou pensar duas especificidades nesse tratamento: a alienação no discurso da exclusão social e no próprio sofrimento psíquico. Portanto, a proposta de uma psicanálise aplicada em serviços ambulatoriais exige uma reflexão sobre os efeitos subjetivos das condições de pobreza que atinge, no mínimo, 40% da nossa população. Um analista pode oferecer a esses sujeitos a experiência do inconsciente para que encontrem a lógica de suas decisões e de sua posição na vida, assegurando-lhes a possibilidade de sair da repetição do pior.

Palavras-chave: Psicanálise aplicada, Psicanálise e pobreza, Psicanálise no Brasil.


ABSTRACT

This article discusses the possibilities of the study on poverty in the Freudian field. As a social issue, it perpetuates the world’s division between those who have the right to education, preventive and curative services in health and those who do not enjoy a quality life. Freud had no doubt about the indications of psychoanalysis applied to therapy for the poor population of society. He has, however, challenged us to think about two specificities of that treatment: the alienation in the discourse of social exclusion and in the psychic suffering itself. Therefore, proposing a psychoanalysis applied to outpatient services requires a reflection about the subjective effects of poverty, which affects, at least, 40% of our population. An analyst can offer these individuals the experience of unconscious to let them find the logic of their decisions and life position, ensuring them the opportunity to leave the repetition of the worst.

Keywords: Applied psychoanalysis, Psychoanalysis and poverty, Psychoanalysis in Brazil.


 

 

Introdução

A psicanálise aplicada à terapêutica deve responder em sua práxis aos princípios da psicanálise pura. Por que a psicanálise se interessa pelos efeitos subjetivos da pobreza? No Brasil, para além dos consultórios particulares, a oferta dos dispositivos clínicos inspirados na psicanálise se dá em alguns poucos serviços públicos e/ou privados de caráter ambulatorial, o que nos alerta para a dificuldade de se praticar e teorizar sobre um dos efeitos mais importante do laço social no capitalismo - a pobreza.

A partir de uma reflexão crítica sobre os fenômenos sociais, tal como o preconceito de classe e os estudos desenvolvidos na psicanálise, pretende-se ampliar a interpretação baseada no narcisismo das pequenas diferenças para avançar na investigação sobre as grandes diferenças que dividem a população: em torno de 40% de brasileiros que vivem ameaçados pela escassez dos elementos básicos à manutenção da vida em condições dignas. Em sua maioria, entregam a vida e a morte aos desígnios de Deus, e estão sempre envoltos em relações de dependência com outros homens e/ou com o Estado.

Para as ciências sociais, um dos fatores fundamentais que justifica a precariedade social é a baixa escolaridade. DaMatta (1997) observa que há uma complexidade na formação social brasileira, e inclui nas raízes da moralidade o princípio da hierarquia. Este convive com os princípios da modernidade, da igualdade e do individualismo, de forma particular. "Reforçando-se o eixo da igualdade, nosso esqueleto hierárquico não desaparece automaticamente, mas se reforça e reage, inventando e descobrindo novas formas de manter-se" (DAMATTA,1997, p.201). Há entre os brasileiros "um temor social de estar fora do lugar, estar deslocado e, com esse deslocamento, se passar por algo diferente do que é realmente" (p. 171).

Pretendemos com a psicanálise participar dessa discussão, na medida em que ampliamos a escuta sobre os efeitos da resistência ao conhecimento científico e relacionamos essa questão com impasses na subjetividade do laço social. Cada vez mais o mercado exige graus variáveis de conhecimento científico, e o capitalismo, por sua vez, marginaliza de forma cruel aqueles que se negam a aderir a ele. Entre as consequências, temos a diversidade de sofrimento mental associado às urgências subjetivas que se alastram nos tempos atuais junto à população mais pobre. A descrença do brasileiro na ficção jurídica de homem "livre e autônomo" é reforçada pelo pensamento mítico de que o saber está pronto e acessível a alguns. A preocupação em observar os efeitos da baixa escolaridade diz respeito à importância da escolarização na aprendizagem dos preceitos democráticos. "O ideal de homem livre e igual, para encarnar-se nos homens concretos e passar a existir de fato, precisa moldar cada homem pela educação segundo esses princípios" (COELHO DOS SANTOS; DECOURT, 2008, p. 22).

A socialização (BERGER; LUCKMAN, 1985), que se inicia na família e avança com o processo de escolarização, segundo os preceitos democráticos, possibilita às pessoas adquirirem ferramentas para o exercício da cidadania. A Modernidade nos orientou para a razão reflexiva, pelo conhecimento científico e que, quanto mais aderimos a ele, mais tendemos a nos afastar das influências dos mitos, da tradição e da religião. Sabemos que a difusão do saber científico transforma nossas necessidades e cria novos objetivos para ter alternativas de pensar o mundo, as concepções de felicidade e o bem-estar. Freud em 1933 [1932], afirma a função organizadora do conhecimento racional: o pensar científico procura evitar as paixões individuais e a vertente afetiva, interroga o campo da percepção, adquire meios de expandir esse campo através de equipamentos mais precisos que os órgãos sensoriais, constrói métodos, controla variantes (FREUD, 1933 /1976).

O corte que separa o mundo antigo do mundo moderno se dá com a substituição do significante: Deus. No lugar de Deus como razão de todas as coisas, a formalização do mundo, do sentido e da existência passa a ser feita através da atividade do pensamento racional. É através dessa operação de substituição que se funda a ciência moderna (GUEDES, 2007).

A psicanálise segue as grandes revoluções que constituíram o Estado moderno onde "todo homem nasce livre e igual". Só a partir desse preceito é que um psicanalista, em sua prática, procurará meios de liberar um sujeito de toda relação hierárquica de submissão e dependência em relação a outro homem; ao mesmo tempo em que "a prática da psicanálise nos ensina que a igualdade entre os homens é um ideal, logo, é impossível. Toda liberdade e toda igualdade serão sempre limitadas pela desigualdade dos sexos, pela desigualdade entre as gerações, pela desigualdade entre os sintomas" (COELHO DOS SANTOS; DECOURT, 2008, p.32).

Guedes (2007) observa que, para Lacan, teria sido impensável a descoberta do inconsciente por Freud, bem como a prática da psicanálise, antes do advento da ciência moderna, no século XVII. Com a hierarquização do conhecimento científico sobre as demais modalidades de saber, passa-se a desprezar todo o saber originado da revelação, da intuição e da adivinhação, "eliminando" a ilusão e o conhecimento proveniente das exigências emocionais. Freud, na conferência "A questão de uma Weltanschauung" (1933 [1932]), mesmo contrapondo a ciência à religião, contesta a total objeção que a ciência faz em relação à ilusão. A psicanálise alarga a concepção científica, torna maior o seu campo de conhecimento, pois inclui o que parece fazer obstáculo ao desenvolvimento da própria ciência: as ilusões, as exigências emocionais, a necessidade de consolo, as fantasias, enfim, tudo o que ele reuniu sob o nome de realidade psíquica. Desprezar "as reivindicações do intelecto humano e as necessidades da mente do homem" torna a Weltanschauung científica muito pobre e sem esperança (FREUD, 1933 [1932]/1976, p. 207).

Lacan, perseguindo o ideal científico de Freud, afirma que o sujeito de que trata a psicanálise é o sujeito da ciência, "sujeito esse sem qualidades" (1965-1966 /1998, p.873). Guedes (2007) diz que Lacan nomeia de sujeito da ciência, ou da razão, as posições subjetivas ideais, assépticas, sem predicação, oriundas da radical separação entre "eu penso" eo "eu sou", e não o sujeito mortificado pelo significante. O mundo simbólico é o mundo da máquina. E este funciona como pura injunção formal, automática, sem nenhuma consideração pelo saber da tradição ou pela contingência do encontro da linguagem com um corpo. Este pensamento orientou o conceito de individualismo proposto por Dumont (1985) e a "ideologia moderna: a crença na consciência de si como ponto de origem da subjetividade, recalcando a dívida do significante com a tradição, ou seja, recalcando o supereu" (GUEDES, 2007, p.4).

Levantamos, em diversas publicações do Campo Freudiano, a advertência de que "não há psicanálise aplicada sem psicanálise pura, que interroga a transmissão e a formação" (MATET; MILLER, 2007, p.5). As preocupações dos psicanalistas estão nas particularidades que envolvem as ações na chamada "psicanálise aplicada" -os modos de intervenção e os efeitos produzidos diante do "insuportável que passa para o impossível de suportar que segundo Lacan, define a clínica" (MATET; MILLER, 2007, p.5). A validação da prática em psicanálise deve considerar a sua teoria, o seu método e ser demonstrada através dos relatos de casos clínicos que atestem a pertinência do tratamento e/ou da intervenção.

A Psicanálise tem meios para teorizar sobre a complexidade do fenômeno da pobreza? Essa experiência subjetiva é efeito de civilização? Consideramos que para Psicanálise todos estamos submetidos, através da capacidade mediadora da linguagem, aos processos de civilização que são os operadores da renúncia pulsional imediata e organizadores das relações entre sujeitos.

A experiência de atendimento clínico com população de baixa renda e escolaridade, desde 1981, estimula a investigação em psicanálise sobre alguns sujeitos pobres que vagueiam pelos hospitais, UBS e igrejas à procura de "cuidados" e desenvolvem uma íntima relação com o sofrimento mental e/ou corporal. Eles se dizem cientes da incapacidade de resolver os problemas e de tratar os seus sintomas. Medicam-se e sustentam no nível de serviço público uma rede de impotência generalizada em torno do suposto discurso médico. Nesse circuito de repetições, a abertura de um espaço para questionamento sobre por que tanto sofrimento tem efeito imediato em alguns.

Para alguns desses brasileiros, é inovador refletir sobre a própria existência e a adesão a um tratamento psicanalítico. A curiosidade se aguça mediante o saber das possibilidades de autonomia na própria vida, e que para tal seria necessário conhecer o mundo dos que acreditam em escolhas e a responsabilidade que elas implicam.

 

Pontuações iniciais sobre a pobreza

A definição inicial de quem são os pobres e o que se considera como pobreza foi apoiada por dados científicos disponibiliza-dos no site do IBGE e em estudos da Sociologia e Antropologia Brasileira.

Elegemos duas definições de pobreza: a primeira, de Sônia Rocha (2003) que adverte sobre a complexidade do conceito, resumida na seguinte frase: "ser pobre significa não dispor dos meios para operar adequadamente no grupo social em que se vive" (ROCHA, 2003, p.10). E a segunda, proposta pelo IBGE ao definir índices de pobreza, posto que em 2007, ainda 23,5% da população brasileira viviam com uma renda familiar de até meio salário mínimo; e apenas 1,7% da população viviam com o rendimento familiar de mais de cinco salários mínimos per capita. Em 2008, a parcela 10% mais rica da população brasileira concentrava 42,7% dos rendimentos do trabalho, contra 43,3% em 2007; enquanto os 10% mais pobres ficaram com 1,2% restante, contra 1,1% em 2007.

Os dados acima espelham a gravidade das desigualdades nos âmbitos social, econômico e político. Os pobres, em graus diferenciados, não conseguem garantir a satisfação das necessidades básicas e ter aces-so a bens de consumo referentes ao grupo a que pertence. Indaga-se o quanto é necessário para se ter uma vida digna no Brasil.

A consolidação do capitalismo acontece no final do século XIX e começo do XX, e tem suas raízes na economia colonial cafeeira. Esta levou o país à industrialização e à reordenação das relações de trabalho - passou-se do modelo escravocrata ao assalariado - como mágica. Os brasileiros, em sua maioria, ainda hoje condicionados às tradicionais relações hierárquicas e autoritárias, embaraçam-se com os contratos de trabalho que exigem um sujeito autônomo e ciente dos seus direitos e deveres e que assumem a responsabilidade de desenvolver suas funções de forma eficiente e atualizada no nível tecnológico. Os impasses nas relações entre patrões e empregados e o desconhecimento das inovações técnicas têm como consequência uma população assustada que se afasta e se arrisca na informalidade e na desqualificação. Esse movimento cria as categorias que vão dos assalariados, trabalhadores informais, desempregados até a completa marginalização - os vagabundos (CASTEL, 1998).

As estatísticas também nos apontam o grande número de brasileiros segregados por não conseguirem atender às exigências da civilização atual, só restando ao Estado criar mecanismos de proteção para equacionar os tais efeitos negativos do desenvolvimento econômico. A pobreza, como problemática social, perpetua a divisão do mundo entre os que têm e os que não têm direito à educação, aos serviços preventivos e curativos na saúde e, também, aos que se sentem ou não seguros.

Santos, em 2000, afirma que "a pobreza é estrutural e não mais local, nem mesmo nacional; torna-se globalizada, e presente em toda parte do mundo" (p.69). E acrescenta, em 2001, numa das últimas entrevistas antes de sua morte, que os pobres seriam o agente político dessa nova globalização, sobretudo nas cidades onde há pessoas de todos os níveis, e eles, ao viverem na experiência de escassez, testemunham a contradição entre o crescimento dos objetos ofertados no mundo e a impossibilidade de possuí-los.

A classe média, por sua vez, ao se acomodar com o conforto do consumo, substitui as preocupações cidadãs e omite-se das discussões políticas, mas vive ameaçada pela possibilidade de empobrecimento e de escassez de ter objetos. Santos acreditava que caberia aos intelectuais, majoritariamente provindos dessa classe, propagar a realidade contraditória no território e oferecer a reflexão da questão à sociedade, porque assim se poderia deflagrar o movimento social globalizado para tratamento da pobreza.

Com a psicanálise, entendemos que simplesmente a inclusão de sujeitos despreparados nos setores produtivos não garante a erradicação da pobreza. Esta, enquanto efeito de civilização, requer de todos e, em particular, dos pobres o desejo de sair dela.

Freud, em O mal-estar na civilização (1930/1976), afirma que a civilização constitui um processo a serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos isolados, famílias, nações, povos e raça numa unidade - a humanidade. A pulsão de morte, a agressividade e a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra um se opõem a esse programa da civilização. A reflexão freudiana afirma que o pacto civilizatório se sustenta na eficácia dos processos de recalcamento e de sublimação das pulsões, mas é também um desafio identificar o quanto se suporta a não satisfação pulsional. "Não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso" (FREUD, 1930 [1976], p.118).

Nos últimos tempos, testemunhamos os progressos extraordinários das ciências naturais e suas aplicações técnicas, particular-mente no que diz respeito ao controle jamais imaginado da natureza, do tempo e do espaço. Porém, tais conquistas não tornaram os homens mais felizes. Como Freud já ha-via anunciado: "de que vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e tão cheia de desgraças que só a morte é para nós recebida como libertação?" (FREUD, 1930/1976, p.108).

Nas sociedades democráticas, com seus contratos, os indivíduos são felizes? Castel (1998, p.596), apoiado em Dumont (1985) resgata o seguinte conceito de indivíduo - este se "apresenta como um ser moral, independente e autônomo e, assim (essencialmente), não-social", para afirmar que os contratos sociais partem do pressuposto de que as partes envolvidas são seres autônomos, cientes de seus direitos e deveres, livres de qualquer referência ao coletivo. E que, portanto, nesses contratos não há referências às proteções sociais, pois as garantias propostas neles devem ser legais e orientadas pelo judiciário.

Castel (1998) reconhece a dificuldade de muitos homens no cumprimento dos contratos propostos no pacto social individualista, pois a crença demasiada na eficácia desse ideal democrático exigiria desconsiderar as contribuições da psicanálise a respeito dos efeitos da dependência infantil e estrutural estabelecida entre a criança e seus genitores. "A criança como sintoma de seus pais, e o sintoma da criança é o modo pelo qual se enlaçam as pulsões e as exigências da civilização" (COELHO DOS SANTOS; DECOURT, 2008, p 24). Essa dependência permanece como um resto arcaico. "O sintoma é a prova da existência do inconsciente. Quando se chega à vida adulta, não se elimina completamente o resíduo da dependência infantil" (COELHO DOS SANTOS; DECOURT, 2008, p.24). Isso seria um protótipo das relações que se prolongariam na vida adulta e nos relacionamentos interpessoais.

No Estado Moderno, a regularização das relações sociais acontece através do critério de justiça e não mais na vontade arbitrária do pai e de seus sucessores. Ao mesmo tempo em que Freud formulava a centralidade do laço com o pai na constituição subjetiva, para Coelho dos Santos (2006), a ciência tendia a desconsiderar a relação de cada um à filiação. "Quando a vocação científica e universalizante da modernidade manifestam-se na Declaração dos Direitos do Homem, a ideia de que ‘todo homem nasce livre e igual’, destitui o valor para cada um da dívida simbólica, da particularidade da relação ao significante paterno" (COELHO DOS SANTOS, 2006, p.15).

A substituição do poder individual pelo poder de uma comunidade é fator decisivo da civilização, pois a lei deverá garantir que nenhum indivíduo terá privilégios sobre o outro, e que ela não será violada em prol de interesses de um. Ela carrega os valores éticos e deve abarcar o estatuto legal que orienta a todos - exceto os considerados incapazes de ingressar numa comunidade (FREUD, 1930/1976). A essência da lei está nas restrições das satisfações imediatistas que des-respeitam os direitos de outros membros de uma mesma comunidade. Por isso muitos indivíduos, ao desconsiderarem a lei, passam a agir em regime de exceção.

O chamado "jeitinho brasileiro" reflete esse mal-estar do indivíduo com as leis do Estado. Em princípio, essa desobediência às leis se sustenta na tese de que a escolarização de uma boa parte dos brasileiros é precária. Com a psicanálise não se pode desconsiderar o resto arcaico da dependência estrutural da infância que, certamente, se torna em muitos um núcleo de resistência à incorporação das regras sociais e adesão dos conceitos de autonomia e liberdade propostos à vida adulta. Entendemos que os sujeitos do "jeitinho" são aqueles que, ao se embaraçarem com a sua castração, embaraçam-se também como cidadãos. (FONSECA, 2008)

Vários desses sujeitos se declaram ou são declarados como exceções ao pacto social dos direitos e deveres. O protetor desses sujeitos é o Estado-pai que provê, tenta compensar os prejuízos e, portanto, não tem o direito de cobrar obrigações e contrapartidas. A lógica dessa parceria não se baseia no contrato social moderno. Ela opera segundo "a lógica religiosa", em que todo homem é filho de Deus e, como tal, desamparado, jogado no mundo, precisando de amparo e assistência (COELHO DOS SANTOS, 2006; COELHO DOS SANTOS; DECOURT, 2008).

 

Aplicando a psicanálise: os efeitos subjetivos da pobreza

Considerando o modelo familiar brasileiro e o pouco acesso ao discurso científico, pode a psicanálise propor intervenções junto às famílias e os sujeitos pobres?

Coelho dos Santos (2001) esclarece que o objetivo da psicanálise freudiana é instrumentar os homens para que admitam a realidade psíquica, isto é, reconheçam uma outra dimensão da verdade à qual a ciência renuncia. Segundo a autora, essa dimensão é relativa à submissão dos homens às exigências superegóicas que se apresentam como modos de agir, pensar e sentir, herdados de experiências dos antepassados.

Sabemos que muitos brasileiros vivem à margem do Estado democrático e procuram insistentemente o SUS e as instituições jurídicas para se queixar de sofrimentos crônicos. Há uma precariedade econômica que tem efeitos subjetivos. Alguns consideram que sofrem demais, mais até que todos os outros. De imediato afirmamos que eles sofrem apenas o que todos sofrem, mas que elevam seu sofrimento ao status de ser impossível a sua superação.

O discurso psicanalítico, ao acolher o sujeito nas diferenças e dificuldades de sobrevivência no mal-estar da civilização, faz-nos acreditar que a psicanálise pode contribuir para tratar os impasses na adesão de indivíduos, interessados na concepção de serem "livres e iguais" no pacto social democrático. Há uma especificidade nesse trabalho psicanalítico: fazer falar esses sujeitos alienados no discurso da exclusão social e pouco responsável pelo próprio sofrimento psíquico.

Freud não tinha dúvidas das indicações da psicanálise aplicada à terapêutica. No V Congresso Psicanalítico Internacional (1918) em Budapeste, Freud afirmou que a psicanálise pode beneficiar toda a sociedade humana. Registrou a sua preocupação com a enorme quantidade de miséria neurótica que existe no mundo e que, talvez, não precisasse existir. "As neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose, de que, como esta, também não podem ser deixadas aos cuidados impotentes de membros individuais da comunidade" (FREUD, 1918/1976, p. 210).

A solução viria através da responsabilização do Estado e da sociedade sobre a urgência de o pobre ter direito a uma assistência à sua ‘mente’, tanto quanto ter direito a uma cirurgia. Freud sugere que esses atendimentos - gratuitos - aconteçam em instituições ou clínicas de pacientes externos para as quais serão designados analistas preparados.

Freud acredita na aceitação e na validade de suas hipóteses psicológicas para as pessoas pouco instruídas. Contudo sua preocupação maior era com a formação de analistas que desviavam da técnica por falta de domínio da doutrina da psicanálise. Talvez fosse necessário adaptar a técnica às novas condições, "no entanto, qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo possa assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha, o seu ingrediente mais efetivo e mais importante continuará a ser, certamente, aquele tomado à psicanálise estrita e não tendenciosa" (FREUD, 1918 /1976, p.210).

Freud, no texto A Psicanálise e a neurose de guerra, publicado em 1919, demonstra sua frustração com representantes oficiais dos mais altos escalões das potências do Centro-europeias porque não criaram os Centros Psicanalíticos nos quais médicos, com formação analítica, teriam tempo e oportunidade para estudar a natureza desse intrincado distúrbio -neurose de guerra - suas relações com teoria sexual das neuroses, e ainda os efeitos terapêuticos exercidos sobre os soldados pela psicanálise.

Em 1920, Freud fez dois agradecimentos especiais para analistas que tomaram a iniciativa de criar centros de atendimento em psicanálise. A Policlínica Psicanalítica de Berlim foi à primeira instituição de atendimento ao público em geral e de formação de analistas, cuja exigência foi considerada fundamental e "encarada como a única proteção possível contra o dano causado aos pacientes por pessoas ignorantes e não qualificadas, sejam leigas ou médicas essas pessoas" (FREUD, 1920/1976, p.358).

A psicanálise, com a sua significação científica, também é um procedimento terapêutico e pode fornecer ajuda àqueles que sofrem em sua luta para atender às exigências da civilização. "Esse auxílio deveria ser acessível também à grande multidão, demasiado pobre para reembolsar um analista por seu laborioso trabalho. Isso parece constituir uma necessidade social particularmente em nossos tempos, quando os estratos intelectuais da população, sobremodo inclinados à neurose, estão mergulhando irresistivelmente na pobreza" (FREUD, 1920 /1976, p.357).

Lacan herda a preocupação de Freud com a formação do analista e expande a prática da psicanálise em hospitais na França. Em 1964, na Ata de Fundação da Escola, La-can afirma que a diferença fundamental entre a psicanálise pura e a aplicada diz respeito à formação do analista (LACAN, 2003a). Na Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan afirma que para o analista tornar-se responsável pelo progresso da Escola precisa "tornar-se psicanalista da própria experiência" (LACAN, 2003b, p. 248) e que é dever da Escola garantir a formação àqueles que querem ser analistas.

Esse compromisso com a formação é de tal ordem, que a ascensão aos lugares institucionais é decorrente dos níveis de envolvimento com a Escola. "O psicanalista só se autoriza por si mesmo" (LACAN, 2003b, p. 248) e entre seus pares. Haveria um tempo para a psicanálise em intenção e um outro tempo para a psicanálise em extensão. Brousse (2007, p.22) afirma que a "extensão da psicanálise à terapêutica é uma condição de sua sobrevivência". Lacan, em Televisão (1993), adverte sobre os trabalhadores sociais que ‘escolheram carregar a miséria nos ombros’, afirmando que "carregar nos ombros as exigências do sintoma implica sempre se pôr a seu serviço. Ora, o sintoma deve, antes, ser posto a trabalhar pelo analista" (LACAN, 1993, p.29).

Figueiredo (1997), na sua pesquisa sobre os atendimentos ambulatoriais em psicanálise no Serviço Público na capital do Rio de Janeiro, relata o fato de não haver duas psicanálises, uma para o consultório e outra para o ambulatório. O que se faz necessário é uma (re)contextualização, uma revisão conceitual no campo da própria teoria para (re)localizar a prática no campo da clínica e suas variações. "A psicanálise aplicada à terapêutica também constrói o espaço propício ao seu desdobramento, tanto fora como dentro da instituição" (MATET; MILLER, 2007, p.5)

Na experiência clínica, sabemos que nem sempre o sujeito quer o seu bem e que projeta no outro a responsabilidade do seu bem-estar. Diríamos que ofertamos um serviço e, ao mesmo tempo, temos de escolher aqueles que querem abrir mão de seus sintomas, interessando-se pela psicanálise.

Toda a complexidade que envolve o atendimento institucional requer do analista uma escuta a partir do discurso organizado pelo queixoso, mas não do discurso vigente na sociedade. Não se trata de "oferecer" soluções padronizadas e institucionalizadas e, sim, do fato de que, ao se escutar, é possível construir uma demanda de saber sobre si e sua relação com o outro. A transferência e a interpretação são condições para tratar o sintoma na direção lacaniana da cura analítica. Cabe ao analista, porém, "inventar estratégias para flexibilizar, confirmar e remanejar princípios que possam nortear os analistas no real dessa clínica" (BASTOS; FREIRE, 2005, p.103).

Miller, em 1998, no texto "As contraindicações ao tratamento analítico", afirma que o encontro com o analista produz efeitos que podem ser transmitidos não só na comunidade psicanalítica, mas também fora dela. O ato analítico define-se pela pureza dos meios e dos fins, e não pelo enquadramento do sujeito.

A proposta a que aderimos está baseada na premissa da eficácia terapêutica da psicanálise lacaniana. É porque "consideramos que o encontro com um analista é algo demasiado precioso para que seja possível apenas para algumas pessoas". Temos a posição política de que um analista deve partilhar a responsabilidade pública com a ordem social. "Permitir a um sujeito ter a experiência do inconsciente, para encontrar a lógica de suas decisões e de sua posição na vida, é assegurar-lhe a possibilidade de sair da repetição do pior" (COTTET, 2005, p.35).

Concluímos com as palavras de Brousse (2007, p. 22): "A psicanálise aplicada é um móbil (móvel, um motivo) maior para o futuro da psicanálise, tanto como disciplina quanto como solução ética nova introduzida na civilização por meio dessa experiência original que é um tratamento psicanalítico".

 

Referências

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Endereço para correspondência
Av. Rio Branco, 2721/1209
36010-012 - Juiz de Fora/MG
E-mail: valeriawanda@uol.com.br

Recebido: 30/09/2010
Aprovado: 27/11/2010

 

 

1 Trabalho apresentado no II Congresso de Psicologia da Universidade Estácio de Sá. Niterói, novembro de 2009, na mesa: psicanálise e (des) inserção social.
2 Psicóloga, Mestre em Letras pela UFJF, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, Psicanalista e Membro da Associação Núcleo Sephora de pesquisa sobre o Moderno e o Contemporâneo, no Rio de Janeiro.

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