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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.35 Belo Horizonte jul. 2011

 

 

De analisante à analista… Passagens

 

From analysand to analyst … Tickets

 

 

Dulce Luna

Círculo Psicanalítico de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho foi apresentado para marcar o Tempo do Reconhecimento, tal como proposto pelo projeto de formação do Círculo Psicanalítico de Pernambuco. Este momento é uma exigência da formação do CPP, no qual o psicanalista, através de um texto escrito e apresentado publicamente à instituição, reafirma seu desejo de pertinência institucional e os demais sócios testemunham esta passagem. Com este ato ele se torna psicanalista da instituição. Articulo a cena da clínica com a da instituição psicanalítica, mostrando convergências entre o percurso da análise e o percurso da formação institucional. Os dois percursos são formas de passagem da posição de analisante para a de analista. Estas convergências são discutidas a partir dos conceitos de "chiste" e de "passagem ao ato esclarecida". Reflito sobre alguns pontos comuns entre estes fenômenos: são surpreendentes, supõem alguma elaboração da castração, produzem efeitos criativos e, enfim, só acontecem na presença do outro. Argumento que estas características, presentes tanto nos "chistes" como na "passagem ao ato esclarecida", estão subjacentes à passagem de analisante para analista.

Palavras-chave: Formação do psicanalista, Passagem ao ato esclarecida, Chiste.


ABSTRACT

This work had been presented in order to mark the Time of the Recognition, as it had been proposed by the professional training  project of the Círculo Psicanalítico de Pernambuco. This moment is a requirement of psychoanalytical professional training, during which the psychoanalyst reassure his own desire concerning institutional pertinence, through openly producing a written text to the psychoanalytical institution, so that the other members can testify it. With this act, the profissional become a psychoanalyst at the institution. I link the clinic scene with that of the psychoanalytical society, evincing the convergences between the course of analysis and the course of the institutional formation. Both are forms to move beyond the position of analyser towards that of the analyst. These convergences are discussed on the basis of conceptions around "joke" and "clarified passage to the act". I do some thinking about several common points between these phenomenons: they are surprising, presume some elaboration of the castration, engender creative effects and, after all, just happen in the presence of the other. I argue around these characteristics, conteined in the "jokes" as well as in the "clarified passage to the act".

Keywords: Formation of the Psychoanalyst, Clarified passage to the act, Joke.


 

 

Este trabalho discute o meu caminho institucional, marcado hoje como o momento do Reconhecimento, momento de mudar o modo de filiação, passando a ser psicanalista da instituição. Como não poderia deixar de ser esta reflexão é entremeada pela clínica e, fundamental, mas de âmbito estritamente privado, pela minha análise.

Assim, duas cenas distintas se explicitam aqui: no consultório, eu e a analisante e, na instituição, eu e meus colegas analistas. Por um lado, refletir sobre uma análise, seus tempos e seu término e, por outro, refletir sobre os momentos de passagens do meu percurso de analista na instituição.

Questões de várias ordens trazidas nestes convívios que são diversos nas suas especificidades, mas, simultaneamente, com pontos em comum nas suas direções. Penso que há um paralelo possível entre o percurso de uma análise e o percurso institucional que se refere a um caminhar que vai da posição inicial, denominada por Lacan de posição de analisante, que encobre a castração, à posição final, chamada posição de analista, que descobre a castração.

Neste texto pretendo pontuar e articular esses momentos, das duas cenas, na clínica e na instituição, por dois conceitos centrais: o "chiste" e a "passagem ao ato esclarecida''.

O "chiste'' é uma formação psíquica que se distingue das demais porque exige uma cena social e nesta produz um novo saber, uma nova forma de viver algo.

O conceito de "passagem ao ato esclarecida", construído por Lacan, difere das passagens ao ato. As últimas são destrutivas, pois visam escamotear a castração de uma forma radical, enquanto a "passagem ao ato esclarecida" implica no reconhecimento desta, sendo assim produtiva. O reconhecimento da castração, por sua vez, só pode se dar na relação com o Outro, que funciona como diferença e limite.

Tanto na análise como na formação de analistas, há o enquadramento do Outro, que permite e testemunha a produção de novos saberes que se atualizam em falas, chistes, textos e atos. Desta forma, apoiada nestes conceitos de "chiste" e de "passagem ao ato esclarecida", a idéia que persigo é a da essencialidade desta presença. No final da análise o ato da "cura". Na formação do Círculo Psicanalítico de Pernambuco, CPP, o ato do reconhecimento, ato de passagem para analista da instituição através de uma produção escrita. Ambas são passagens para uma nova condição, que pode implicar numa relação diferente com os limites e, assim, ambas poderão se constituir como "passagens ao ato esclarecidas".

O término da análise, quando ocorre, pressupõe uma mudança do lugar psíquico no qual o analisante encontrava-se. Do início ao fim posições distintas e distantes uma da outra implicando um percurso que levou a uma transformação radical na subjetividade. No início da análise há um encobrimento da castração e no final a possibilidade de entrar em contato com a própria divisão psíquica que nos estrutura e constitui levando ao reconhecimento de que não se é uma unidade completa e harmônica, conhecível e compreensível por inteiro.

Lacan descreve o processo de análise como sendo o percurso de passar da posição de analisante para a de analista. Chegar à posição de analista é entendido aqui como uma condição de funcionamento psíquico que reconhece a castração, e não como uma profissão. Esta posição, à qual se pode chegar num final de análise, é um ato último e sem volta, pois, caso se ultrapasse certo ponto de elaboração não se pode mais voltar atrás.

A mudança radical e definitiva resulta dos cortes instalados pelo trabalho da análise. Diversas intervenções são possíveis e preparam outras, raras e privilegiadas, que deixam aparecer a divisão do sujeito. Assim, quando ocorrem estas intervenções o sujeito é pego de surpresa, se vê em suspenso, em dúvida, em estado de perplexidade, de tal forma que não é possível mais retornar ao estado anterior, não há mais como encobrir por completo a divisão psíquica. Isso promove uma mudança nos significados que estavam cristalizados, tomados como certos e inquestionáveis, diminuindo o aprisionamento imaginário, provocando efeitos definitivos na estrutura e no funcionamento do sujeito.

O ato final da análise é o contato definitivo com a castração. Não que não hajam reiteradas tentativas de ocultá-la, mas, é definitivo no sentido de que o sujeito perderá para sempre a inocência ficando inevitavelmente advertido da sua falha fundadora. Profundamente impactado, o sujeito terá sempre um encontro marcado com a castração. Esta transformação, que se processa entre a entrada em análise e o momento final da saída, só é possível na elaboração transferencial, na relação com o Outro.

A análise pessoal e a clínica são nossas fontes principais de conhecimento, uma aprendizagem vivida que se dá na relação com o outro e fecunda a teoria para se tornar inteligível e, posteriormente, se tornar pública. É na clínica, sustentada pela minha análise que vou buscar aqui pontos de ancoragem para a elaboração deste texto.

Há anos atrás fui procurada por uma jovem imobilizada pelos seus sintomas. Selma, como a chamo, na época vivia aprisionada por intensa angústia e medo de muitas coisas: medo de ficar só, medo de se perder e medo de não se conter. Tinha a sensação de que as suas fantasias se transformariam em realidade, o que a fazia construir medidas e mais medidas defensivas da angústia.

Ela era escrava do imaginário, como se a fantasia fosse transbordar a qualquer momento. Estes sintomas a deixava quase paralisada no seu cotidiano e os avanços e obstáculos naturais da vida pareciam intransponíveis.

No início da análise muitas coisas para ela eram obscuras, precisava ansiosamente falar dos seus medos e estar com os outros, particularmente os familiares, que serviam como objetos especulares que a tranqüilizavam. Sendo assim, sua condição de fala na análise também se restringia ao relato interminável dos sintomas, sem nenhuma implicação subjetiva, assim como fazia em casa, na expectativa de, dessa forma, receber alívio. Paulatinamente, comecei a ser investida, transferencialmente, no lugar do suposto saber, daquela que tinha a solução para sua dor. Instalava-se aí o ato analítico fundador.

Disse-lhe, de partida, que deveria falar dos seus sintomas estritamente no âmbito da análise. Posteriormente, tal intervenção revelou-se como tendo tido uma função de corte, permitindo que certos limites começassem a se constituir. Pela primeira vez a instalação desses silêncios na relação com a mãe, o não falar tudo para ela, permitiu que se formassem lacunas entre elas, o que começou a dar um contorno diferente a si própria e, assim, pela primeira vez, ela tinha algo privado, só dela.

A fala repetitiva permite que ela siga o curso da análise. Curso que vai das queixas sintomáticas às fantasias subjacentes, dos conteúdos já inscritos àqueles ainda não inscritos. E, assim, ela constrói sentidos, trabalho que se refere tanto à dimensão imaginária como à simbólica. Ao mesmo tempo, esbarra nos limites do sentido, que é a perspectiva do real, fonte de angústia, mas, que tem também um efeito provocativo e estruturante, pois impulsiona a buscar outros significantes/significados.

Caminhar pelas sombras do inconsciente, tomar a palavra, é profundamente fecundo e criativo, mas, também tem o efeito de sofrimento e angústia provocado pelo reconhecimento de que a linguagem nunca dá conta do todo.

Na análise de Selma, aos poucos, a tensão imaginária foi flexibilizada e sua posição subjetiva se deslocou para uma maior possibilidade de desejar. Na sua vida ela realizou avanços importantes. Profissionalizou-se, casou-se e teve dois filhos. Passou a conter seus medos, mas, mesmo que de forma não paralisante, alguns persistiram.

Um sonho acontece: sonha que o pai a assedia sexualmente, ela se aborrece e o pai lhe diz: mas você também quer. Minha intervenção, pouco explicativa e breve é apenas uma repetição, "você também". Em resposta, ela ri e diz: "parece que eu só penso naquilo". Rio também, emergindo assim, desse momento de encontro analista/analisante, um chiste.

O chiste, como salienta Lacan, é uma formação privilegiada do inconsciente, pois é onde verdadeiramente se faz algo novo, criando metáforas, não se restringindo a deslizamentos metonímicos como é o caso das demais formações do inconsciente. E, também, é a única das formações do inconsciente que, para acontecer, precisa do outro, um outro que contribui para dar sentido ao que foi dito na medida em que ri também.

Identifico, então, nesse momento, um avanço importante na posição psíquica de Selma. Posso perceber outra forma de estar diante do desejo, uma forma de estar implicada e, mais do que isso, fazendo da sua divisão subjetiva motor de construções como transparece na produção do chiste em questão.

Em todo este percurso a transferência sustenta a presença de uma ordem simbólica maior, à qual analista e analisante estão submetidos, o que os desloca da relação predominantemente dual e imaginária. Rir do seu desejo pelo pai, investimento anteriormente vivido como aterrorizador, revela a condição de distanciamento e redirecionamento desse desejo. Assim, para Selma o fim da análise se anuncia, pois em breve poderá ficar também só, sem analista, podendo viver o ato final da análise.

No final da análise o destino do analista é ser destituído, ser prescindível, ao invés de ser objeto privilegiado de identificação. Isso permite que o próprio analisante venha a ficar no lugar de analista, ou seja, se reconhecer como aquele que fala e pode construir um saber, mesmo que um saber sempre incompleto.

O final da análise é uma "passagem ao ato esclarecida": ato porque vai da palavra à ação, a palavra que se dirigia ao analista cessará e o analisante não mais virá às sessões; esclarecida, pois ilumina a incompletude, interrompe um ciclo que encobre a castração e resulta de uma possibilidade psíquica arduamente conquistada. Este ato final estabelece uma rotação, uma transformação radical, na relação do sujeito com sua vida. Do lugar adquirido o sujeito pode entrar em contato com o não saber e permitir-se essa lacuna, esse silêncio. No final da análise temos o sujeito advertido de sua divisão constitutiva, advertido de que não sabe de tudo, mas que, sobretudo, o não sabido tem efeitos importantes na sua vida.

Penso ser possível relacionar a "passagem ao ato esclarecida" com o "chiste", conceito que permeia também este texto. Ambos irrompem sem qualquer elaboração consciente prévia, mas, no entanto, pressupõem um sofisticado trabalho psíquico de reconhecimento da castração; ambos jogam o sujeito numa outra cena que surpreende de alguma forma, pelo riso e pelo susto; ambos são formas criativas de lidar com a castração, possibilitando ao sujeito outra posição subjetiva; e, enfim, ambos só acontecem se houver a presença do Outro.

Neste caso clínico distingo três tempos: um primeiro tempo da análise, quando Selma vivia uma colagem imaginária maciça onde um corte é necessário para que se possa começar a fazer distinções. Num segundo tempo, surge a possibilidade de reconhecimento do próprio desejo, mas, sem humor, pois, a castração é ainda fonte de muita angústia e paralisação. No terceiro e último momento, o assumir o desejo com humor caracteriza a liberdade e criatividade diante dele. Aqui a castração é também impulso e não mais apenas obstáculo e, sendo assim, Selma se prepara para sua passagem final de analisante à analista.

Refletir sobre esta análise me deu subsídios para pensar também a vida institucional. A clínica ilumina a vida institucional e vice-versa.

Assim, pensando no meu percurso num olhar retrospectivo entendo hoje que, ao escolher anos atrás o CPP, o fiz principalmente pelo que nele havia de familiar. Era no CPP que estavam alguns dos meus professores e supervisores, amigos e conhecidos. Rostos familiares que na nova jornada que se iniciava traziam conforto. A entrada na instituição, portanto, foi marcada predominantemente pela especularidade imaginária.

Entretanto, anos depois, neste tempo do a posteriori, acredito ter sido possível fazer um caminho desde uma relação mais idealizada e imaginária até um trânsito mais autônomo e singular, onde passaram a prevalecer as identificações simbólicas. Estas trazem para o sujeito a possibilidade e flexibilidade de ocupar uma multiplicidade de lugares pelo fato de estar menos aprisionado ao desejo do Outro.

A existência desta entidade tão abstrata e ao mesmo tempo tão concreta que é a instituição psicanalítica pode funcionar como interventor, mediador, o Outro, suporte transferencial, para que o analista possa, no confronto com os outros, construir uma relação com a produção de conhecimento menos imaginária. No CPP, a forma de inserção respeita tanto os tempos do enquadramento institucionalizado, como aqueles que são próprios a cada um dos sócios.

Exercitar sistematicamente este tipo de convivência, facilitado quando há o espaço comum propiciado por uma instituição, tem sido fundamental na minha prática psicanalítica. Não pretender ser nem ter modelos ideais, reconhecendo que cada pessoa tem, de fato, um caminho singular é um principio fundamental cuja prática, acredito, o Círculo favorece na medida em que não se apóia na unanimidade.

Esta posição, vivida na instituição, implica, também na clínica, em abrir mão da perspectiva do analista como objeto de identificação, aquele que se oferece como modelo para o analisante. Ao contrário, coloca-o no pólo oposto, o de ser testemunha do percurso do outro, mas, margeando com ele, o vazio, a distância, a diferença, que se coloca entre os dois.

A vida institucional traz a presença sistemática do coletivo e, dessa forma, tanto contribui para confrontar com o estranho, com o diferente, com o externo e colocar na rota de precisar fazer um esforço permanente para encontrar meios de falar deste e com este estranho, como é, também, uma forma de reconhecer o campo simbólico, o Outro, no qual estamos incluídos. Reconhecer a dívida simbólica é um modo de se vincular ao Outro.

A instituição pode ter, às vezes, o efeito desagradável da convivência "forçada" com os significantes do Outro, convivência, entretanto, estruturante, pois, é exatamente esta exterioridade que permite o surgimento do inconsciente e a conseqüente constituição do psiquismo. É algo de fora, que Freud chamou de recalque originário, que funda o inconsciente. E então, não seria este o fazer próprio da análise? Não cegar a exterioridade, que é inerente à fundação do inconsciente, mas visualizá-la para fazê-la sair da obscuridade?

No caso de Selma o sexo e a morte eram significantes que lhe apareciam como uma intrusão, de tal forma que ela temia ser compelida a agir sem controle, impulsionada por este estranho que, vez por outra, lhe habitava com toda a violência. A análise possibilitou que não mais escamoteasse esses significantes, mas, pelo contrário, passasse a considerá-los e, percebendo seu envolvimento pudesse substituí-los, produzindo formações do inconsciente, criando novos sentidos, agora da posição de quem pode fazer desse limite: chiste, criação, produção.

Institucionalizar-se é uma tarefa árdua nos tempos individualistas em que vivemos, nos quais a crença na produção independente é um valor que prevalece. Roudinesco, no seu livro Por que a psicanálise?,salienta que hoje em dia cada um reivindica sua singularidade recusando-se a se identificar com as imagens da universalidade. Torna-se difícil, às vezes, discernir e, mais do que isso, reconhecer a trama das relações nas quais estamos inseridos, bem como o efeito desta trama sobre nós, a necessidade que temos dela para existirmos enquanto seres de linguagem e, consequentemente, nossa dívida com o coletivo e com o Outro.

Assim, conviver com o agrupamento institucional pode ter um sentido reconfortante de referência e familiaridade, mas, também, configura-se, penso, como uma ferida narcísica que remete à nossa diferença, finitude e consequente dependência do Outro. Assim, podemos falar tanto das resistências intrapsíquicas às quais já me referi, como das resistências sociais, no sentido de um contexto cultural que, em nome do individuo, desvaloriza o coletivo, as tradições e a hierarquia acentuando essa dor narcísica que advém de precisar do outro para nascer como sujeito e viver como tal.

É da ética da psicanálise, que vai na contramão das tendências ideológicas da contemporaneidade, o reconhecimento do Outro. Isto implica reconhecer a linguagem, o inconsciente, a ordem simbólica na qual somos inseridos e a nossa filiação simbólica. Lacan afirma que

"um psicanalista deve assegurar-se nessa evidência de que o homem, desde antes de seu nascimento e para além da morte, está preso na cadeia simbólica... ele é apanhado no jogo do significante, e isso, desde antes que as regras desse jogo lhe sejam transmitidas... e essa exterioridade do simbólico em relação ao homem é a noção mesma do inconsciente" (LACAN, J., Escritos. p.471).

A perspectiva individualista da atualidade quer fazer crer na nossa existência como mônadas, sem pais, sem Deuses, sem história. É por isso, também, que considero a pertinência a uma instituição psicanalítica coerente com a perspectiva do inconsciente e da estruturação de um lugar que reconheça a filiação e a dívida simbólica.  Assim como para Selma, foi possível ao sair do desassossego inicial da sua relação com seus pais, lugar do sintoma e do sofrimento neurótico, não escapar, mas, pelo contrário, se reintroduzir nas suas relações de aliança e parentesco (pais, marido, filhos) de forma produtiva e afirmativa.

No Círculo Psicanalítico de Pernambuco a formação se constitui em quatro tempos ordenadores. O tempo da entrada-na-formação, o tempo da aprendizagem-do-ofício, o tempo do reconhecimento e o tempo do a-posteriori. "Destas quatro modalidades, duas definem uma temporalidade, que se poderia chamar de tempo-de-passagem (tempo da entrada-na-formação e tempo do reconhecimento) e duas, uma temporalidade de assimilação e de integração do processo formativo (tempo da aprendizagem-do-ofício e tempo do a-posteriori)" (DIPLOMAS LEGAIS DO CPP. Projeto institucional, p.12).

Dessa forma, um dos momentos marco do projeto da formação do CPP é o do reconhecimento, momento que se define pela reafirmação pública da pertinência à instituição. Momento de re-escolha que exige a possibilidade de falar sobre sua pertinência na presença de testemunhas, diferentemente do momento da entrada. Fazendo um paralelo com o processo da análise discutido anteriormente: no momento da entrada na instituição, se é entrevistado no conforto dos consultórios, assegurados pela privacidade da escuta dos analistas/entrevistadores encontrando-nos numa situação, de certa forma, protegida.

No reconhecimento, último momento-marco na jornada da formação do CPP, após um trajeto de vida institucional, faz-se necessário criar algo novo, uma produção escrita e, mais ainda, torná-la pública. Portanto, esse ato simbólico do reconhecimento expõe e traz a castração para a cena, abrindo brechas na proteção que se tem no momento da entrada porque implica numa certa destituição imaginária, condição para mudar de lugar, falar em nome próprio e, agora sim, dizer se se quer, de fato, continuar pertencendo ou não. Só há reconhecimento se houver uma nova produção e uma cena social, como no chiste e na passagem ao ato esclarecida.

Assim, uma função importante da instituição é a de testemunho. O ritual proposto para se viver à passagem do reconhecimento contempla exatamente isto. Além disto, escrever um trabalho e torná-lo público expõe e fecunda, pois, assim, o saber pode ser retomado, verificado, repercutido e transformado. O trabalho solitário passa a ser do coletivo, podendo-se levá-lo adiante.

Podemos retomar, então, o conceito de uma "passagem ao ato esclarecida" reafirmando que o reconhecimento pode ser um momento de ato, ato singular e, simultaneamente, institucional. Se assim for é um ato que se assenta na castração, que implica em não haver uma certeza particular e de precipitar o sujeito no vazio. O momento do reconhecimento nos coloca numa posição onde não há certezas, uma posição onde não há portas que se fecham, mas, que se abrem para outras paragens dando continuidade à história e não servindo para interrompê-la.

 

Referências

FREUD, S. (1905) Os Chistes e sua relação com o inconsciente. In Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.VIII.         [ Links ]

LACAN, J. Escritos.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.         [ Links ]

DIPLOMAS LEGAIS DO CPP.  Projeto institucional. Biblioteca do CPP, 2003, p.12.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Praça Professor Fleming, 117/1301 – Jaqueira
52050-180 - Recife/PE
Tel.: (81)3231-7730
E-mail: dulceluna@uol.com.br

Recebido: 11/05/2011
Aprovado: 12/05/2011

 

 

Sobre a Autora

Dulce Maria de Lemos Luna
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco.