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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.35 Belo Horizonte July 2011

 

 

O sintoma como expressão da subjetividade em crianças com dificuldades de aprendizagem: alteridade como fator facilitador

 

The symptom as an expression of subjectivity in children with learning difficulties: theotherness as a facilitating factor

 

 

Maria Beatriz Jacques RamosI; Noeli Reck MaggiI, II

ICírculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
IICentro Universitário Ritter dos Reis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho reúne algumas reflexões sobre a influência de um ambiente facilitador em crianças que vivem situações de risco e de privação no desenvolvimento e escolaridade inicial. Aponta a cultura, a organização familiar como elementos relacionados à constituição da subjetividade nas crianças e destaca o papel da intersubjetividade no desvelamento dos sintomas que as mantêm impossibilitadas de operar sobre a realidade com o uso das estruturas lógicas e significantes. Diagnosticadas como portadoras de problemas de aprendizagem e impossibilitadas de se apropriar do conhecimento, sobrevivem aos desafios da escolaridade formal apoiadas pelo acompanhamento clínico. Para analisar a constituição da subjetividade no desenvolvimento inicial e seus reflexos na capacidade de pensar e de representar, foram consideradas as contribuições teóricas da psicanálise, especialmente no referencial de Freud, Lacan, Winnicott e Bion.

Palavras-chave: Psicanálise, Problemas de aprendizagem, Subjetividade, Alteridade.


ABSTRACT

This paper presents some reflections on the influence of an enabling environment in which children in situations of risk live and hardship in the development and initial schooling. It points culture and family structure as related elements of subjectivity in children and emphasizes the role of intersubjectivity in the unveiling of symptoms that keep them unable to operate on the reality using logical and significant structures. Diagnosed as having learning problems and unable to take ownership of knowledge, these children survive the challenges of formal schooling supported by clinical follow up. To analyze the constitution of subjectivity in the initial development and its impact on the ability of thinking and acting, the theoretical contributions of psychoanalysis were considered, especially in reference to Freud, Lacan, Winnicott and Bion.

Keywords: Psychoanalysis, Learning problems, Subjec-tivity, Alterity.


 

 

Cultura, família e subjetividade

O estudo da personalidade, no que se refere à sua estrutura e dinâmica, está associado às questões de cultura, família e aos aspectos sociais e psíquicos que transitam no ambiente no qual a criança se desenvolve. A subjetividade na infância se constitui a partir de uma rede de expectativas e ideais, revelando-se na linguagem, nas brincadeiras, no comportamento e nas demais representações simbólicas de uma forma particular. Essa forma particular de estruturação aponta para a necessidade de uma escuta particular de cada sujeito para apreendê-lo em sua complexidade básica.

A cultura possibilita a gênese de condutas e a construção de novos estratos no sistema de representação simbólica, como também a modificação e transformação de cada sujeito em suas relações com a realidade. Quando se fala em cultura, fala-se em civilização cujos princípios traçados pela modernidade impõem grandes sacrifícios à sexualidade e à agressividade.

Freud (1980) insistiu na necessidade de renúncia do princípio do prazer para dar lugar às normas que compreendem uma realidade ordenada por uma produtividade por vezes compulsiva do homem civilizado. A conquista de espaços e o orgulho pelas realizações exigem uma renúncia pulsional, o reconhecimento de que a independência está relacionada à dependência do outro e que os desejos são regulados pela falta. Essa é a mensagem de Freud: se ganha alguma coisa, mas habitualmente, perde-se em outra a expressão plena da pulsão. E nada predispõe os seres humanos a expressarem de forma “natural” a rotina da ordem, a preservação de princípios que regulam uma sociedade, ou a própria convivência humana. Neste sentido, a educação remete à perda, mas também à estruturação psíquica no estabelecimento de regras e limites para que a criança alcance a sublimação de seus desejos infantis.

A liberdade de agir sobre os impulsos pessoais prevê uma preparação, cuja coerção gera renúncia e sofrimento. Esse é o preço da civilização e da produção na cultura segundo Freud. Se existe prazer na vida civilizada, ele vem acompanhado de um “mal-estar” demarcado pela medida do princípio da realidade. Para Freud, o humano está condenado à contradição, numa luta permanente entre o impossível e o realizável. Não há amadurecimento psíquico sem perda e reavaliação de todos os valores. Mas os valores reavaliados não garantem necessariamente um estado de satisfação. Esse paradoxo nos permite repensar, após oitenta anos, “O mal-estar da civilização”, escrito por Freud e que serve de referência para compreender a constituição da subjetividade humana.

O trabalho clínico, sustentado pela psicanálise, alerta para a escuta do sujeito no que não pode ser falado, sentido ou pensado. O acolhimento do que está impedido de ser nomeado relaciona-se ao medo da renúncia, da perda e do dano que isto pode causar ao psiquismo. A experiência clínica nos alerta que não somente as crianças trazem um sofrimento desde a sua origem e que se traduz nos sintomas de inibição na aprendizagem, mas também os pais não conseguem revelar o que lhes ocorreu na sua trajetória de vida.

Winnicott (1983, p.131) nos fala de uma necessária atenção ao ambiente facilitador desde o desenvolvimento inicial da criança para que ela possa se constituir como um sujeito criativo, relativamente independente e portador de um verdadeiro self. O sujeito quando nasce traz uma inscrição cultural, é nomeado e determinado pelas expectativas dos genitores e da sociedade na qual está inserido. Assim, constitui a sua identidade, assumindo um modo de se ver e de se relacionar em função dos referenciais que estão fora dele.

Numa cultura em que o reconhecimento e a aprovação social transitam de um valor para outro em reduzido espaço de tempo, o sujeito não adota nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora para outra, se for preciso. Essa é a expressão social mais recente, caracterizada pela cultura pós-moderna. O sujeito é investido de uma marcante obsessão pelo superficial e pelo narcisismo, caracterizado pela onipotência e identificação projetiva. O predomínio do prazer, da pluralidade e do descontínuo sem nenhuma interdição, dificulta a continuidade da experiência interior e do pensamento. Encontramos também esse fenômeno no campo da educação, ao constatar na escola comportamentos estereotipados de crianças e adolescentes na construção do saber.

Sara Pain (1999) refere que todo adulto educa o bebê de sua própria maneira, ou seja, o coloca diante de si, com a finalidade de atraí-lo à cultura, à civilização. A constituição do ser humano, no início, dá-se a partir do conhecimento e do desejo do outro. A sua estrutura subjetiva depende muito da organização que está fora dele e de como ele vai poder integrá-la. A criança aprende um modo de relação com a mãe, e a entrada de um terceiro suposto vai possibilitar que ela saia de uma ligação simbiótica para buscar outros elementos que lhe faltam. Essa é a função paterna, a castração simbólica que inscreve o sujeito na busca de um desejo.

Nessa perspectiva, quando pensamos na criança que ingressa na escola, retomamos a questão de como ela integra o conhecimento que está fora dela na sua rede de significantes, incluindo aí os seus cuidadores e a cultura de modo mais amplo. A aprendizagem na escola desafia a criança, especialmente quando ela ingressa no ensino fundamental, a utilizar os recursos pessoais do seu desenvolvimento anterior. Quando o ambiente é facilitador e possibilita a castração simbólica exercida pela presença de uma “mãe suficientemente boa”, no dizer de Winnicott (1983, p.133), a frustração pode ser melhor suportada. Neste sentido, a necessidade de enfrentamento da realidade possibilita nomear o conflito e conviver com a dor de uma suposta perda. A clínica, no atendimento às crianças, pode exercer o papel de um ambiente facilitador.

Através de pesquisa numa vila em Porto Alegre (Caregnato, Hassen, Maggi, 2002), as histórias de vida das famílias revelam dados bastante significativos sobre a relação dos pais junto aos filhos até a idade de sete anos que a escola parece desconhecer. Muitas crianças que frequentam a escola, especialmente nas primeiras séries, têm dificuldades de operar no campo cognitivo, quando os entraves parecem situar-se na estrutura afetiva. As possibilidades de simbolização e de representação do conhecimento envolvem um modo de relação e de expressão do desejo. Observam-se crianças cujo investimento afetivo que recebem parece precário, tanto pela transitoriedade das figuras parentais como pela ausência das mesmas ou pelo excesso de controle.

Para fazer uma intervenção com as crianças impossibilitadas de desfrutar das reais potencialidades na aprendizagem escolar, é necessário revisar seus modos de relação e de representação nomeados pela linguagem. A entrada na escola exige que a criança transponha os obstáculos, sem a presença da mãe, ou que os supere de forma satisfatória na relação com o outro. As representações que a criança tem dos pais não têm o mesmo caráter, não são da mesma ordem e ingressam no psiquismo de diferentes maneiras. Para aprender, o sujeito tem de se deparar com o objeto novo e diferente, incluindo-o numa cadeia de representações. Isso é possível quando a criança, de alguma forma, saiu da relação de dependência com a mãe e aprendeu a buscar e desejar as próprias alternativas diante de possíveis problemas.

Os teóricos da psicanálise que dedicaram grande parte de suas vidas ao estudo do desenvolvimento infantil apontam a função paterna como um elemento estruturante do psiquismo humano. Winnicott enfatizou a importância das relações iniciais com a presença de uma “mãe suficientemente boa”, que investe na relação com o filho, mas que não é intrusiva. Esse investimento afetivo, na concepção de Bion (1994, p.134), ocorre a partir de uma mãe com capacidade de “rêverie”, ou seja, apta a ser continente e acolher a ansiedade da criança no seu estado natural para que a mesma transforme esse conteúdo em desejo de viver.

A partir desses referenciais parece adequado investigar como estão representados os pais no psiquismo das crianças que não conseguem ou que não se permitem aprender. Quando se fala em pais representados ou internalizados, entende-se a função normalizadora ou estruturante do psiquismo, que garante à criança um substrato econômico que lhe possibilita o encontro e a superação diante do novo, do diferente e também do que é frustrador.

O livro de Roudinesco – A família em desordem (2003) – faz uma reconstituição da família por meio da história, situando os papéis de pai, de mãe e das demais relações de parentesco ao longo dos séculos até os tempos contemporâneos. A autora faz referência à necessidade de normalizar as relações, a vida, os modos de agregar-se em grupo, incluindo aí as minorias humanas. Segundo Roudinesco (2003, p.9-10), a necessidade de uma revisão dos valores está relacionada ao que as pessoas temem: a decadência dos valores tradicionais da família, escola, nação, pátria e, sobretudo, da paternidade, do pai, da lei do pai e da autoridade sob todas as formas.

Há uma necessidade de retornar a lei do pai, confirmar sua presença e, de certo modo, submeter-se a ele para que seja reeditada uma nova ordem social. Para Roudinesco, sem a ordem paterna e sem a lei simbólica, a família torna-se mutilada em suas funções de agregação e de apoio à organização social. É em função da tentativa de normalizar e de fazer refletir sobre o efeito das diferenças que todas as minorias buscaram na família uma forma de apoio, de legitimação dos desejos mais pessoais e convencionalmente contestados.

Elisabeth Roudinesco faz uma análise desta nova ordem, desdobrando na história os laços que constituíam as uniões entre as pessoas e as possibilidades futuras de organização. Analisa também a sexualidade e a força do pai através dos tempos. Há um redimensionamento de papéis do homem, da mulher, dos filhos, da lei como constituinte de valores e de uma nova forma de entender os laços que unem as relações de parentesco. Tomando como foco a visão freudiana do Complexo de Édipo, Roudinesco analisa a opinião dos libertários, dos conservadores e dos psicanalistas. Seria o Complexo de Édipo uma tentativa de salvação da família patriarcal, ou um projeto de destruição da antiga autoridade hierárquica, ou ainda um modelo psicológico capaz de restaurar uma ordem familiar normatizante?

O Complexo de Édipo rompe com a soberania do pai e torna-se um marco definidor e emancipador da subjetividade, dando realce ao amor, ao desejo, ao sexo e à paixão. A concepção freudiana da família apoia-se na organização das leis, da aliança e da filiação.

Como se verá, no caso de Maria, uma das crianças que fez parte do estudo de Roudinesco, a fragilidade dos papéis ocupados pelos personagens na família impede que ela ocupe o lugar de filha. Os pais não designam um lugar a esta criança que busca um nome, uma filiação. Neste caso, a criança também está impedida de se filiar ao conhecimento. Não se trata de uma questão física ou genética, mas de atividade psíquica na qual os pais poderiam realçar os princípios da presença que gratifica, abastece e também possibilita a castração simbólica da verdade e do enfrentamento das dificuldades futuras. A família seria então um filtro de uma força essencial à civilização, ao crescimento, à morte simbólica dos pais e à reconciliação como filha. O pai ocupa o lugar de genitor e acima de tudo, exerce a função de nomear o filho. O patriarca é mutilado para tornar-se voz na fala da mãe sobre o filho, marcando presença e redistribuindo papéis. Parece que as imagos materna e paterna na mãe de Maria impedem-na de exercer estas funções na relação com a filha de modo a possibilitar a constituição da subjetividade, já que a alteridade não se faz presente.

 

Maria

Maria tem 10 anos, frequenta a segunda série do Ensino Fundamental e está em atendimento psicoterápico há um ano. Foi encaminhada pela escola à clínica com a queixa de dificuldade nas áreas de leitura, escrita e cálculos matemáticos. Revela dificuldade para memorizar os signos das palavras e compreender o que já identificou em leituras realizadas. Insiste na possibilidade de não conseguir, definitivamente, aprender, uma vez que sua vida tem se pautado por recorrentes insucessos tanto no âmbito escolar quanto familiar.

A criança expressa desconfiança em relação aos cuidadores, aos professores e à própria capacidade para superar os desafios que as tarefas escolares propõem. Mora com a mãe e o companheiro que é pai de três irmãos por parte desta união. A mãe de Maria não revela à filha a verdadeira paternidade e afirma que o seu pai é o companheiro com quem vive atualmente. Na realidade, o pai biológico de Maria faleceu quando ela ainda era bebê, em função da dependência do álcool e de drogas. A mãe, apesar de ter comunicado esta informação na entrevista inicial, nega-se a falar deste tempo e revela grande temor de ser abandonada pela filha.

Uma morte não falada e um silêncio não suportado se expressam como um sintoma de não aprendizagem. Maria sofre por não conseguir vivenciar a morte do pai. Proibida de falar da sua dor, encontra alternativas para conviver com esta proibição na impossibilidade de compreender o que lê e na dificuldade de identificar o que ocasionalmente reconheceu como o decifrador de um código da língua.

O psiquismo só pode ser compreendido pela linguagem que, no caso de Maria, anuncia uma simbolização fracassada frente à realidade. Por estar impedida de falar da morte do pai e por atender ao mandato inconsciente de “olhar” esta perda, a criança se reconcilia num sintoma em que a sua alienação faz eco ao conflito vivenciado.

Trata-se de um sofrimento que, após ser nomeado, poderá fazer sentido para a vida desta criança. Mãe, companheiro e irmãos, identificados com o desejo proibido de revelação, partilham da diferença e da similaridade das manifestações de Maria. A mãe traz dentro de si um pouco do sintoma da filha e, para encontrar-se com ela, utiliza um sistema de representação do objeto, causa do dano – negação da morte – para também resolver a sua problemática pessoal.

Os irmãos, numa tentativa de alienação, revelam altas expectativas em relação à Maria, negam a dificuldade e deprimem-se quando se percebem como portadores de algo semelhante. A psicopedagoga, com as possibilidades de intervenção, acolhe, escuta e busca possibilidades para encontrar-se com a criança naquilo que mais a mobiliza. Portanto, a psicopedagoga pensada como uma função de “continente” ou “rêverie” segundo Bion, “suficientemente boa” segundo Winnicott ou como uma função especular segundo Lacan, abraça-se ao sintoma de Maria e reconstrói a história para trabalhar e conviver com uma realidade menos “perigosa”.

 

Marcelo

Na história descrita por Marcelo, um adolescente, percebe-se as implicações das identificações e dos vínculos com os pais incidindo nas inibições escolares. Marcelo tem 15 anos, estuda na 8a série, apresenta dificuldades em várias matérias e problemas disciplinares. Já repetiu a série anterior porque jogava num time de futebol e faltava muito às aulas.

Seus pais são separados e a mãe vive com outro homem. Marcelo fala com muita raiva do padrasto e da irmã, filha deste segundo relacionamento da mãe. Admite seus problemas com colegas e professores, as conversas e brincadeiras excessivas em aula, provocações, brigas, mas não demonstra preocupação com isso. Não mostra responsabilidade quanto ao desempenho escolar e sabe que repetiu uma série porque não estudou. Estava envolvido com uma colega que estudava no mesmo turno que o seu e não queria saber de nada a não ser “ficar” com ela.

Marcelo vive o crescimento e a maturação biológica, realizando suas fantasias sexuais ativamente. Namora, mostra-se viril, dominador, não controla sua agressividade destrutiva, voltada contra os outros e contra si mesmo ao contar suas façanhas e realizações aos colegas. Isso lhe confere poder e submete os demais aos seus impulsos. Acredita que é experiente em relação às mulheres e gosta de exibir para todas suas conquistas que precisam ser repetidas compulsivamente para evitar o vazio da frustração, da falta da provisão materna. Seu maior interesse é o futebol e acredita que esse esporte vai lhe trazer o sucesso, a fama, a atração do olhar do outro. Mora num internato e nos fins de semana, quando vai para casa, frequenta as festas de pagode com os amigos do bairro. Fala: “Eu gostaria de continuar jogando futebol. Futebol depende muito de sorte. Tem que ter jogo, mas mais é sorte. A gente nunca sabe o que pode acontecer. O maior clube em que já joguei foi o Veranópolis”.

Em Marcelo predomina o processo primário, uma tendência à satisfação, evitação do sofrimento e um pensamento mágico. O sucesso não depende de esforço e de frustração, mas de muita sorte.

Tem um irmão mais velho e duas irmãs por parte de pai. A única que permanece junto à mãe é a menina menor, filha do último relacionamento da mãe. As recordações do pai não são boas, pensa que ele faleceu, pois era um alcoólatra. Fez alguns relatos das brigas do casal, do modo como ele e a mãe apanharam até o dia em que ela resolveu ir embora com o filho. Eles foram morar com um tio e o pai nunca mais os procurou. Desde pequeno, Marcelo desejou a morte do pai, foi maltratado e ignorado por ele. Em relação à mãe, não demonstra afeto, mas ressentimentos. Ele diz confiar apenas nos amigos, pois estes são seus confidentes. Não fala com a mãe, não sente segurança e cuidado quando está com ela.

Ele a desqualifica porque fez escolhas amorosas que o prejudicaram: primeiro foi o pai, depois o padrasto que não o quer por perto. A mãe não pode protegê-lo.

Ele foi para o internato quando a mãe passou a morar com seu padrasto. Esse já tinha um filho, que ficou com eles. Para viver com esse homem, a mãe o abandonou, o deixou entregue ao próprio destino, sem o olhar materno.

Marcelo não suporta as regras da casa do padrasto, a maneira como é tratado. Ele não se sente estimado e a mãe parece ter medo do atual companheiro submetendo-se, ao sofrimento para viver com esse homem e criar a filha que teve com ele, a irmã que Marcelo detesta.

“Não gosto do meu padrasto. A relação com ele é ruim. Ele é muito egoísta. Não bebe, nem fuma é a única coisa que tem de bom. Ele é muito chato, pão duro, não dá nada, o que o cara quer ele tem que conseguir. Ele só dá quando estiver acabado. Por exemplo, se o meu tênis estiver todo rasgado, não der mais para usar, aí ele compra outro. Se eu quiser um tênis antes, tenho que comprar, tenho que trabalhar. Tenho que trabalhar com o pai dele na chácara, cuidar dos bichos”.

Marcelo não gosta do padrasto, sente que ele quer prejudicá-lo, impor-lhe tarefas e restrição. Tudo o que não suporta em si mesmo identifica no padrasto, enquanto ele torna-se a vítima dessa relação.

Ele teve experiências traumáticas com o pai e mostra um comportamento de oposição frente à autoridade do padrasto, assim como dos dirigentes no internato, e dos professores em sala de aula. Reclama das notas baixas, das matérias que não gosta de estudar, mas não faz esforço para mudar essa situação. Os defeitos são dos outros, confunde o que foi introjetado com as relações atuais do mundo externo e não tolera exigências. Só quer jogar futebol.

Foge da escola e do internato para treinar. Já foi advertido por um dos responsáveis que cuida das saídas dos meninos, mas isso não foi suficiente para que se modificasse. Perde provas e trabalhos para jogar futebol. Sua fantasia é ser um grande jogador: imagina que alguém irá descobrir seus talentos, nomeá-lo de alguma maneira.

Mas, inconscientemente, sabe que não conta com ninguém, faz o que tem vontade, independente das restrições do meio. Recebe punições por suas atitudes e faz os outros sofrerem. Não mostra interesse pelos sentimentos de seus familiares, mas raiva, e por isso desliga-se das expectativas das pessoas do internato e da escola. Briga com a mãe, com a irmã menor, com todos que tentam interferir no que ele quer. Tem um eu inflado, perseguidor, angustiado, nunca teve acesso à verdade de si mesmo e de suas desilusões.

Nos fins de semana prefere ficar na rua com os amigos, viver em liberdade, ir a festas, beber. O que o pai fez, ele repete nos relacionamentos atuais, sem restrições e interdições. Vive sitiado na fantasia e na compulsão, é impulsivo, tem uma imagem exagerada de si mesmo e uma incapacidade de perceber a intenção e o prejuízo que provoca com suas ações. Diz que sabe virar-se sozinho, não precisa de ninguém. Ele não pode viver a dependência de estar com o outro para alcançar uma independência relativa. Numa sessão contou como escapava da escola e planejava as fugas para jogar futebol: “Saía do refeitório, escovava os dentes, ia para a rua, nem me preocupava em me esconder, não dava nada. Saía pelo portão e pronto. Só uma vez um professor viu e perguntou aonde eu ia. Mandei falar com o Ronei, quando ele virou as costas, eu me mandei.”

Mostra descaso pelas regras impostas no internato e na escola. Aponta a ignorância das pessoas que o cercam, mas não é capaz de avaliar os prejuízos que as transgressões provocam, age querendo impor suas próprias leis.

Percebo Marcelo como um fio enroscado num novelo, como ator de uma tragédia. Ele encena um papel, é um artista da trama familiar. Esconde-se para não sentir dor, finge ter o que não tem, quer algo ou alguém para amar, mas não ama a si mesmo, tem pouco amor para dar. Precisa destruir as possibilidades de crescer e diferenciar-se dos pais e do sofrimento decorrente das privações vividas. Algumas dessas experiências foram com a mãe, que não pôde conter sua angústia e o medo de ser destruído, aniquilado; outras com o pai agressor e executor de castigos que ele não podia revidar nem compreender. Ele luta contra a castração simbólica, não consegue enunciar a falta e vive sob a ameaça do desamparo (Comaru, 2001).

Para ele, há uma ausência da ordem simbólica. Os prazos estão prescrevendo, mas continua agindo para anular as leis. A relação com o pai fracassou e com a mãe tornou-se presa da angústia paranóide. Não confia nela e não confia em ninguém, faz-se temido para ser respeitado, se engrandece e agride o pouco que tem. Seu o narcisismo é destrutivo; o eu é visivelmente cindido entre os que ama e os que odeia. Suas defesas são primitivas porque precisa controlar o meio com atitudes provocativas, exibicionistas, para agredir os vínculos e manter sua suposta indiferença e superioridade.

 

Ambiente facilitador e problemas de aprendizagem

Desse modo algumas crianças e adolescentes crescem. Seguem os caminhos de Narciso entranhados em si mesmos, sobrevivem ao abandono, medo, hostilidade, indiferença vividos desde os primeiros anos de vida. Os pais ficaram denegridos numa filiação escassa. A função paterna não foi representativa, não os tornou progressivamente independentes do desmame materno e de suas experiências do passado para usufruírem novos relacionamentos.

Eles tratam mal a si mesmos, não são compreendidos, não aprendem os conteúdos escolares e não compreendem o que estão vivendo. As experiências emocionais não favoreceram pensamentos sobre novos modos de Ser e Ter. De algum modo, foram forjados na palavra, ou na ausência desta, e no manejo materno com compensações ou faltas excessivas, mentiras e enganos. Foram de algum modo abandonados.

Nessas histórias, a relação com a mãe foi capital no protótipo das relações amorosas que demonstraram. As ligações, separações e lutos apareceram com nuanças distintas, mas profundamente interligados aos modelos de relacionamento com a mãe e ruptura com o pai. Outras figuras significativas também se fizeram presentes, mas não se inscreveram em seus desenvolvimentos psíquicos para que pudessem sentir a confiança que sustenta a força dos laços de reciprocidade com os outros e com o desejo de saber, de aprender e assumir novas responsabilidades. Foram criados em ambientes que favoreceram um falso self, pois são incapazes de dar sentido e expressão às vivências afetivas. Eles têm dificuldades no ensino formal. Dificuldades que prejudicam seu desempenho: não aprenderam a confiar, não aprenderam o caminho que leva à independência, a sentir e pensar por si mesmos. Suas fantasias e ações mostram os vínculos com os objetos internos: mãe e pai. Continuam buscando o não saber, a punição, a intolerância e a escassez de recursos cognitivos para aprender, crescer e a desconsideração dos outros.

A dificuldade de coesão narcísica é visível nessas histórias de vida. Eles foram alijados da relação parental passavelmente boa. Não têm a medida do que ganharam, mas sabem que perderam. Sem um termo terceiro, suas histórias modificaram-se, mesmo que conservem algumas raízes, mas a nomeação e a identificação com o pai perdeu-se.

Desse modo, eles precisam ressignificar o conhecimento e aprendizagem de forma realista e aceitar, em parte, o rumo de seus relacionamentos sociais, tomando consciência, resgatando a palavra e o pensamento, expressos na incapacidade de ler, escrever, compor um texto. Esperamos que esse texto, que ainda não tem autoria, reflita o possível e o impossível do que cada um pode realizar na vida, já que estão presos no imaginário, reproduzem o discurso materno e a ausência paterna, nas frágeis experiências sociais e escolares.

Para Maria e Marcelo as falhas ambientais favoreceram as fantasias e as ilusões onipotentes, com identificações precárias permaneceram sustentados no imaginário, com visões borradas da realidade e com dificuldades para agir, criar; com muitas resistências para aprender e para pensar.

Para Klein (1978) o amor e o ódio, as fantasias, as ansiedades e as defesas estão vinculadas, desde o início da vida, às relações com os outros. Cada sujeito começará sua história de forma diferente conforme as condições estabelecidas nessas relações, num ambiente que poderá ser favorável ou não. O que fundamenta uma estrutura psíquica sadia e estável é a confiabilidade nos objetos externos, principalmente a mãe, como a primeira sustentadora da capacidade de tolerar a angústia da separação, da falta no objeto.

Maria e Marcelo buscam o reconhecimento, o olhar refletor, a palavra que apóia a estima pessoal para suportar o mundo externo, pois sem isso advém o colapso, a ausência, a dor de nada Ser e, portanto, ascender ao Ter. Nessas histórias de aprendizagem social e escolar podemos verificar as falhas dos objetos internalizados, a pobreza de holding, de sustentação à construção da subjetividade.

 

Referências

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CAREGNATO, Célia Elizabete; HASSEN, Maria de Nazareth Agra; MAGGI, Noeli Reck. Táticas das crianças: vida, saber e escola. Porto Alegre: UniRitter, 2007.         [ Links ]

COMARU, Marcos. Implicações clínicas do desejo na neurose obsessiva. In Formações teóricas da clínica. Rio de Janeiro: Contra-Capa, 2001.         [ Links ]

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KLEIN, Melanie et al. Os progressos da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.         [ Links ]

LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

PAIN, Sara. A função da ignorância. Trad. Maria Elísia Valliatti Flores. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.         [ Links ]

ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudo sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Trad. Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. Privação e delinqüência. São Paulo: Martins Fontes, 1999.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Protásio Alves, 1981/309
90410-002 – Porto Alegre/RS
Tel.: (51)3331-2057
E-mail: mbjramos@terra.com.br

Recebido: 14/03/2011
Aprovado: 04/04/2011

 

 

Sobre a Autora

Maria Beatriz Jacques Ramos
Psicanalista, Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Presidente do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

Noeli Reck Maggi
Psicanalista, Professora do Centro Universitário Ritter dos Reis, Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Coordenadora do Instituto de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.