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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.35 Belo Horizonte jul. 2011

 

 

Falo versus criatividade

 

Phallus versus creativity

 

 

Pedro Cattapan

Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos
Universidade Federal Fluminense

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo recupera a conceituação freudiana de desamparo como relacionado ao traumático, positivando-o como condição de criatividade; para isso, apóia-se em alguns conceitos de Winnicott, de modo crítico. A relevância do artigo vem do fato de que, costumeiramente, muitos psicanalistas associam o traumático à castração e não ao desamparo – modo de pensar que produz efeitos importantes na clínica. A referência ao falo e à sua castração impediria a emergência da criatividade, produziria um desinteresse pelo mundo e uma sideração pelo falo: o único objeto que se acreditaria capaz de trazer prazer. No entanto, é justamente a afetação e exploração dos objetos do mundo o que permitiria ao aparelho psíquico sentir algum prazer.

Palavras-chave: Psicanálise, Falo, Criatividade, Desamparo, Trauma.


ABSTRACT

The present paper recovers the freudian concept of helplessness as related to the traumatism, denoting its positive side – the helplessness is a condition to creativity. To do so, this article operates some Winnicott’s concepts in a critical way. The relevance of this text comes from the fact that, usually, many psychoanalysts associate the traumatic to castration and not to helplessness – this way of thinking that produces important effects in clinic. The reference to phallus and to its castration impedes the emergence of creativity; it produces lack of interest in the world and a fascination with the phallus: the only object that could be believed to bring pleasure. However, affectation and exploration of the objects in the world is, in reality, what would allow the psychic apparatus to feel any pleasure.

Keywords: Psycho-analysis, Phallus, Creativity, Helplessness, Trauma.


 

 

Introdução

Uma freqüente leitura que se faz da obra de Freud enfatiza a importância das vicissitudes da relação do sujeito com o objeto falo como causa central do adoecimento neurótico em detrimento de outras situações psíquicas. Porém, não esqueçamos que há determinados sintomas e padecimentos psíquicos que não se referem às possíveis relações com este objeto e que, ainda assim, são compreendidos como padecimentos neuróticos. Referimo-nos, por exemplo, às neuroses traumáticas (FREUD, 1996), mas também as neuroses narcísicas (id., 1996).

Atemo-nos às primeiras na discussão a ser desenvolvida neste artigo. As neuroses traumáticas, como o próprio nome indica, dizem respeito aos efeitos de um evento traumático e não das conseqüências da entrada do binômio falo-castração na dialética psíquica, pois, ao contrário do que alguns autores tendem a afirmar apressadamente, não se deve compreender a castração como sendo o evento traumático fundamental gerador da neurose traumática e, talvez, de nenhuma outra organização psíquica, como teremos oportunidade de argumentar no desenvolvimento deste artigo.

Pretendemos demonstrar com nossa reflexão não só o equívoco, mas também a conseqüência da centralização da escuta analítica na relação do sujeito com o falo. Já adiantamos que o grande prejuízo desta postura é a perda da criatividade do sujeito. Para tanto, tomaremos como base um artigo bastante importante na obra de Freud para melhor esmiuçarmos nossas reflexões sobre as bases do padecimento neurótico – e, neste caso, da neurose de transferência mesmo, à qual toda uma formalização em torno da centralidade do complexo de Édipo e do binômio falo-castração ocupou lugar de destaque na história da psicanálise (FREUD, 1996; LACAN, 1995). O artigo em questão é “Inibições, sintomas e angústia” (FREUD, 1996), escrito e publicado já no período final da vida e obra do autor e que, portanto, apresenta uma teorização mais madura acerca, tanto dos sintomas, quanto da angústia e de suas causas.

Para nosso propósito, é conveniente que, de saída, apresentemos uma conceituação do termo trauma, o que permitirá promovermos mais detidamente uma análise da origem das patologias psíquicas – e do próprio trabalho psíquico.

 

Sobre o trauma

Freud abordou o tema do trauma psíquico já no período chamado ‘pré-psicanalítico’, com destaque para a obra que desenvolve em parceria com Breuer, os “Estudos sobre a histeria” (FREUD, 1996), onde parece clara a força da idéia de que o acontecimento de um trauma é condição de compreensão da etiologia de uma neurose. Sabemos também que, após deixar de crer na realidade factual do trauma, ou seja, de passar a levar em consideração a hipótese de que o trauma era fantasiado (FREUD, 1996), o tema do trauma só reapareceria como pedra angular do pensamento psicanalítico muitos anos depois, em “Além do princípio do prazer” (FREUD, 1996), para não mais ser dispensado da teorização psicanalítica sobre a origem do psiquismo, bem como sobre a origem das patologias psíquicas. Este importante conceito de trauma ou traumatismo desenvolvido por Freud, de acordo com a leitura de Laplanche e Pontalis, poderia ser compreendido da seguinte maneira:

Acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica.
Em termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e de elaborar psiquicamente estas excitações. (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001 p.522).

O problema das intensidades econômicas está devidamente colocado nesta definição, mas, ao nosso ver, a situação traumática precisa ser observada também pelo problema da relação entre o sujeito e o que ou quem lhe excita ou afeta. Parece ser esta a preocupação de Freud ao buscar compreender a origem da patologia na sedução traumática que o sujeito sofre de um outro, como podemos ler nos já citados “Estudos sobre a histeria” (op. cit.).

A busca da origem da patologia psíquica manteve-se em toda a sua obra, mesmo no período em que se considera que teria abandonado a teoria do trauma. Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1996) e no caso do ‘Homem dos Lobos’ (id., 1996) encontramos exemplos de teorizações desta origem que remetem a uma situação traumática – mesmo que Freud não tenha adotado o termo trauma nestes textos. Nos “Três ensaios” encontramos uma formulação de que é o investimento materno e conseqüente excitação de determinadas partes do corpo do bebê que criarão as zonas erógenas e a pulsão sexual neste mesmo bebê – e, portanto, sua vida psíquica é conseqüência de uma excitação provocada pelo contato com o outro. No caso do ‘Homem dos Lobos’ encontramos um Freud obcecado por encontrar a origem da patologia psíquica do sujeito, remetendo-se à tenra infância e à experiência passiva diante da cena primária de sexo dos pais que, indubitavelmente (segundo o autor), teria um caráter traumático uma vez que não é elaborada e produz efeitos patogênicos duradouros.

No entanto, como já dito, é em “Além do princípio do prazer” (op. cit.) que o conceito de trauma é assumidamente retomado e tem a sua força devidamente reconhecida. Ali, Freud remete o trauma à origem do próprio psiquismo – o aparelho mental, portanto, só existe por conta de algum efeito excitatório vindo de seu encontro com o meio. É importante que compreendamos o termo meio não como o espaço natural ou simplesmente a mãe, mas sim o conjunto total de excitações que invade os órgãos dos sentidos, bem como as excitações internas no corpo do bebê; somente com esta compreensão é possível ter em mente que tipo de encontro é o encontro traumático – é um encontro com o mundo. Digamos que o mundo diz respeito a tudo que afeta o sujeito e não somente ao que é representado ou simbolizado por ele. Este encontro com o mundo é traumático porque o bebê está passivo e ainda incapaz de reagir de modo a obter alguma satisfação. Como Freud já pensava em seu “Projeto para uma psicologia científica” (id., 1996), para o bebê encontrar satisfação, ele precisa do auxílio de um outro, de uma ação específica que encaminhe sua pulsão a uma descarga ligando-a a algum objeto – cria-se aí um trilhamento, um circuito pulsional. Em outras palavras, esta ação específica possibilitará as primeiras explorações e elaborações (mesmo que precárias) do mundo. Freud, deste modo, chama nossa atenção para a situação de desamparo e dependência do bebê em relação ao mundo, às excitações e à sua necessidade de elaborá-los.

A ação específica consiste, portanto, em alguma intervenção, ao mesmo tempo no bebê e no mundo externo cujo exemplo paradigmático vem da alimentação: ao escutar os gritos do neném, a mãe dá o seio supondo que aquele esteja faminto; a ingestão do leite satisfará a fome da criança. Reduzindo a excitação, através da ação específica, a mãe possibilitou à criança uma experiência de satisfação. O aparelho psíquico do bebê passará, a partir de então, a tentar repetir esta mesma experiência após seu registro mental. A experiência, no entanto, será registrada como prazerosa, além de satisfazer a fome. Deste modo, desencadeará o desejo e, assim, a vida psíquica.

Vejamos, agora, o artigo “Inibições, sintomas e angústia” (id., 1996). Nele há uma continuidade do estudo sobre o trauma de 1920, mas com algumas modificações importantes. Neste artigo, o enfoque econômico (das intensidades) do trauma ainda está presente, mas um olhar sobre o trauma como efeito de um encontro, de uma relação – tal como queremos abordá-lo aqui - é bem mais desenvolvido do que foi anteriormente. Ali, Freud busca compreender, entre outras coisas, qual situação psíquica é traumática. Segundo ele, o traumático implica alguma situação de perigo para o sujeito; para compreendermos o que o autor quer dizer com isso, é preciso ler a explicação que ele nos dá, em seguida:

Claramente, ela [a situação de perigo] consiste na estimativa do paciente quanto à sua própria força em comparação com a magnitude do perigo e no seu reconhecimento de desamparo em face do perigo – desamparo físico se o perigo for real e desamparo psíquico se for instintual [pulsional]. Ao proceder assim o indivíduo será orientado pelas experiências reais que tiver tido. (Freud, 1996, p.191).

Este trecho nos mostra que a situação de perigo é uma situação que se determina pela relação entre o eu e o mundo, onde uma avaliação que o primeiro faz do segundo denota sua necessária relação com este e sua incapacidade de dominá-lo; isto provoca a sensação de desamparo que, como Freud escreve adiante, ainda neste mesmo texto, é a própria situação traumática. O trauma, portanto, não pode ser dissociado da situação de desamparo. E como, em 1920, Freud escreveu que o efeito das pulsões sobre o aparelho psíquico é análogo àquele de um evento traumático exterior, podemos dizer, com justeza, que o desamparo é fundamental.

A passividade e a impotência diante da pulsão e do mundo – o desamparo – remetem, por sua vez, à dependência que o sujeito tem em relação a eles para viver. Trabalharemos, em seguida, mais detalhadamente esta relação entre desamparo e dependência, ao mesmo tempo em que problematizaremos a associação que se faz muito rapidamente entre desamparo e castração.

 

Desamparo e castração

O desamparo é, no texto publicado em 1926, compreendido mais como uma sensação decorrente da percepção de total dependência do mundo, do que o outro sentido que, costumeiramente, é empregado por alguns autores: a sensação de que falta alguém ou algo que proteja o sujeito, alguém ou algo em quem o sujeito crê se exercer uma potência fálica onipotente, alguém ou algo que tem alguma coisa que o sujeito não tem. Mesmo clinicamente, a leitura da sensação de desamparo como dependência do mundo faz mais sentido que a de que falta alguém ou algo onipotente: a elaboração da situação traumática que se processa na análise e a dissolução da psicopatologia se fazem menos com o reconhecimento de um objeto que venha suprir esta falta (o falo, por definição) do que pela aceitação da incapacidade de domínio sobre o mundo, e também o reconhecimento da dependência do sujeito em relação ao mundo em que vive. O que a psicanálise nos mostra em seu ensino é que, quanto mais o sujeito crê no ‘tampão fálico’ como solução para seu sofrimento, mais padece neuroticamente (e não só neuroticamente).

O falo, por sua vez, pode ser entendido como uma proteção do sujeito contra o mundo, não sem pagar um alto preço por essa proteção: o mundo reduz-se a uma simples constatação de presença ou ausência do falo, ou, em outras palavras, da garantia de prazer ou não. No entanto, o mundo é mais do que prazer, como Freud nos ensina ao introduzir em sua teoria a hipótese da pulsão de morte, desencadeadora de uma tensão angustiante, mais do que de desprazer ou prazer (id., 1996). Esta tensão angustiante é efeito da relação entre o eu e a pulsão de morte. Há um eu que quer proteger-se de excitações externas e internas, quer manter-se estável e repelir qualquer material incontrolado, desconhecido, novo, de um lado, e uma pulsão destrutiva que se acumula e ameaça a integridade deste mesmo eu. Em outras palavras, o mundo não pode ser todo reduzido às categorias de prazer-desprazer. Nele também está o novo, o estranho (id., 1996), o que não foi assimilado e que, em geral, é visto pelo eu como perigoso.

Tomemos as seguintes passagens de “Inibições, sintomas e angústia”, onde Freud pensa a produção de sintomas e o trabalho analítico sem qualquer remissão ao binômio falo-castração:

...preferimos dizer que os sintomas são criados a fim de remover o ego [eu] de uma situação de perigo. Se se impedir que os sintomas sejam formados, o perigo de fato se concretiza; isto é, (...) o ego [eu] fica desamparado em face de uma exigência instintual [pulsional] constantemente crescente – o determinante mais antigo e original da ansiedade [angústia]. (FREUD, 1996, p.168). (...) Quando na análise, demos ao ego [eu] assistência capaz de situá-lo em posição de levantar suas repressões [recalques], ele recupera seu poder sobre o id reprimido [isso recalcado] e pode permitir aos impulsos instintuais [pulsionais] que sigam seu curso como se as antigas situações de perigo não existissem mais. (id., p.178).

O trabalho analítico, como se pode ver, coloca o eu diante do desamparo, o obriga a se haver com os efeitos disruptivos do isso que colocariam este eu em perigo se continuasse acreditando que, através do recalcamento, poderia manter sua unidade narcísica alcançada através da imagem de completude fálica. Em outras palavras, o trabalho analítico remete o sujeito à sua dependência diante dos outros e do mundo e não de um objeto, uma solução. A crença egóica, importante na formação do narcisismo, na proteção contra os perigos do mundo através de um objeto – o falo - obriga o sujeito a recalcar o que não pode ser assimilado em nome de uma aposta na unidade psíquica.

O falo, introduzido na teoria freudiana em “A organização genital infantil” (FREUD, 1996), apresentar-se-á como imagem da completude, como oposto da castração e, por isso mesmo, servirá de referência ao eu narcísico para amar-se. O falo vem permitir uma maior compreensão do complexo de Édipo, interligando-o indelevelmente ao complexo de castração. Ele tornará possível a inscrição da diferença sexual: há aqueles que supostamente o têm, e aqueles que supostamente não o têm; no entanto, aqueles que o teriam podem perdê-lo e os que não o teriam, podem vir a tê-lo imaginariamente. Esta força mobilizante e estruturante do binômio falo-castração é de tal ordem que o mundo é ofuscado por sua luz, vindo mesmo, em casos graves, a desaparecer; está aí uma outra maneira de compreendermos o que quer dizer o ‘afastamento para a doença’.

Freud nos mostra, ainda em “Inibições, sintomas e angústia” (op. cit.), que o medo de castração, o medo do superego e o medo da morte são apenas tentativas de delimitar, circunscrever, elaborações primitivas do trauma, mas não são o traumático em si – este é o desamparo. Estar desamparado é estar submetido às pulsões, às intensidades do mundo; é um reconhecimento da pluralidade de forças que se exerce sobre o sujeito. Os três medos mencionados acima são tentativas subjetivas de se fazer crer que é preciso temer apenas uma coisa e que o reverso desta coisa resolve seu problema. Por exemplo: a idéia de falo resolveria o problema da castração, a expiação da culpa e a paz com o superego tornariam esta instância mansa, e a promessa de vida eterna resolveria o medo da morte.

Este tipo de solução simples não é mais possível quando não se trata mais de um problema, mas sim de uma pluralidade de excitações que não podem ser resumidas a apenas uma. A sexualidade humana, como nos explica Freud em seus “Três ensaios” (id., 1996), é perverso-polimorfa e a tentativa de submetê-la a uma única organização se dá sob a lógica do recalcamento e conseqüente produção de sintomas. A referência ao falo torna o prazer reconhecível apenas na experiência de completude, de resto haveria apenas desprazer, quando, de fato, a sexualidade infantil perverso-polimorfa indica a possibilidade do prazer parcial e não somente a lógica do ‘tudo ou nada’ do binômio falo-castração. Como pontua Márcia Arán, “o objeto para Freud faz diferença justamente na medida em que propicia uma experiência de satisfação, o que não quer dizer necessariamente uma experiência de completude” (ARÁN, 2006, p.123).

Desfazer a crença na unidade narcísico-fálica é afrouxar o desamparo da vinculação ao traumático para ligá-lo à dependência da heterogeneidade de forças que compõem o mundo. O desamparo não necessariamente tem de significar passividade; ele pode também ser compreendido como condição de ação e interesse no mundo, como bem mostra Joel Birman em “Mal-estar na atualidade” (BIRMAN, 2001).

Ora, uma vez que consideramos que a sexualidade humana é perverso-polimorfa e não pode ser reduzida à lógica fálica, podemos perceber que as possibilidades de prazer são restringidas por esta lógica, e não garantidas, como ela promete. A entrada da pulsão de morte na teoria psicanalítica também é outro modo de se mostrar como a lógica fálica é impraticável – a unidade nunca é alcançada já que há um trabalho constante, no aparelho psíquico, para desfazê-la, de modo que o prazer da completude fálica não é experimentado senão como fugidio, em perda. É somente no reconhecimento do prazer parcial que se obtém na relação com o mundo e no abandono de um mítico prazer total que o sujeito pode realmente se enriquecer através de situações diversas, sem temer grandes danos ao seu eu.

 

Sobre o prazer e a criatividade

Nossas reflexões nos levam à asserção de que a relação que o sujeito tem com o mundo não é de pura passividade ou apenas reativa, como algumas passagens de Freud sugerem (p.e.: FREUD, 1996); esta é a conduta defensiva do eu sob a lógica fálico-narcísica. Este eu toma o mundo como fonte de desprazer uma vez que a completude não se encontra nele – trata-se do eu do prazer-desprazer a que Freud alude em “Os instintos e suas vicissitudes” (id., 1996). Ainda de acordo com o que tratamos neste artigo, reconhecemos que é possível o eu abandonar esta relação com o mundo e desenvolver uma relação em que pode tanto ser afetado pelo mundo quanto modificá-lo, promovendo uma inserção mais complexa no meio, o que remete aos dois eus da realidade, mencionados, um, no artigo citado acima e, o outro, em “Além do princípio do prazer” (op. cit.). Há um eu da realidade não siderado pelo falo, pré-narcísico, que mantém-se aberto às excitações internas e externas, e um outro eu da realidade pós-narcísico que vem considerar os objetos mundanos – e não apenas o falo ou a si próprio – como possibilidades de algum prazer, um eu que, portanto, guia-se pelo princípio de realidade. Deste modo, é fácil perceber que o que temos chamado de meio é denominado por Freud de realidade, o espaço onde uma relação objetal se efetua. Levando-se em consideração que o objeto pode tanto causar prazer quanto desprazer, pode-se surpreender com ele, pois não é de todo controlável, mas é a possibilidade para algum prazer e para agir sobre o objeto.

O eu pode, em sua relação com os objetos, alterá-los e não apenas estar passivo diante deles. É o que se evidencia na atenção que Freud dá ao jogo, tanto em seu livro sobre os chistes (id., 1996), quanto no artigo “Escritores criativos e devaneio” (1996), assim como, mais uma vez, em “Além do princípio do prazer” (op. cit.). Nos três textos, o jogo será uma possibilidade de o eu, através de objetos e/ou palavras, transformar, ao mesmo tempo, as significações do mundo e sua própria economia psíquica, encontrando prazer onde não obtinha antes. Depreendemos disto que o mundo não é necessariamente hostil, ele pode também ser útil ao sujeito, na medida em que a interação entre os dois enriquece o eu, ao mesmo tempo em que abre espaço para a criatividade humana – a possibilidade de modificar o mundo em função de algum prazer.

O homem desamparado tem de ser criativo para lidar com as forças que agem a sua volta para que continue dependendo delas, mas que, ao mesmo tempo, se diminua (dentro do possível) seu sofrimento. O homem castrado, ao contrário, tem de recorrer ao falo para aliviar seu sofrimento, nenhum outro objeto lhe serve para nada; ele não se abre à experiência e, assim, perde sua criatividade e torna-se mortificado.

Deste modo, podemos dizer que a aceitação do desamparo que se exerce na análise não é a aceitação de que há um outro que me falta para que eu encontre o prazer sexual, mas sim a aceitação da alteridade radical, da impossibilidade do sujeito de se completar com algum outro e também a impossibilidade de submetê-lo ao seu domínio, às suas representações. Com esta aceitação, o sujeito se relacionará com os objetos do mundo com menos frustração e com mais criatividade, uma vez que não tomará o objeto pelo que já se espera dele (ou seja, que corresponda ao falo), mas sim pelo que nele o surpreende, pela aceitação de que não se pode dominá-lo e de que ele lhe é desconhecido, ou oferece algo a se conhecer.

Parece que, de certa maneira, vamos ao encontro de Donald Winnicott que se refere ao “viver criativamente” como indício de saúde (WINNICOTT, 1999b) – não bastaria que o sujeito “aceitasse a castração”, seria preciso ser criativo. O viver criativo opõe-se à submissão à realidade externa e se esta submissão ocorre, viver passa a significar um estéril e desanimado ajustar-se, adaptar-se a essa realidade. Trata-se do que este autor chamou de falso self (WINNICOTT, 1999a). A criatividade, sob este escopo, apontaria para algo além da produção de uma neurose e além da submissão à realidade; assim, pode-se dizer que com um “viver criativo” evitar-se-ia as defesas – entre elas o recalque - que impedem a livre expressão do que este autor chama de verdadeiro self, que acreditamos ser possível aproximar da idéia freudiana de um eu da realidade.

Acreditamos que, ao nos apropriarmos da contribuição de Winnicott desta maneira um tanto infiel à sua obra, será possível fazermos algo que o próprio Winnicott e os winnicottianos não reconheceriam como correspondente ao seu pensamento: poderemos clarificar a relação entre criatividade e desamparo1.

Para este autor, o bebê só se sente seguro e instrumentalizado para explorar o mundo criativamente na medida em que sua relação com a mãe é vivida com confiança, e não de forma traumática como as invasões e/ou ausências maternas drásticas. Acrescentaríamos que a situação de confiança na mãe é fruto das inúmeras repetições da ação específica sob os auspícios maternos. A mãe é a primeira proteção frente às excitações internas, ou seja, frente ao desamparo, mas é ela também quem possibilita ao bebê uma postura ativa frente ao mundo. Este é o caso de uma mãe suficientemente boa, caso contrário, a situação seria vivida como traumática, como um breakdown (WINNICOTT, 1989). Em Winnicott o trauma é destrutivo, não constitutivo do aparelho psíquico; é, também, algo que pode ser evitado; mas em Freud, desamparo e trauma seriam a base de qualquer vida psíquica. Ora, esta oposição radical entre os dois autores não pode ser eliminada, mas, talvez, possamos relativizá-la se nos detivermos um pouco mais sobre o que é a mãe suficientemente boa.

Cabe, primeiramente, ao tipo de relação que se instaura entre mãe e bebê a proeminência do vínculo a um fechamento fálico que sirva de ‘tampão’ ao traumático, ou a proeminência do vínculo criativo, no qual a relação não se fecha em si mesma e o mundo é explorado como promessa de prazer através dos recursos para a elaboração garantidos por esta relação primária; é a segunda mãe que deveria ser chamada de mãe suficientemente boa. A apresentação da alteridade, tanto no mundo quanto no próprio bebê, feita pela mãe que não se fecha na relação com ele, permite-lhe reconhecer sua dependência frente às inúmeras forças que o impulsionam e o forçam a encontrar meios criativos de lidar com elas. Em nossas palavras: permite-lhe experimentar o desamparo (no sentido freudiano frente às excitações, mas não de forma traumática e sim de forma criativa, explorando o mundo e trocando afetos e ações com este. Portanto, é preciso esclarecer que o desamparo não é efeito de falta de amparo materno; o desamparo é uma sensação diante das pulsões e dos estímulos externos que, através de determinado tipo de auxílio materno – (o de manutenção da abertura a estas excitações e não o de fechamento fálico) pode servir de motor da criatividade humana.

Desta maneira, um sujeito se submete ao binômio falo-castração ou se abre para uma vida mais criativa dependendo do que o meio – e, em Winnicott, especialmente, a mãe – lhe dispôs como possibilidades de constituição de si.

A crença de que o traumático reduz-se ao medo da castração impediria que o sujeito em questão saísse da lógica de relações promovida pela idéia de posse do falo: a saber, uma lógica de frustração diante da constatação de que, tanto os objetos do mundo, quanto o próprio eu não correspondem à completude garantida por aquele objeto imaginário; lógica esta que faz padecer o neurótico, mas que lembra bastante, ao mesmo tempo, os quadros de melancolia (FREUD, 1996) e de falso self (WINNICOTT, 1999a), bastante próximos, por um lado, das neuroses traumáticas, por outro, das neuroses narcísicas.

O sujeito que não se abre à experiência do mundo (seja esta uma experiência da exterioridade ou da interioridade), a tem como ameaçadora. No entanto, ela só é ameaçadora quando o sujeito crê não ter nada a ganhar, apenas a perder. Quando a unidade não é mais considerada como o único prazer a se buscar, a abertura não causa tanto medo - como ocorreria sob os cuidados de uma mãe suficientemente boa.

 

Conclusão: quanto à posição do analista

Como parte final deste artigo, escolhemos salientar a importância da discussão travada aqui, demonstrando as conseqüências de nossas reflexões sobre o que se chama formação do analista.

Tendo em conta o que foi discutido neste artigo e aplicando-o não só à posição do paciente, mas também à do analista, podemos concluir que o psicanalista que tem sua escuta centrada nas vicissitudes da relação do sujeito com o falo provocará uma análise sem criatividade, sem reconhecimento da alteridade e mantenedora da sintomática presente. Se sua escuta se dirige apenas a detectar a estrutura que se montou na resolução do Édipo e do complexo de castração, ou seja, a relação que tal sujeito empreende com o binômio falo-castração, será apenas isto o que ele encontrará: um psiquismo que vive a repetir uma estrutura, no qual dificilmente perceber-se-á criatividade. Por outras vias, parece ser semelhante a crítica a certa forma de fazer e pensar a psicanálise desenvolvida por Gilles Deleuze e Félix Guatarri no célebre “O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1” (DELEUZE & GUATTARI, 2010). Ali, estes autores nos mostram que o complexo de Édipo e o binômio falo-castração não são o núcleo do Inconsciente, mas, ao contrário, servem para recalcar a potência produtora, desejante, criativa (esquizofrênica, nos termos dos autores) daquela instância.

De fato, o analista siderado pelo binômio falo-castração não só impedirá ao analisando a emergência de sua criatividade, mas ele próprio estará agindo como um analista pouco criativo, que sempre busca escutar o mesmo e, deste modo, estará muito distante de realizar uma atenção uniformemente suspensa (FREUD, 1996). Isto somente não acontecerá se a lógica do binômio falo-castração, na elaboração, der lugar à aceitação da experiência de desamparo na causalidade psíquica do paciente. Por isso, é preciso também reconhecer o desamparo como fundamental à própria experiência da escuta analítica para que o analista possa estar aberto ao novo, reconhecer pluralidades no discurso do paciente e não simplesmente ouvir a eterna referência ao fechamento. Só assim haverá criatividade, produção desejante, saúde ou, simplesmente, psicanálise.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Conde de Baependi, 124/401 - Laranjeiras
22231-140 – Rio de Janeiro/RJ
Tel.: (21)2179-7503 / 9813-6251
E-mail: pedrocattapan@ig.com.br

Recebido: 28/03/2011
Aprovado: 15/04/2011

 

 

Sobre o Autor

Pedro Cattapan
Psicólogo pela UFRJ. Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Doutor em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ. Psicanalista. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBEP). Professor Adjunto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense-PURO.

 

 

1Nossa infidelidade está em relacionar os conceitos winnicottianos com a idéia de um desamparo fundamental. Em Winnicott, o desamparo só ocorreria quando a mãe não é suficientemente boa, ou seja, em casos excepcionais, e ele seria um entrave à criatividade.