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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.35 Belo Horizonte jul. 2011

 

 

A maternidade é uma forma de sublimação?1

 

The maternity is a kind of sublimation?

 

 

Sophie de Mijolla-Mellor

Tradução: Márcia Pietroluongo e Marília Etienne Arreguy

Quatrième Groupe de Paris
École Doctorale de Recherches en Psychanalyse et Psychopatologie

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo parte de uma contraposição das definições do conceito de sublimação com as construções sobre a feminilidade, presentes na obra de Sigmund Freud. Busca situar o “enigma” freudiano da feminilidade em sua época, remetendo seus ensinamentos àquilo que se pode validar na atualidade. Para além de uma leitura canônica, a autora, especialista na conceituação sobre a sublimação, põe em questão algumas proposições facilmente tomadas por uma leitura superficial da obra, conduzindo o leitor a uma reflexão dialética e inovadora da relação entre esse conceito e a parentalidade, sobretudo no que concerne à sexualidade materna. Ampliando o escopo das saídas sublimatórias na mulher, discorda de um destino exclusivamente masculino no que concerne a sublimação, dado o complexo de masculinidade como única saída sublimatória para o homossexualismo recalcado na mulher. A autora leva, pois, em conta, a economia pulsional e uma análise metapsicológica, não se restringindo apenas a uma crítica feminista da posição freudiana. Com essa exegese, formula, então, uma nova forma de conceber a relação entre feminilidade e sublimação que ilumina o entendimento teórico das funções da maternidade, situando a sublimação ao lado da ternura e do respeito à alteridade.

Palavras-chave: Sublimação, Feminilidade, Maternidade, Sexualidade incestuosa, Alteridade.


ABSTRACT

The present paper illustrates a confrontation between the definitions of sublimation, with some constructions about femininity presented by Sigmund Freud. It intends to situate the “enigma of femininity” in the Freudian’s epoch, in order to validate some parts of his knowledge in present time. For beyond a traditional reading, the author – an expert in the concept of sublimation’s – puts in check some propositions easily taken for granted by a superficial reading of Freud’s texts. She drives the reader throw a dialectical and pioneering reflection within sublimation and parentality, in particular as concerning the maternal sexuality. Opening the spectrum of sublimatory issues for the woman, the author disagree that only a masculine destiny for sublimation would be possible, given the masculine complex as the only sublimatory issue for repressed homosexuality in the woman. The author takes into account the “economical” point of view and a metapsychological analysis, but she doesn’t remain fixed in critical feminist statement about Freud’s position. Through this exegesis, she formulates a new manner for understanding the relation among femininity and sublimation that enlightens the theoretical comprehension of the maternal function, putting sublimation besides tenderness and the respect to otherness.

Keywords: Sublimation, Femininity, Maternity,  Incestuous sexuality, Otherness.


 

 

O que é a Sublimação?

Segundo suas origens latinas, a sublimação designa essencialmente um movimento de elevação (sub aqui tomado no sentido de “acima”, análogo a super, e não como “abaixo”, sentido oposto que ele também pode ter), acima do “lodo” (limus) ou que “implica a passagem de um limiar ou de um “limite” (limen ou limes).

Os alquimistas da Idade Média confirmarão esse uso, fazendo da sublimação uma operação que consiste em permitir, sem passagem pelo estado líquido, o retorno ao estado sólido de um corpo que se tornou volátil com a ajuda de um aparelho: o “sublimatório”. Ao chegar à parte superior (sublimen) desse recipiente fechado, o corpo volátil se fixa e se torna de novo sólido.

É preciso ter um coração puro para aceder à transformação alquímica, o que conota também moralmente essa noção.

A eliminação da fase líquida situa o processo em oposição às imagens do nascimento e do meio uterino para fazer dele uma operação de mestria misteriosa, secreta e reservada aos homens, e que se opera no “ovo dos Sábios”, onde a pedra filosofal é submetida a um cozimento. 

Além disso, a elevação realizada pela “Grande Obra” remete à ambição, amplamente ilustrada por Leonardo da Vinci de se subtrair à gravidade sem, entretanto, se dissolver no ar, voar como um pássaro e, mais prosaicamente, comandar e controlar a ereção.

A sublimação na psicanálise é herdeira dos complexos harmônicos dessa noção, ainda que seja para deles se desfazer como fará Freud, renegando a sublimação alquímica em favor de uma Sublimierung, cuja definição metapsicológica ele tentou aperfeiçoar ao longo de toda sua obra.

Mas é através do romantismo alemão, em particular de Goethe, que faz da sublimação uma operação de transformação do real dos acontecimentos e dos sentimentos própria à criação poética, que Freud encontrará a noção de sublime. Na  Subliemierung se encontrarão diversos aspectos dessa herança nocional:

– A ideia de uma operação que implica não um simples aumento da intensidade, mas uma modificação qualitativa profunda.

Considerarei aqui o que faz com que uma mulher passe do desejo de gravidez ao prazer de ter um filho e de educá-lo, com tudo o que isso implica como frustração frente à imagem de uma relação idealizada mãe/filho.

– O lugar do trabalho do negativo, tal como ele se encontrará na barragem contra o movimento espontâneo da pulsão, que a leva a uma derivação forçada. Situarei o movimento espontâneo na ascendência materna sobre esse pedaço dela mesma que é o filho e, em particular, o bebê.

– O tema romântico do ultrapassamento de si mesmo, que levará Freud, na segunda parte de sua obra, a situar a sublimação numa negociação específica do narcisismo. É aí que o narcisismo materno se encontra posto à prova pelo filho real e seus limites.

Vou lhes falar hoje, portanto, da capacidade que cada mulher tem de sublimar, enquanto mulheres e enquanto mães.

Freud, quanto a ele, não acreditava muito nisso, mas o que é mais surpreendente é que ele também não vê na maternidade uma forma de sublimação do laço amoroso.

Começarei, portanto, examinando com vocês os motivos que o levam a essas considerações negativas sobre a sublimação pelas mulheres, perspectivas essas que nos são difíceis de partilhar, mesmo recolocando-as na época de Freud, que não é mais a nossa.

Considerarei, num segundo tempo, se a maternidade constitui uma forma de sublimação, e de que forma de pulsão se trata.

 

As mulheres impedem os homens de sublimar?

Freud (1996) escreve em O Mal-estar na Civilização:

Já que o homem não dispõe de quantidades ilimitadas de energia psíquica, tem que realizar suas tarefas efetuando uma distribuição conveniente de sua libido. Aquilo que emprega para finalidades culturais, em grande parte subtrai das mulheres e da vida sexual. Sua constante associação com outros homens e a dependência de seus relacionamentos com eles o alienam de seus deveres de marido e de pai. Dessa maneira, a mulher se vê relegada a segundo plano pelas exigências da civilização e adota uma atitude hostil para com ela (Freud, 1996, p.109).

Poderíamos nos contentar em ver nessas palavras a expressão de uma constatação banal, concernente aos limites a que todo sujeito se vê confrontado em seus investimentos, formulados, muito frequentemente, em termos de “tempo disponível”. Trazida para o nível do microcosmo familiar, essa situação toma o caráter de uma escolha entre os investimentos conjugais ou familiares e aqueles que se voltam para o externo, no trabalho e na vida social a ela ligada.

A atividade sublimada pode, então, se tornar objeto de conflito como se se tratasse de uma infidelidade conjugal e o cônjuge pode se sentir excluído. Excetuando-se esse pequeno detalhe que, hoje em dia, concerne tanto às mulheres quanto aos homens (o que remete ao problema da relação com os filhos), essas observações de Freud não parecem contestáveis. Entretanto, limitando-as a uma perspectiva tão estritamente fenomenista, deixa-se escapar a fantasia que as subtende, que é uma daquelas que se liga mais intimamente à noção de sublimação. Essa perspectiva se formula em termos de uma sublimação “em detrimento” da vida sexual.

Teríamos um exemplo disso nesse diálogo extraído de um romance de Alberto Moravia:

Hesitei um instante e depois: Nós nos amamos todas as noites, não é? Ora, eu sinto que toda a força de que precisaria para escrever, eu a despendo com você. Se isso continuar, jamais conseguirei finalizar esse trabalho (Moravia, 1972, p.41, tradução nossa).

As preocupações do herói poderiam ser esquematizadas na figura dos vasos comunicantes onde o que é dado a um é retirado do outro, quer se trate, aliás, de uma ameaça de empobrecimento energético, porque o homem se esgotaria em benefício da mulher, ou de uma variação do nível da energia sublimada que abaixaria ou subiria em função da satisfação sexual ou de sua retenção.

Vê-se, aqui, se exprimir a fantasmatização própria à angústia diante da mulher vampira, castradora, e o ressurgimento de uma problemática pré-genital anal (a angústia de empobrecimento) e até mesmo oral (angústia de ter destruído o seio, interiorização do objeto esvaziado e mutilado, etc.)

Mas, além do conteúdo fantasmático dessa ligação entre a abstinência sexual e a possibilidade de sublimar, é preciso se perguntar sobre a justificação metapsicológica que Freud dá a isso. O problema econômico da sublimação consiste em conseguir tomar emprestada a energia libidinal de uma fonte que seja sua produtora e desviá-la para descarregá-la de um modo indireto.

É, pois, antes em termos de constituição de um estoque de energia libidinal que é preciso considerar o processo, e se a noção de descarga intervém é de preferência como aquilo que é preciso evitar a todo preço, a fim, precisamente, de preservar as reservas.

Assim, é preciso que haja em algum lugar abstinência ou renúncia, senão o fluxo libidinal só poderia escoar pela via mais direta possível. De que tipo de abstinência se trata, ou ainda, de que satisfação sexual o sujeito sublimante deveria se abster? Essa abstinência é correlativa de um recalque? Não se pode, por outro lado, conceber uma economia pulsional que não funcionaria no modo da gestão de um bem limitado, mas a partir de uma possibilidade de neogênese da energia sexual? Essas são várias das questões às quais não é possível responder sem nos interrogarmos, primeiramente, sobre a maneira pela qual se constitui esse estoque libidinal suscetível de dar vazão a sublimações.

Se considerarmos a abstinência sexual como o resultado de inibições neuróticas, ela não parece apta, segundo Freud, a criar as condições de uma capacidade de sublimar, o que se afina perfeitamente com essa concordância entre a vida sexual e a atividade em todas as suas formas, inclusive nos campos abstratos. O exemplo de Leonardo da Vinci dado por Freud mostra os efeitos nefastos que a abstinência sexual pode ter sobre a sublimação quando ela não se funda numa renúncia, mas num recalque. Já se sabia que ela só podia agravar o estado do neurótico, pois (...) Quanto maior a disposição de um indivíduo para a neurose, menos ele tolerará a abstinência (Freud, 1996, p.109).

Com efeito, a frustração não o leva à busca de objetos ou atividades sublimadas, porém o ancora mais no conflito, o que acarreta diversas consequências como a paralisia progressiva da atividade. Portanto, a abstinência sexual só liberta novas forças para as sublimações na medida em que a capacidade de sublimar pré-existe. É aí somente que ela não é geradora de angústia, o que Freud exprime de uma forma invertida nessa passagem da Conferência XXV – A ansiedade – das Conferências Introdutórias sobre Psicanálise:

Naturalmente, a abstinência sexual, atualmente recomendada com tanta ênfase pelos médicos, apenas tem a mesma importância na geração dos estados de ansiedade quando a libido, impedida de encontrar uma descarga satisfatória, é correspondentemente forte e não foi utilizada, em sua maior parte, pela sublimação (Freud, 1996, p.403).

Para ele, o processo sublimatório não poderia controlar a totalidade da libido. É preciso, pois, conservar uma possibilidade de descarga pela satisfação erótica direta, mas essa possibilidade se mostra, em contrapartida, mais ou menos necessária segundo a atividade profissional do sujeito.

Que a sublimação da libido não deva (ou não possa) ser total parece uma ideia relativamente evidente, e se ele não apenas se detém nela, mas volta a ela várias vezes, é em oposição à exigência da moral sexual “civilizada” que faria questão, ao contrário, de um grau sempre crescente de sublimação, aplicando, além disso, essa exigência a todo mundo indiferentemente.

Freud vai distinguir dois aspectos:

– por um lado, o processo de sublimação é limitado;

– por outro, ele é tanto maior quando se tem que lidar com uma pulsão sexual forte, em particular se ela for recalcada;

Em “Moral sexual civilizada”, Freud, ao falar da sublimação, escreve: “Entretanto, não é possível ampliar indefinidamente esse processo de deslocamento, da mesma forma que em nossas máquinas não é possível transformar todo o calor em energia mecânica” (Freud, 1996, p.174). Não se trata de retirar energia com finalidades sublimatórias de uma libido inutilizável, porque barrada pela condenação moral, mas da quantidade de libido que subsistiria depois que o processo de civilização impôs sua norma. Perspectiva certamente polêmica que evoca o apólogo do cavalo de Schilda (Freud, 1996), cuja ração de aveia é cotidianamente diminuída, esperando-se que ele continue, contudo, a oferecer os mesmos bons serviços, até que finalmente morra.

Essa crítica ao “idealismo” no sentido de uma recusa em considerar a necessidade de satisfação direta supõe a existência de uma “necessidade” de satisfação sexual. Tais perspectivas fazem sonhar, pois sua rigidez mecanicista não deixa espaço para nenhuma passagem da esfera da sublimação àquela da satisfação sexual; no máximo é preciso levar em conta o caráter mais ou menos imperativo da necessidade sexual, a fim de sublimar em paz.

Estamos muito longe dos refinamentos do amor cortês e menos ainda das performances do tantrismo!

De toda forma, a capacidade de sublimar não constitui a maneira de ser de todo mundo e, em particular, não dos neuróticos.

Em seu texto Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, Freud (1996) lembra que:

“Nem todo neurótico possui grande talento para a sublimação; pode-se presumir que muitos deles de modo algum teriam caído enfermos se possuíssem a arte de sublimar seus instintos. Se o pressionarmos indevidamente no sentido da sublimação e lhes cercearmos as satisfações instintuais mais acessíveis e convenientes, geralmente tornar-lhes-emos a vida ainda mais árdua do que a sentem ser, de qualquer modo” (Freud, 1996, p.132).

Se a capacidade de sublimação aparece como uma realização que é desviada pelo excesso de neurose, ela também não é indiferentemente repartida entre os indivíduos sãos, e a relação entre a sublimação possível e a atividade sexual necessária oscila naturalmente (muito) entre os diferentes indivíduos, e também segundo suas profissões:

É difícil conceber um artista abstinente, mas certamente não é nenhuma raridade um jovem savant2 abstinente. Este último consegue por sua disciplina liberar energia para seus estudos, enquanto naquele provavelmente as experiências sexuais estimulam as realizações artísticas (Freud, 1996, p.181).

Esse texto adquire um relevo particular, se pensarmos que ele foi escrito antes de seu estudo sobre Leonardo da Vinci, que realiza precisamente esses dois tipos de sublimação, e que, na imagem do jovem cientista que sublima, Freud podia também ver ele mesmo. No caso de Leonardo da Vinci, artista e cientista, o impacto da abstinência sexual sobre a capacidade criativa não é positiva:

“Mas logo encontramos a confirmação de nossa experiência, isto é, que a repressão quase total de uma vida sexual real não oferece as condições mais favoráveis para o exercício das tendências sexuais sublimadas” (Freud, 1996, p.137).

Vê-se, portanto, que o ponto de vista freudiano que funda a sublimação sobre uma certa renúncia sexual não é compatível com a feminilidade que, ao contrário, ele considera ser defensora dos interesses do amor e, portanto, da reprodução da espécie.

Bem longe de uma imagem sublimada da relação amorosa, tal como os poetas podem descrevê-la, que faz uma única coisa da união dos corpos e daquela das almas, Freud considera que as mulheres impedem os homens de sublimar tranquilamente.

Seria preciso considerar que a sublimação lhes seria aberta na relação com o fruto da relação amorosa, ou seja, com o filho? Considerarei essa questão a partir do questionamento da capacidade materna de sublimar a relação narcísica que a liga a seu rebento.

 

O amor sublimadoda imagem de si no outro

Sublimar a libido investida num objeto eleito a partir de uma escolha narcísica não se confunde absolutamente com a sublimação da libido narcísica.

O objeto amado ocupa então o lugar do Eu (Moi) do passado infantil, ao passo que o Eu adulto está inconscientemente identificado à mãe. Permanece-se, portanto, no campo da libido objetal e não há sublimação, uma vez que o objeto se contenta em substituir o Eu.

Examinarei, aqui, o estatuto do amor parental, e mais particularmente o da mãe, na medida em que o filho é definido como o herdeiro desse narcisismo infantil de que os pais tiveram que fazer o luto.

Mais particularmente, pode-se perguntar por que Freud jamais viu nisso uma sublimação, pois a inaptidão feminina inata que ele atribui às mulheres nessa matéria talvez tenha podido ter aí uma exceção3.

Três argumentos principais podem ser retirados do dito, no mínimo estranho, de Freud, algo que é preciso evidentemente recontextualizar em sua época.

– O primeiro e mais antigo atribui um lugar importante às circunstâncias externas da educação e se resume ao “medo de pensar” que é imposto à menina e que ela aceita por receio de perder sua feminilidade. A via principal da sublimação, a da investigação, lhe é, desde então, inacessível.

– O segundo é, de fato, uma consequência direta da essência da feminilidade: a hostilidade em relação aos laços sociais; o que seria um privilégio da sublimação homossexual masculina.   Há uma espécie de filosofia biológica de Freud a esse respeito, na medida em que é a função da feminilidade na transmissão da vida que se encontra diretamente colocada em causa.

– O terceiro argumento é de natureza estrutural e concerne à constituição do Superego nas mulheres. Ele coloca a questão do laço entre a sublimação e as instâncias ideais. 

Sabe-se que a feminilidade não é, segundo ele, um destino biológico, mas a saída possível de um desenvolvimento frequentemente árduo que constitui a terceira das direções possíveis do desenvolvimento da menina após a descoberta da castração, as duas primeiras sendo a inibição e a inversão no contrário, na forma do complexo de masculinidade. A feminilidade seria, então, um equivalente de sublimação? Certamente não, e Freud vê aí uma realização “normal”, e não o tipo de desenvolvimento “mais raro e mais acabado” que a sublimação representa para ele.

Entretanto, o fato de que a feminilidade ocupa um lugar de alguma forma simétrico e, sobretudo, que seja o resultado de um longo processo de maturação – Freud dirá repetidas vezes que a feminilidade parece esgotar as possibilidades de mudança da psique – permite compreender melhor porque feminilidade e sublimação podem ser excludentes uma da outra.

O desenvolvimento psicossexual dos seres de sexo feminino segue duas vias diferentes e, talvez, opostas.

A primeira continua seu caminho no pólo masculino, ou seja, fálico, da bissexualidade, e pode incluir a sublimação.

A segunda inventa um modo muito diferente de funcionamento que é a feminilidade. Ora, esta não parece sublimável, nem nos homens a que conduz para uma posição de submissão masoquista, nem nas mulheres que ela encerra na busca de um laço de amor e de proteção.

Ali onde o menino transforma em identificação e, portanto, sublima as tendências libidinais pertencentes ao complexo de Édipo, a menina inverte a finalidade (esperar de um outro o pênis em vez de possuí-lo) ou desliza de um objeto a outro, equivalente no inconsciente.

A feminilidade, tal como a concebe Freud, repousa na identificação com o objeto do desejo do pai.

Quanto ao narcisismo feminino, seu destino parece inseparável da acessão à maternidade que não constitui, para ele, uma forma de sublimação, mas a perpetuação do investimento narcísico por intermédio de outro objeto.

Ligando suas observações à feminilidade e não às mulheres em sua constituição bissexual, Freud faz um curto-circuito nas objeções possíveis. A questão se resume assim: por quais organizações pulsionais um ser de sexo biológico feminino chega a privilegiar em si-mesmo um funcionamento de tipo feminino? A sublimação é levada em consideração nessa evolução, pois ela se apresenta, a todo o momento, como a outra escolha possível.

A intelectualidade implica que a menina tenha preferido se opor como rival aos ideais paternos em vez de se submeter a eles, o que pode ser a maneira mais segura de desposá-los, mas a sublimação aparece como uma via indireta de satisfação e, portanto, menos fácil. Isso era ainda mais verdadeiro na época de Freud, na medida em que atingir realizações sociais e profissionais não entrava nos projetos que os pais podiam ter para suas filhas.

Ele repete tal ponto de vista, quando escreve para Martha em 1883:

Creio que todas as reformas legislativas e educativas fracassarão em consequência do fato de que, bem antes da idade na qual um homem pode se assegurar uma situação na sociedade, a natureza decide o destino de uma mulher dando-lhe a beleza, o charme e a bondade (Freud, 1966, nossa tradução).

O narcisismo feminino não é concebido por Freud como uma promessa de elaboração sublimatória. Seu destino parece se limitar ao desejo de ser amada ou de se prolongar no amor pelo filho.

E o fato de que o desejo de pênis da mulher possa ser trocado por um substituto não sublimado constitui para a mulher uma escolha que vai desviá-la da sublimação bem mais eficazmente que qualquer espécie de interdito. Essa troca, repousa na equivalência inconsciente entre pênis e filho, mas, entretanto, não significa que a evolução para a feminilidade que conduz ao desejo do homem e ao desejo do filho seja fácil, muito pelo contrário.

A difícil acessão à feminilidade parece, segundo Freud, capaz de esgotar as possibilidades da mulher, que encontra assim seu destino psicossocial fixado bem antes daquele do homem. A mulher só chegaria à feminilidade após um longo período, quando alcança a maternidade e pode novamente se deparar com as identificações pré-edipianas com a mãe. O homem, por sua vez, não precisaria de tantas modificações em suas identificações e investimentos, pois passaria diretamente da escolha de objeto edipiano para o objeto sexual genital adulto.

Essa diferença é tão grande que Freud fala de uma “diferença de fase fisiológica” e esse destino libidinal tão rapidamente adquirido pelo homem é, ao mesmo tempo, menos fixo e, portanto, mais suscetível de evolução (1996). Lenta maturação que não parece atravessada, segundo Freud, pela possibilidade de aceder a finalidades sublimadas, e oscila entre a realização libidinal e o fracasso neurótico, manifestação de ressurgimentos de antigas posições libidinais. Essa afirmação freudiana não leva em conta as diversas formas do sentimento amoroso e permanece tributária de uma imagem do feminino hoje bem em desuso. Pode-se, também, pensar que o investimento do filho “às custas” do narcisismo materno constitui mesmo uma forma de sublimação, quando a mãe pode reconhecer no filho outra coisa que uma reedição dela própria.

Dizer que a escolha sublimatória implicaria que as finalidades e sua transposição em equivalentes inconscientes não sejam limitados a desejos sexuais ou maternos faz aprofundar a análise da economia desses desejos.

Resta que a possibilidade de que a sublimação se desenvolva permanece tributária da existência de uma barragem, assegurando ao fluxo libidinal uma força suficiente para efetuar o trajeto indireto que leva à satisfação pulsional por finalidades que não são aquelas da satisfação imediata.

Mas essa possibilidade deveria ser apresentada de maneira suficientemente precoce, pois a decepção que um sujeito pode encontrar, homem ou mulher, na realização desses desejos não basta para incitá-lo a sublimar.

Freud não considera outra saída a não ser a neurose, quando afirma que

“(...) as mulheres (...) embora possam encontrar um substituto adequado do objeto sexual no filho que amamentam, mas não nas crianças maiores (...) ao sofrerem as desilusões do casamento contraem graves neuroses que lançam sombras duradouras sobre suas vidas” (1996, p.180).

Seria preciso, inversamente, que o desejo de possuir um pênis tenha podido, ao menos parcialmente, se transpor “desde a origem” em identificação com aquele que era seu portador, para que esse desejo pudesse, a seu turno, se sublimar em alguma atividade considerada masculina. Freud não exclui a possibilidade disso quando ele escreve:

O desejo de ter o pênis tão almejado pode, apesar de tudo finalmente contribuir para os motivos que levam uma mulher à análise, e o que ela pode realmente esperar da análise – capacidade de exercer uma profissão intelectual, por exemplo – amiúde pode ser identificado como uma modificação sublimada desse desejo reprimido [recalcado] (Freud, 1996, p.125).

A identificação com o analista, passando à frente do desejo transferencial em sua forma diretamente sexual, ofereceria à mulher adulta uma possibilidade de acesso a esse tipo de profissão, inclusive, a de analista.

No mesmo texto, Freud salienta que o funcionamento bissexual na mulher lhe oferece um acesso à sublimação, mas seria um erro, entretanto - como parece haver aí um convite a essa formulação - conceber uma espécie de clivagem entre o masculino sublimável da mulher e seu feminino sempre ligado a satisfações diretas.

De fato, a análise mostra frequentemente que um dos pólos deve funcionar para permitir que o outro exista e se subtraia à inibição neurótica. O “enigma” da feminilidade, se ele existe, repousaria nesse duplo funcionamento, frequentemente contraditório, da bissexualidade na mulher.

O narcisismo feminino evolui para escolhas de objeto cujo êxito maior está naquele do amor que a mãe tem pelo filho, mas ele não parece apto a se sublimar como a relação objetal de origem narcísica nos homossexuais.

Encontraríamos aí uma confirmação suplementar da necessária presença de um obstáculo à realização de desejo para que o fluxo libidinal dê um salto para a derivação sublimatória, pois o homossexual não pode jamais reproduzir totalmente a relação mãe-filho que ele conheceu na escolha que fez de um jovem homem parecido com seu Eu antigo.

Em contrapartida, mesmo se o laço que a une a seu filho evolui depois, a mulher pode, na maternidade, gozar durante um período limitado com uma troca de amor fantasiado semelhante ou superior àquele que ela imagina ter vivido (ou lamenta não ter vivido) quando de sua ligação pré-edipiana com a própria mãe.

A possibilidade de transpor de maneira satisfatória sua escolha de objeto parece justificar que ela não procure sublimá-lo em laço social e que ela se limite a realizações mais imediatas.

De maneira mais geral, pode-se dizer que os laços entre pais e filhos seriam de natureza sublimada?

No que concerne ao filho, como se disse, é no período dito de “latência” que se situa o início dessa sublimação na forma da ternura, mas nesse caso ela se limita a uma atenuação, ou seja, a finalidade sexual não busca mais se realizar e se contenta com sucedâneos ou metáforas.

Nos Três ensaios sobre a sexualidade, a propósito dos sentimentos ternos que derivam para o filho de uma libido incestuosa inibida em suas finalidades, Freud (1996) evoca um processo gerador de sentimentos que ele designará como sublimados. Mas é a operação de recalque que é determinante e que torna inutilizáveis as primeiras escolhas de objeto edipianas:

Seus alvos sexuais foram amenizados e agora representam o que se pode descrever como a corrente de ternura da vida sexual. Somente a investigação psicanalítica pode demonstrar que, por trás dessa ternura, dessa veneração e respeito, ocultam-se as antigas aspirações sexuais, agora imprestáveis, das pulsões parciais infantis (1996, p.189).

Entretanto, a inibição da realização pelo ato sexual está bem longe de uma diminuição e condiciona antes as condições de uma retomada ou de um prolongamento erótico, e o amor cortês como o erotismo em geral mostra em que essa inibição reforça o desejo.

Assim, mais do que uma atenuação, trata-se, pois, de uma renúncia total que caracterizaria a ternura, conotada do lado parental mais do que no filho, pois é a eles que cabe a tarefa e a capacidade de impor o recalque dos desejos incestuosos partilhados, o que lhes é frequentemente impossível se seus próprios pais falharam nisso.

O trabalho de sublimação se situaria, desde então, no respeito que os pais devem a seu filho para chegar a considerá-lo como uma pessoa integral e não como seu produto, condição para que eles, por sua vez, aprendam os limites que são devidos ao outro. A diferença entre a regra tal como será aprendida numa comunidade, escolar ou outra, ou em família, se deve precisamente à intensidade afetiva e sexual nesse último caso que lhe dá um sentido outro do que aquele de uma norma geral.

Mas para podermos considerar que a sexualidade entre pais e filhos é “sublimada”, ou não, devemos antes considerá-la “inibida quanto à finalidade”, ou seja, recalcada? Tudo o que é designado pelo termo “incestuoso” (Racamier, 1995) nos mostra em sua banalidade a forte presença da sexualidade, sobretudo se se trata da sexualidade da mãe, porque ela é mais facilmente tolerada pelo fato dos contatos – mas também das intrusões – que ela pode ter com o corpo do filho, com toda boa consciência. 

 

Conclusão

A sexualidade na forma mais sensual estaria, portanto, sempre subjacente nas relações entre pais e filhos. Mostraríamos isso facilmente também no lugar que ela desempenha na violência e na dominação que constitui uma de suas formas invertidas. Do contrário, o amor “familiar” sublimado em ternura se funda, como o amor em geral, no reconhecimento da alteridade do outro.

 

Referências

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MORAVIA, A. L’amour conjugal. Paris: Gallimard, 1972.         [ Links ]

RACAMIER, P.-C. L’inceste et l’incestuel. Paris: College de Psychanalyse, 1995.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
20, rue du Cdt René Mouchotte
75014 Paris
Tel.: 00 (xx) 336 11536618
E-mail: s.mijollamellor@gmail.com

Recebido: 28/03/2011
Aprovado: 27/04/2011

 

 

Sobre a Autora

Sophie de Mijolla-Mellor
Psicanalista do Quatrième Groupe de Paris. Diretora da École Doctorale de Recherches en Psychanalyse et Psychopatologie – Université Paris 7 / Diderot. Editora da Revue Topique. Tem artigos e livros traduzidos para várias línguas, com detaque para o livro A necessidade de crer: metapsicologia do fato religioso. São Marcos: Unimarco, 2004, e para o artigo “Os crimes do amor-próprio”, publicado em 2005 na Revista Tempo Psicanalítico. Co-organizadora do Dicionário Internacional de Psicanálise. Publicou diversos livros em francês, dentre alguns deles: Meurtre familier. Étude psychanalytique sur Agatha Christie. Paris: Dunod, 1995. “L’enfant lecteur” (2006). “Le choix de la sublimation”. Paris: PUF, 2009. Acabou de publicar: Pourquoi donne-t-on la mort: entendre, prévenir, soigner. Paris: PUF, 2011.

 

 

1Conferência dada na abertura do II Ciclo de Conferências e Debates: “Parentalidade, feminilidade e adicções”, realizado pela unidade de Saúde Mental e Psicologia Médica do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – HUPE/UERJ. O evento foi organizado com fomento da CAPES e, também, constituiu parte dos produtos da pesquisa financiada pelo CNPq no  HUPE/UERJ, intitulada Um Olhar sobre as Mulheres que se tornam Mães de Crianças em Necessidade de Cuidados Médicos Especiais, e coordenada por Marília Etienne Arreguy e Luciana Lucena Brasil de Oliveira, em regime de pesquisa-intervenção. Texto traduzido por Marcia Pietroluongo – professora adjunta da Faculdade de Letras da UFRJ. Tradução revisada e texto estabelecido (notas de tradução, resumo, citações oficiais de Freud, referências bibliográficas) por Marília Arreguy, professora adjunta da Faculdade de Educação da UFF.
2N. da T.: Na tradução livre feita inicialmente – suprimida aqui em privilégio das citações “oficiais” presentes nas Edição Standard Brasileira – fora utilizado o termo “cientista”, ao invés de “savant”, este comum ao texto original francês.
3Precisemos, contudo, que, embora opondo feminilidade e capacidade sublimatória, Freud (1996) reconhece nas mulheres – ou ao menos em algumas, ainda que sejam as suas colegas – uma possibilidade de sublimar advinda de sua natureza bissexual, paralelamente aos destinos pulsionais especificamente femininos.