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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.35 Belo Horizonte jul. 2011

 

 

Paulo Menotti Del Picchia: sob um soslaio da psicanálise

 

Paulo Menotti Del Picchia: through a side-glance of Psychoanalysis

 

 

Stetina Trani de Meneses e DacorsoI, II; Nicéa Helena NogueiraII, III

ICírculo Brasileiro de Psicanálise - RJ
IICentro de Ensino Superior de Juiz de Fora
III Universidade do Estado de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente artigo as autoras elegem determinadas passagens da vida e obra de Paulo Menotti Del Picchia para analisá-las sob a ótica da Psicanálise. Suas contradições, duplicidades, capacidade de deslizar por várias funções. Uma abordagem psicanalítica do duplo, religiosidade, modernismo e conservadorismo político de um autor que participou do Movimento Modernista de 1922.

Palavras-chave: Paulo Menotti Del Picchia, Literatura brasileira, Poesia, Biografia, Contradições, O duplo.


ABSTRACT

Is the present paper the author choses certain moments of life and work of Paulo Menotti Del Picchia, to analyse them on a psychoanalytic perspective. An aproach to his own contradictions concerning religion, fascination for modernity and the political conservatism of an author who participated in the Week of Modern Art in 1922.

Keywords: Menotti Del Picchia, Brazilian literature, Poetry, Biography, Contradictions, The double.


 

 

Introdução

Na dissertação de Mestrado em Letras – Literatura Brasileira CES-JF (DACORSO, 2009), utilizamos o poema Máscaras (1920) de Paulo Menotti Del Picchia. No processo de pesquisa sobre o referido autor fomos descobrindo uma personalidade interessante, com colocações sobre a vida e a arte de escrever libidinizadas e marcadas por um aparente sentimento de prazer, um homem com atuações profissionais em várias áreas. E com um certo descaso por parte de seus pares na vida literária.

Ao pesquisar seu lugar na Semana de Arte Moderna de 1922 (DACORSO, 2009) da qual fez parte com Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Plínio Salgado, Di Cavalcanti, Anita Malfatti e outros, percebi que, com o tempo e ruptura deste grupo, Menotti foi deixado de lado. As justificativas encontradas eram de que não escrevia bem(?), apesar do prêmio Jabuti por Juca Mulato (1917); que se filiou ao Partido Integralista; de que era uma pessoa contraditória.... Pareceram-me justificativas insuficientes para a inexistência de tão pouco material sobre a vida e a pessoa de Menotti, que afinal teve uma posição proeminente na Semana de 22.

Sobre seu lugar na literatura brasileira, não possuo subsídios teóricos para fazer uma análise, e nem este é o foco do presente artigo. Mas usaremos da Psicanálise para levantar hipótese sobre este homem, capaz de escrever coisas como:

Nessa duplicidade o amor todo se encerra: um me fala do céu...outro da terra!
Eu amo porque amar é variar, e em verdade toda a razão do amor está na variedade... (MENOTTI DEL PICCCHIA, 1987, p.42).

Sei errar por mim próprio, não gosto de conselhos, nem de dá-los mas não me furto de emitir opiniões. Em matéria de arte não admito pressão externa: a arte deve ser pessoal, independente e livre; é ela que tira o ser humano da animalidade. (DACORSO, 2009, p.8) O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade teme levar consigo o próprio sonho, a esmo, e oculta-o sem saber se depois o achará... E, quando vai buscar sua felicidade,ele,não poderia encontrá-la em si mesmo,escondeu-a tão bem,que nem sabe onde está. (FRIAS, 2004, p.146)

É triste quando começamos a sentir saudades de nós mesmos. (REALE, 1988, p.38)

Existem opções para a aplicação teórica da Psicanálise no objeto literário que é Paulo Menotti Del Picchia, (DACORSO, 2010). Quando Freud, devido à sua admiração por Leonardo da Vinci, resolveu escrever Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910), seu ponto de partida foi a lembrança de Leonardo ‘..um abutre desceu até mim, abriu-me a boca com a cauda e bateu várias vezes em meus lábios com esta mesma cauda” (FREUD, 1979a, p.76). Não foi um trabalho que abarca Leonardo como um todo, mas que trabalha a sublimação, a pulsão do saber e sua relação com a sexualidade através dos dados biográficos e desta lembrança. Diante disso, retomamos o que já afirmamos em outro momento (DACORSO, 2010): não é possível, através de biografias ou autobiografias, reportagens ou textos sobre um autor ou mesmo lendo toda a sua obra, termos a pretensão de abarcar sua personalidade como um todo pela psicanálise. Porque a leitura é subjetiva e individual e o texto não é uma forma fechada, rígida, com um único sentido, considerado correto a partir daquele que o interpreta. É uma obra em aberto, se oferecendo àquele que o lê e que foi por ele seduzido.

Fomos seduzidas pela leitura dos pouquíssimos dados biográficos de Paulo Menotti Del Picchia. Fomos provocadas na minha curiosidade por escreverem tão pouco sobre ele, sua vida pessoal e pública. Fomos desejadas, no sentido analisado por Barthes (1973), quando lendo o pouco sobre Menotti, alguns de seus poemas, outros escritos e entrevistas procuro apreender algo que escapa, incomoda e torna a voltar sussurrando sentidos que não apreendemos.

Desta forma, este artigo vai partir dos poucos dados que possuímos sobre Menotti e das obras às quais  tenho acesso. Estas serão utilizadas através de trechos que exemplifiquem o que estiver sendo investigado, assim como também algumas de suas colocações. Não é uma crítica literária psicanalítica de sua diversificada produção, da sua vida ou de uma obra em particular. É uma escuta analítica do ruído que é a biografia de Paulo Menotti Del Picchia.

 

Um soslaio...

As memórias iniciais são apenas linguagem mental interjetiva como são os balbucios de uma garganta que descobre a voz e vai tentando a articulação de uma linguagem no crescente anseio de comunicação. Fixação de imagens sem nexo. Lembram desarticulações, os ingênuos desenhos rupestres, muda voz do homem fechado na fortaleza das cavernas tentando mandar à eternidade os estremeções do seu júbilo e os arrepios de seu terror cósmico. (MENOTTI DEL PICCHIA, 1970, p.30)

O trecho acima é da autobiografia de Menotti. Nele o autor parece perceber que nossa memória nos escapa, prega peças.  É uma sucessão de imagens à qual o ego procura dar um sentido que seja da ordem do cognitivo, da consciência.  Sentidos que vão se modificando com o passar do tempo, já que os traços mnêmicos são dispostos de forma permanente e em vários sistemas, e só são reativados depois de investidos. Todas as recordações estão inscritas, mas serem evocadas depende da forma como são investidas, desinvestidas, contra-investidas. Uma recordação pode ser reatualizada num contexto associativo, ao passo que, noutra, será inacessível à consciência. É isso que Menotti percebe quando tenta recuperar suas lembranças: “escrever memórias implica a pessoa convencer-se a si mesma para um diálogo entre passado e o presente, este tempo fugaz e em trânsito” (MENOTTI DEL PICCHIA,1970, p.30).

Vamos trabalhar com os dados biográficos de Menotti como se fosse a recuperação de traços que, reinvestidos, se ligam a outros dados ou outras colocações, sejam de sua biografia, sejam de suas crônicas e/ou poemas.

Comecemos com uma pequena biografia do autor. Paulo Menotti Del Picchia nasceu em vinte de março de 1892, na cidade de São Paulo. Faleceu em 1988, com 96 anos, também em São Paulo. Quando tinha seis anos a família mudou-se para Itapira, no interior do estado de São Paulo. Menotti nunca negou este lado interiorano, provinciano em seus escritos, nem em suas colocações sobre sua vida. Mesmo sendo encantado com São Paulo e tendo feito inúmeras crônicas sobre o seu crescimento, que foram utilizadas por Castro (2008) sobre a história da arquitetura e arte da cidade. Uma das muitas dicotomias e contrastes do poeta, escritor, político é a cidade do interior e o fascínio pelo crescimento da capital, claramente exposto neste trecho de crônica e presente em muitas outras:

São Paulo surge, assim, maravilhosamente, da noite para o dia, como uma cidade de encantamento, construída por ciclopes e realizada pela obra miraculosa de um sonho... Os bruxos constroem São Paulo. (CASTRO, 2008 p.126)

Sonho, modernidade, desenvolvimento, fantasia e mito se misturam. Esta mistura que também estava presente em seu discurso na Semana de Arte Moderna de 1922 (DACORSO, 2009). O antigo e o novo. O homem interiorano e o homem moderno, ambos denunciados em seus escritos e fascinados pelo poder avassalador do progresso. Também em suas crônicas surgia o político do Partido Integralista, que delimitava de forma bem clara: “braço que trabalha” e “cérebro que cria”. (CASTRO, 2008, p.128) O paradoxo das mentes humanas!

Seu pai, Luiz Del Picchia, italiano da Toscana, arquiteto sem diploma, assinava várias revistas estrangeiras, tinha uma vasta biblioteca e participava de grupos com artistas, intelectuais, poetas, artesãos. Menotti usufruía dessas companhias e da extensa biblioteca do pai. “A curiosidade e a indagação desse garoto, nortearam minha sede de penetrar no sentido das coisas” (MENOTTI DEL PICCHIA, 1970, p.15). O pai de Menotti possuía um espírito pouco prático e muitas aptidões: pintor, jornalista, poeta e construtor (REALE, 1988).  Em 1982, numa entrevista, Menotti traçou o perfil do pai: “Era um garibaldino, grande artista e revolucionário, poeta, jornalista, pintor, arquiteto, construtor. Só não sabia ganhar dinheiro” (DUCLÓS, 2005). A identificação, mais cedo ou mais tarde, se apresenta. Menotti, o filho, passou por duas sérias crises financeiras em sua vida, conseguiu se recuperar e terminou por ter certa estabilidade financeira. E, também, foi um homem de inúmeras aptidões, como poderá ser percebido ao longo deste artigo.

Menotti cursou direito na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco-SP, transitou na literatura, jornalismo e política. Casou-se, em primeiras núpcias, em 1912, com Francisca Avelina da Cunha Salles, com quem teve sete filhos, convivendo com ela até 1930. Em 1934 temos uma nova Constituição que vai recristianizar a legislação brasileira, constando a indissolubilidade do casamento, a não aceitação do divórcio e a atribuição de efeitos civis ao casamento religioso (KOWALIK, 2006). Nesse ano de 1934, Menotti foi viver com a pianista Antonieta Rudge. Ele era sete anos mais jovem do que ela. Concubinato com uma mulher sete anos mais velha e fazendo parte do Partido Integralista! Em 1967 sua primeira esposa faleceu e  ele casou-se no ano seguinte, em segundas núpcias, com Antonieta, depois de viverem juntos por 34 anos! Foram exímios anfitriões de artistas, intelectuais e políticos.

Algumas colocações sobre Antonieta Teles Rudge (1885-1974). Começou a tocar piano muito cedo e apenas com vinte anos fez sua primeira turnê internacional. Na pesquisa que realizamos, ela é uma das poucas mulheres homenageadas com um busto na cidade de São Paulo, situado próximo à sua residência. Foi casada em primeiras núpcias com Charles Miller, o introdutor do futebol no Brasil, e separou-se dele para viver com Paulo Menotti Del Picchia. Era especialista em Beethoven e Chopin. Norma Bengell realizou um documentário em sua homenagem em 2003: Antonieta Rudge: o êxtase em movimento. Quando ela faleceu, Menotti escreveu:

Sua longa vida, toda feita de arte e beleza, extinguiu-se agora, como se na serenidade de uma tarde, quase noite, se esvaíssem, lentamente, os acordes finais de uma sinfonia. (REALE, 1988, p.37)

A mãe de Menotti, também da Toscana, chamava-se Corina Del Corso Del Picchia, uma mulher de espírito forte e decidido, a quem o poeta era ligadíssimo. Dizia ele: “eu me agarrava a mamãe como folha à árvore. Toda a minha seiva vinha dela”(REALE, 1988, p.16). Com origem na estirpe rural, foi dela que Menotti herdou o amor à natureza e às coisas simples da terra. As relações amorosas em nossa vida repetem padrões libidinizados anteriormente. Óbvio que não são idênticos, mas o encontro de um objeto, na realidade é o reencontro deste objeto. Reencontro do objeto da nossa realidade psíquica, que se encontra mesclado de nossas vivências passadas e presentes,  assim  como também das nossas percepções. Menotti deixou a namorada de infância, D. Francisca Avelina, para viver numa situação de concubinato com Antonieta Rudge. Não estamos nos apegando apenas à diferença de sete anos entre os dois para levantarmos hipóteses sobre a relação amorosa de Menotti com Antonieta. Num dos parágrafos seguintes, nos referimos à capacidade de Menotti pintar e fazer esculturas. No livro de Reale (1988), temos a descrição de caricaturas suas jogando xadrez, e parece uma criança nervosa que puxa os cabelos e chuta o tabuleiro quando – suposição nossa – perde o jogo. Que outro motivo haveria para se chutar um tabuleiro de xadrez?  No quadro de número 73 na página 61 do livro de Reale (1988), a pessoa com quem Menotti joga é uma mulher – será Antonieta? – que se encontra em pé, com as mãos nos joelhos e rindo. Parece que ri do ataque de raiva de Menotti que chuta o tabuleiro. Como faria uma mãe diante da impertinência de um filho que não aceita determinadas regras e dá um ataque. Na caricatura de numero 74 do livro supracitado, Menotti se arruma para passear e vemos uma mulher inclinada, como se estivesse ajudando-o a se vestir e, agora, o auxilia nos sapatos. Antonieta? A caricatura da mulher se parece com a caricatura de Antonieta.

Em suas memórias, Menotti Del Picchia (1970) relata o imenso sofrimento pela separação de sua mãe quando foi cursar direito em São Paulo. Foi durante seu período de graduação que sua mãe faleceu em Itapira, com 49 anos.  Seus primeiros versos e, segundo ele, a compreensão do poder da poesia advieram quando colocado de castigo pela mãe e sem direitos a lanche, escreveu: “Esta é uma coisa desumana. Mamãe me nega até uma banana”. Escreveu num papel e passou por debaixo da porta de seu quarto. No momento seguinte, D. Corina abre a porta e o leva para a mesa com um lanche, onde tinha queijo e bananas (MENOTTI DEL PICCHIA, 1970, p.43). O amor, a paixão, a transferência representam os fechamentos de cicatrizes mais ou menos bem saturadas, coaptadas, desta ferida ontológica, constituída por uma erotomania principal e fundamental (GORI, 2004). Para completar, o objetivo do teste da realidade é re-encontrar o objeto, convencer-se de que ele está lá. E, para que isto se estabeleça, a precondição fundamental é que o objeto tenha sido perdido.

Menotti, através da experiência do castigo e do lanche com bananas, acabara de descobrir como conseguir o que queria através do “poetizar” o cotidiano, característica de sua escrita ao longo de sua vida. Reafirmada em uma entrevista ao jornal O Globo em 20/03/1982: “(...) Acho que as coisas devem ser claras e simples, gosto de luzes, de luminosidade... às vezes, num verso solto, aparece fragmentada toda a beleza do mundo, mas é preciso que o poeta seja um lírico apaixonado”.

Não encontramos maiores dados sobre a vida em comum de Menotti e Antonieta, mesmo procurando pela biografia de Antonieta. Praticamente nada sobre os dois existe.

Em Itapira há um museu Casa Menotti, com acervo de sua vida, incluindo um site. Antonieta Rudge só aparece em 1968, que é o ano em que se uniram “de forma convencional”, já que Menotti havia ficado viúvo no ano anterior. O filme de Norma Benguell não foi encontrado para  se comprar e/ou alugar. O silêncio sobre os dois deve-se ao fato de que sua relação começou de forma não respeitável? Isto é, fora das leis religiosas e jurídicas que vigoravam? Após a morte de Antonieta não há relatos de outra relação de Menotti. Sua enteada, Helena Rudge Miller, ficou morando com Menotti Del Picchia e cuidando até a sua morte.

A duplicidade de Paulo Menotti Del Picchia:

Além das muitas atividades, Menotti também foi pintor e escultor. No livro de Realle,1988,  existem fotos das obras do autor e o acervo ao qual pertencem, as muitas caricaturas já citadas anteriormente, inclusive de sua enteada Helena  Rudge Miller bebendo, esculturas de seu rosto, de Antonieta, Helena  e Sancho Pança, uma pintura com sua visão das Máscaras (1920) e muitas outras peças produzidas por Menotti retratando cenas de seus escritos ou da cidade de São Paulo. Sua primeira escultura foi feita aos 11 anos, modelando em barro o busto do Cardeal Arco-verde e o de D. Antonio Maria do Claret, superior dos padres claretianos.

Como Menotti era marcado pela religiosidade e cristianismo!!

Menotti também se aventurou no cinema criando a Independência Filmes, quando filmou a cidade de São Paulo em comemoração ao seu centenário. Fundou revistas e jornais, e também foi inspetor de colégio em Itapira-SP. Foi nesta cidade que, também, se aventurou nas atividades agrícolas em terras pertencentes ao sogro. Foi à falência que o levou para São Paulo com o intuito de buscar novos modos de sobrevivência. Foi nesta fazenda que Menotti idealizou e escreveu o premiado Juca Mulato. Outra grande crise financeira pela qual passou foi em 1929, quando sofreu perdas vultosas pela falência do banco onde tinha suas economias. Sem emprego, sem reservas e sofrendo perseguições de amigos vitoriosos, tem de recomeçar do zero. Sua situação se estabelece na década de 40, graças a sua condição de tabelião, resolvendo participar novamente da vida política. (REALE, 1988).

Após a Semana de 22 (DACORSO, 2009), ocorre uma ruptura no grupo e cada um segue seu próprio caminho. O período de 22 a 30 é caracterizado por definições no quadro político brasileiro, cria-se o partido comunista e o Partido Democrático, tendo o último, entre seus fundadores, Mário de Andrade. Não é necessário frisar que mais revolucionário ainda era este período nas artes, escreveu Menotti, mais tarde: “Que geração fabulosa a nossa. Foi uma geração de gigantes” (REALE, 1988, p.26). Foi o período mais radical do movimento modernista, havendo necessidade de definições e rompimento com estruturas do passado. Na procura do moderno, original e polêmico, o nacionalismo se manifesta de múltiplas formas, podendo ser distinguidas duas  grandes vertentes: um nacionalismo crítico, consciente com uma postura de denúncia brasileira e politicamente identificado com as esquerdas é do Manifesto do Pau-Brasil e Manifesto Antropófago, na linha comandada por Oswald de Andrade. A segunda vertente é a do Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta. Este último, da corrente comandada por Plínio Salgado, traz as sementes do nacionalismo fascista, dela fazendo parte Cassiano Ricardo, Guilherme Almeida e Menotti Del Picchia.

Nas pesquisas que fomos realizando (Dacorso, 2009), parece-me que na Escola da Anta se encontra uma das sementes do isolamento a que Paulo Menotti Del Picchia foi submetido. O movimento apresentava a proposta de um nacionalismo primitivista, ufanista e identificado com o fascismo, que evoluiria, no início da década de 30, para o Integralismo de Plínio Salgado. Parte-se para a idolatria do tupi e elege-se a anta como símbolo nacional. O grupo verde-amarelista, em seu manifesto, entre outras coisas, afirmava:

O grupo verdamarelo, cuja regra é a liberdade plena de cada ser brasileiro como quiser e puder, cuja condição é cada um interpretar o seu país e o seu povo através de si mesmo, da própria determinação instintiva; - o grupo verdamarelo, á tirania  das sistematizações ideológicas, responde com a sua alforria e a amplitude sem obstáculo da sua ação brasileira (...) Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quatro séculos, a alma da nossa gente, através de todas as expressões históricas. (DACORSO, 2009, p.22).

O Integralismo é uma política fascista tradicional inspirada na Doutrina Social da Igreja Católica e oposta às doutrinas igualitárias oriundas do comunismo, socialismo e anarquismo. As reticências em relação a Menotti dizem respeito a essas suas escolhas políticas. Como alguém, participante ativo da Semana Moderna de 22, que prega rupturas, se filia a um partido autocrático? Ora, respondemos nós psicanalistas, quem dentre vós podeis atirar a primeira pedra na busca de uma coerência total consigo mesmo? E por que exigir isso de Menotti? Afinal, que desconforto provocava Menotti a seus pares? Eram todos os outros coerentes em suas ações?

Menotti acreditou, em dado momento, que o autoritarismo e o conservadorismo poderiam ser a solução para as questões brasileiras, até que abandona a política por se decepcionar com a ausência de ideais que, acreditava, deveriam prevalecer na política em relação ao espaço público.

 

O duplo

Menotti guardava em si o lado lúdico, infantil, brincalhão. Gostava de soltar pipas e balões – sendo considerado exímio fazedor de balões - mesmo que tivesse dificuldade, reconhecida por aqueles que o cercavam, em fazê-los voar. E também gostava de fazer e comer quindins, seu doce predileto (DUCLOS, 2005). A aparência séria não impedia as brincadeiras com crianças, que dele gostavam. As contradições entre o lado ainda ligado à cidade pequena,  onde se soltava balões à vontade e sem riscos, e o homem letrado, aparecem nas suas crônicas sobre São Paulo, quando Menotti constantemente evoca  a modernidade, o crescimento, a industrialização, o ganhar dinheiro e as lembranças das cidades pequenas que possuíam outro tipo de sociabilidade e leituras de mundo. O trecho abaixo é de uma crônica intitulada As serenatas (CASTRO, 2008).

Um trovador noturno que enchia a noite estrelada de endeixas... Cantava toda alma cabocla, do luso exilado, do cabinda quebrado pelo banzo, do mameluco rebelde, latejava na voz do ultimo abencarrage das velhas serenatas paulistas [...] Mas logo veio um guarda e levou-o. O bardo estava bêbado. Não seria um pouco do Brasil aquela voz triste, ferindo a noite, como um lamento, um brado de nossa angustia de povo sonhador e desalentado? O cosmopolitismo enxotava o gênio da nossa raça para o interior, impérvio, e revi, na minha soisma, as vetustas cidades mineiras, inda cheias de versos de Gonsaga, onde se refugiavam com a queixa das nossas últimas canções, os últimos resquícios da nossa nacionalidade. Era a Civilização! Dei-lhe caminho e entrei com o susto, na vida... Amarga esta vida! Esqueci-me de Minas, do Tonico e das cantigas. Quando, de novo, peguei no violão, calculei mentalmente o preço de cada um deles. E se eu montasse um fábrica de instrumentos de corda? Era o espírito comercial que me empolgava o demônio industrial das cidades. Tive vergonha, vender violões era repetir o gesto do Judas, trair um irmão de sonho! (op. cit., p.114-15)

Este longo trecho, assim o é porque consideramos que ele guarda o que era caro a Menotti explicitado na crônica através de sua riqueza cultural. Lembranças da cidade pequena, a religiosidade, o caboclo e as miscigenações da raça brasileira, a aculturação brasileira por outras culturas, o desejo de enriquecimento. Menotti estava sempre a marcar este seu lado interiorano. Nasceu em São Paulo e lá ficou até os seis anos, quando foi para Itapira-SP. A grande São Paulo onde nasceu poderia lhe parecer interiorana como a Itapira de que tanto gostou. Mas a grande metrópole se desenvolveu muito rápido e, quando para lá voltou, ela tinha sido construída “pelos bruxos”. A maioria de suas crônicas sobre São Paulo guarda esta dicotomia: cidade pequena x metrópole; a magia, fantasias e folclore típicos das histórias do interior x a industrialização e tecnologia da grande cidade. Um paulista apaixonado pela sua São Paulo. Nostalgia e sedução. Calligaris (2010) relembra que o navegante quer navegar e conhecer outras terras, não pode fugir a essa pressão. Mas existe a nostalgia do que ficou para trás, do que foi necessário perder para ir ao encontro do novo e desconhecido. O que se perde? O que foi necessário para nossa autonomia: o calor e segurança do primeiro lar, a casa dos pais e a certeza de que sempre estaria ali. Resta a vontade de reencontrar a casa perdida. Aquela casa. Menotti marca isto o tempo todo. Solta balões na Grande São Paulo, faz quindins, deixa mendigos se instalarem nos jardins de sua casa paulista e escreve sobre as lembranças. Mas é um ir e vir infindo porque a casa primeira – aquela casa – está irremediavelmente perdida!

Continuando com nossas hipóteses psicanalíticas sobre o homem Paulo Menotti Del Picchia, temos seus escritos que versam sobre o amor e desejo. Máscaras (1920) com Pierrot, Colombina e Arlequim (DACORSO, 2009); A angústia de D. João (1922) com Fausto e Don Juan; O amor de Dulcinéia (1930) com Don Quixote e Sancho Pança. São poemas intertextuais que Menotti re-constrói através de sua visão de mundo, do amor e da paixão. Nestes textos temos a dualidade entre o amor enquanto um sentimento que se alimenta da impossibilidade; a não satisfação do desejo carnal e o desejo que exige a satisfação que pode levar ao tédio. Em A angústia de D. João (1922), o Fausto adota uma postura diferente daquele ambicioso que vende sua alma a Mefistófeles em troca de riquezas e D. João é o conhecido sedutor insatisfeito, Don Juan:

D. JOÃO: Quantos lábios beijei!Quantas bocas em flor eu fiz fremir de amor, sem nunca achar o amor!Tive corpos nas mãos submissos como servos onde, fria, coleava a angustia  dos meus nervos... E quando, ardendo em febre, a mulher, doida e ardente, enroscava-se em mim tal qual uma serpente cravando-me na boca um beijo, e a carne nívea eu sentia estuar de amor e lascívia, na suprema  eclosão do meu tédio medonho, eu deixava a mulher.. e buscava o meu sonho!
FAUSTO: Fui mais feliz que tu. Um dia, em minha vida, refletida no espelho, enxerguei Margarida. Desvairada de amor fremia de alvoroço, no meu corpo de velho, a minha alma de moço. Dizem que foi Satã quem, cheio de piedade, deu à minha velhice a minha mocidade... Mentira! Quando o amor o peito nos aquece toda a nossa existência exulta e refloresce! Se ele um corpo me deu, foi coisa bem mesquinha, pois, para a  amar, bastava uma alma igual a minha. (FRIAS, 2004, p.63).

A mesma forma dicotômica de amor e desejo, satisfação e frustração, e o tédio como a consequência do desejo satisfeito são temas também encontrados em Máscaras (1920). Estes personagens da Commedia dell’arte são reunidos por Menotti num baile e encontram-se açambarcados pela paixão. A Colombina apaixonada pelo amor e pelo desejo, Arlequim, o conquistador, que não perde nenhuma mulher e o Pierrot, aquele que perde todas porque idealiza demais a mulher, esperando demais de sua fidelidade (DACORSO, 2008). Colombina que ama os dois, Pierrot que traduz o amor como um sonho e em Arlequim o amor é um beijo cedido ou roubado.

E, por último, algumas colocações sobre o Amor de Dulcinéia (1928). Na epígrafe, o autor se expressa: “Sancho, o supremo idealista, é o microcosmo eterno da humanidade, que se completa com o espírito adjetivo do Cavaleiro da Triste Figura.” Vejam como Menotti, fazendo uma inversão, nos apresenta D. Quixote e seu fiel escudeiro:

SANCHO: Que importa se ela é linda e vos ama? Senhor! Há de ser vossa ainda... (baixo e confidencial) Silêncio... Ela está aqui! Reparai bem no dono desta casa: é seu pai, um velho rei sem trono sem reino e sem coroa... D. QUIXOTE: E vive num pardieiro? SANCHO: Um bruxo o transformou num estalajadeiro... D. QUIXOTE (desiludido): Bebeste e quando estas nesse estado indeciso tens menos juízo que quando estas com juízo, pois sempre tens nenhum (MENOTTI DEL PICCHIA, 1987, p.69)

Por esta mirada de olhos em Menotti percebemos em sua história o peso do catolicismo: estudou em colégios religiosos, suas primeiras esculturas foram de representantes da Igreja Católica, mais tarde, faz parte do partido Integralista e em seus escritos e em alguns de seus trabalhos de pintura surge a marca da religiosidade. E não podemos nos esquecer de sua ascendência italiana. A hipótese que levantamos é sobre o duplo de Menotti, que juntos guardavam em si a dicotomia do amor carnal e do amor espiritual oriundos da mística cristã que antecedeu ao amor cortês. Apesar da educação e formação religiosa, ele também era um sujeito de seu tempo, do período da belle-epoque. Não nos esqueçamos de seu lugar na Semana de 22 e também sua participação no Grupo dos Cinco, com Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. O grupo se reunia no ateliê de Tarsila: “No apartamento, tinha álcool, muito fumo, formávamos um ambiente de ternura que transpunha, em alguns à força do vinho, a fronteira da neutra camaradagem” (MENOTTI DEL PICCHIA, 1970).

A mística cristã do sujeito amoroso inventou um estilo discursivo que será encontrado na prosa e poesia românticas. O amor como estágio espiritual superior ao desejo carnal, colocando o sexo como inimigo perigoso, violento, imbatível e que só as almas privilegiadas conseguem vencer. O desejo carnal, vencendo, diminuía o amor, estabelecendo o tédio e o desmerecimento do objeto de amor, no caso, a mulher! É o que percebemos em Pierrot e Arlequim; em Fausto e D. João e também presente no cinismo com que D. Quixote conversa com Sancho. Presente também em vários de seus versos que trazem uma exigência tradicional e conservadora, ou talvez a percepção de sua fantasmagoria interna. As citações que se seguem foram pinçadas do livro de Frias Frias (2004):

São Francisco e Adolfo Hitler pertenceram ambos ao gênero humano (...) (op.cit., p.213)

Quando Jeovah criou o Amor com Eva, criou também o fratricídio com Caim. (op.cit., p.213)

Voltaste ao céu mais Deus para ensinar-lhes, Mestre, que um Deus não seria Deus se não houvesse passado pela dor e pela morte. (op.cit., p.108)

A razão do homem é sempre um ponto de vista. Cada um possui a sua verdade. (op.cit., p.211)

Existem fantasmas dentro de nós. São nossos erros acordados pelos nossos remorsos. (op.cit., p.214)

Quem afinal serei eu? Aquilo que cada um faz da minha imagem? Ângulos do múltiplo que somei... Mas... teriam me conhecido por dentro? (op.cit., p.216)

Menotti parece perceber seus duplos, suas dicotomias, suas ambivalências. “O estranho”, de Freud (1979b). Sua sensualidade freada em nome dos bons costumes, do considerado correto oriundo de sua história pessoal. Uma hipótese é de que o recalque de uma sensualidade provocativa e exigente da década de 20 possibilitou, por um lado, uma nova relação com Antonieta, mas o jogou no Integralismo e no enaltecimento das instituições tradicionais e conservadoras “um Deus não seria Deus se não tivesse passado pela dor e pela morte”. Uma consciência interna dura e exigente. A dor para se chegar a algum lugar. O poeta guarda em si o brincar da criança, mantém em seus trabalhos suas fantasias e sonhos que encontram satisfação fora da realidade. Parece que Menotti dava vida em suas fantasias ao que considerava não ser possível na realidade:

Não houvesse essa renhida
luta entre o sonho e a verdade
dentro do tédio da vida
que seria da humanidade.(REALE, 1988, p.80)

Por fim, existe um outro ruído  à nossa volta sobre Paulo Menotti Del Picchia. Seu pseudônimo. Era comum, na primeira parte do século vinte, um escritor usar pseudônimo. O de Menotti era Hélios.  Nossa questão não é construir hipóteses sobre o uso de pseudônimo, mas pensar sobre a escolha do pseudônimo. Hélios é a personificação do sol na mitologia grega, sua função era trazer luz e calor aos homens. Seu caminho era da Etiópia até o ocidente, onde mergulhava no mar e depois seguia numa taça de ouro em direção ao início do trajeto, a Etiópia. Fazia este caminho durante o dia numa carruagem de fogo puxada por quatro cavalos brancos que soltavam fogo pelas narinas. Apesar de ser uma entidade secundária anterior aos deuses do Olimpo, Hélios era venerado como um deus que tudo vê e tudo sabe. É representado por um jovem muito belo, coroado de raios luminosos e conduzindo seu carro flamejante. Perdeu seu prestígio para Apolo. (LAROUSSE, 1995)

Menotti nunca deixou dúvida sobre o fato de ser um leitor contumaz e sedento de todas as áreas, e a mitologia fazia parte de seu cabedal cultural. A escolha de Hélios nos parece conveniente.  Primeiro, porque em seu discurso na Semana de 22, Menotti mistura mitologia com o discurso da modernidade. Os mitos também se encontram em muitas de suas crônicas e poemas. Então, podemos aventar que Menotti sabia o que significava  e  quem era Hélios. Sua vaidade e aparência não deixam dúvidas sobre o lado de auto envaidecimento de Menotti. Convido os leitores a buscar por fotos suas e compreenderão a análise. Continuando na nossa escuta de Hélios, o mito é aquele que tudo vê e tudo sabe. Faz sentido se pensamos nas várias funções exercidas por Menotti. Trabalha com terras, é inspetor de alunos, dono de uma produtora de filmes, “a Independência”, cronista, tabelião, gerente de banco, deputado federal, dono de uma fabrica de relógios; poeta; romancista; pintor; escultor; preso político no início da era Vargas. Exercendo tantas funções e convivendo com pessoas de tantas áreas distintas, acaba se sabendo de muito e de muitas, e a “tudo vendo” como Hélios que passava pelo céu com sua carruagem. Referindo-se a si mesmo em sua autobiografia Menotti reconhecia-se muito curioso e, provavelmente, também observador. Por que podemos acrescentar o observador? Pelos seus ditos, crônicas, discursos, quadros, esculturas como também as suas caricaturas. Suas produções implicam num olhar aguçado para o mundo a sua volta e ousamos acrescentar, para si mesmo:

“Na solidão do poeta o silêncio lhe traz a voz do mundo”; “A razão do homem é sempre um ponto de vista. Cada um possui a sua verdade”;  “Talvez seja um disfarce do meu orgulho o constante proclamar da minha humildade. Ou talvez seja a humildade a causa do meu orgulho?”(REALE, 1988, p. 66, 67,71).

 

Algumas considerações sobre o estranho Menotti

Antes de construirmos nossas considerações finais, colocaremos um dado que chegou ao nosso conhecimento com o artigo já pronto e naquele estágio de descanso de alguns dias antes de, dolorosamente, darmos o ponto final.

Resolvemos fazer um rastreamento final sobre Menotti e descobrimos que ele também usou o pseudônimo de Aristófanes! Todos nós da Psicanálise o conhecemos. Platão: O Banquete. Os seres divididos ao meio, que vão passar o resto de sua vida à procura de sua metade!!! O amor como a procura incansável de seu outro que, supostamente, lhe dará a sensação de completude! A angústia da divisão, a dor da procura! E o ledo engano de que se irá encontrar!

Mas, também tem Aristófanes que nasceu e viveu entre 448 a 380 AC. Escreveu várias comédias com um pseudônimo. Ligado ao partido democrático, especializou-se na sátira social e política. Escreveu aproximadamente quarenta peças, nos chegando onze. Com linguagem obscena, diálogos vivos e inteligentes na agudeza da paródia. Criticou instituições, deuses, inovações morais, artísticas, políticas e sociais.

Não achamos nenhum de seus escritos com este pseudônimo. Entrei em contato com a Profa. Dra. Therezinha Porto Antonio Lopez, citada por Duclós (2005), e a professora atenciosamente nos confirmou sobre o achado, mas não especificou sobre o pseudônimo. Numa tarde de domingo, por telefone, e para alguém que ela sequer conhece.  Nossos sinceros agradecimentos. Mas estes dados estão no Instituto Estudos Brasileiros da USP-SP. Não se encontram na Internet. Pena! Penssamos que teremos de continuar na mirada de Menotti em outro momento!

Mas, bastou-nos saber que nossa história de sedução com Menotti encontrou um ponto em comum. Ambos conhecemos os discursos sobre o Amor do Banquete!!!

Existem outras tantas obras de Paulo Menotti Del Picchia que não utilizamos, o “soslaio” sobre ele é exatamente isso, uma mirada.... Lendo algo aqui e outro acolá, fomos construindo um contorno e uma imagem, talvez, um pouco fluida do autor. Mas sabíamos de antemão da impossibilidade de uma apreensão maior. Até mesmo devido a um certo silêncio sobre Menotti. Não nos detivemos em Juca Mulato que, pela inovação nacionalista do texto e prêmios recebidos, possui muito material, assim como seu discurso na Semana de 22. Procuramos nos ater ao pouco que existe sobre sua vida pessoal e colocações feitas por Menotti em vários momentos.

Ao fim desta sessão, percebemos um sujeito romântico, conservador e contraditório. Exercendo tantas funções em sua vida!!! E a dificuldade de abraçar uma... A identificação vislumbrada com o pai, homem também de muitas funções, nos induz a pensar que Menotti passava por aqueles vários lugares sem se fixar a nenhum, como se houvesse uma urgência de a tudo abraçar, conhecer e viver.

Seus pares diziam que tinha a fala fácil, no sentido de conseguir envolver seus ouvintes e, principalmente, de gostar de falar em público, brincando com as palavras. Um exemplo, quando o homenagearam em Itapira-SP com o nome de uma praça respondeu: “Tanta praça que me deram! Isto significa que sou boa praça.” (REALE, p.27)

No vislumbre de sua história surge um homem marcado sim, pelas contradições, um “faça o que digo, mas não o que faço”.  Seu duplo exigindo presença em vários momentos de sua vida.

Seu passeio por um leque de atividades, talvez tenha sido responsável pelo lugar menor na literatura brasileira. A opção político-partidária aponta para sua duplicidade e luta entre dois Menottis: o do partido integralista, fascista e aquele que participou do Grupo dos Cinco, do movimento Modernista e de escritos contundentes  sobre a liberdade de ser, a paixão e o amor.

Pode-se lutar um tempo contra a identificação aos primeiros objetos da primeira infância, mas, mais cedo ou mais tarde, ela se denuncia. Como acreditamos ter acontecido com Menotti. A herança italiana de família, conservadorismo, religiosidade, tradição e a pressão dos tempos modernos com suas idéias, liberdade e possibilidade... As lutas, conflitos internos e o alívio que sua produção literária lhe produzia, acreditamos que tenham sidos vislumbrados por Menotti:

O que se tem mesmo é a substância interior. É esta que nos alimenta e vai pela vida afora. [...] Juca Mulato é o dono da minha obra. Ele vive me advertindo: fique quieto aí no seu canto porque eu é que sou importante. Eu vou ficando, obedeço. (REALE, 1988, p.32-5)

Em várias das colocações de Menotti, deduzimos que sabia ser objeto de restrições por parte dos seus pares nas várias áreas.  É o preço que se paga pelo recalque e destinos dos investimentos pulsionais. E ele usou do humor, que Freud (DACORSO, 2009) analisava como um dom, uma fala paternal que diz ser o mundo motivo de riso, que as coisas não são tão terríveis assim. Acreditamos que foi o humor percebido em falas e textos marcados por ligeira ironia que tornaram suportável ao homem Menotti a reação das pessoas ao seu redor às atitudes, falas e à sua forma de estar na vida.

A última palavra, por direito, é de Paulo Menotti Del Picchia. Escolhemos o final de O amor de Dulcinéia (1928), com D. Quixote e Sancho Pança. Menotti leu D. Quixote na biblioteca de seu pai quando ainda era pequeno. Na epígrafe do poema escreveu: “esse D. Quixote era uma velha obsessão do meu espírito. Escrevi-o em setembro de 1928 – conservando a forma exata com que o poema gestou dentro de mim”. Assim:

D. QUIXOTE: Fizeste-me arrastar sob a geada e o mormaço uma caricatura heróica de palhaço! É viver ser grotesco?
SANCHO: É viver ser errante... Todos devemos ser um cavaleiro andante![...] É mister transformar a  vida, essa migalha de tempo, no furor de uma insone batalha, dentro do acaso, da surpresa, errando a esmo, até alçar-se ao ideal de vencer-se a si mesmo, atingindo a emoção do milagre divino de quem cria, por si, o seu próprio destino!
D. QUIXOTE: Sancho! E que fui, seguindo os sonhos que se somem mal se lhes tende a mão? Fui louco?
SANCHO: Foste um homem!
D.QUIXOTE: Que fizeste de mim? Tu deste à humanidade meu ridículo...
SANCHO: Não! Deite a imortalidade! (MENOTTI DEL PICCHIA, p.87)

Paulo Menotti Del Picchia continua sendo a minha obsessão!

 

Referências

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Endereço para correspondência
Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Rua Padre Nóbrega 35/201 – Paineira
36016-140 – Juiz de Fora/MG
E-mail: stetina-dacorso@ig.com.br

Nicéa Helena Nogueira
Rua Severiano Meirelles, 325/1202 – Centro
36016-000 – Juiz de Fora/MG
E-mail: nhan@terra.com.br

Recebido: 01/03/2011
Aprovado: 26/04/2011

 

 

Sobre as Autoras

Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Psicóloga. Psicanalista. Vice-presidente CBP-RJ. Presidente Circulo Brasileiro de Psicanálise (2010/2012). Professora titular curso de Psicologia Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Didata Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicodrama, Psicanálise e Dinâmica de Grupo. Mestre em Psicologia-Psicanálise Americana World University. Mestre Letras-Literatura Brasileira Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.

Nicea Helena Nogueira
Doutora em Letras – Universidade do Estado de São Paulo – São José do Rio Preto. Professora titular e Coordenadora do programa de Mestrado em Letras – Literatura Brasileira do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.