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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.36 Belo Horizonte dez. 2011

 

 

O traumático e o trabalho psicanalítico: uma reflexão sobre o lugar do analista

 

The traumatic and the psychoanalytical work: a reflection about the place of the analyst

 

 

André Avelar

Sociedade Psicanalítica Iracy Doyle
Universidade Santa Úrsula

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe uma reflexão a partir da hipótese freudiana da pulsão de morte. Marco de uma nova concepção do psiquismo, este será o ponto de partida para uma profunda revisão da prática psicanalítica. No bojo destes questionamentos iremos nos valer das contribuições de Sandor Ferenczi, autor de grande relevância na proposição de novos operadores clínicos sintonizados com a problemática da "compulsão à repetição". Nosso objetivo é pensar em uma prática clínica que se atenha aos aspectos mortificantes tanto de Tânatos como de Eros: presentes em proporções variáveis no sofrimento psíquico. Para tal, iremos valorizar radicalmente a dimensão transferencial. Há algo que é vivido entre analista e analisando que é condição fundamental para o êxito do processo psicanalítico: experiências absolutamente novas, de cunho eminentemente criativo, essenciais para a emergência de novas possibilidades subjetivas.

Palavras-chave: Transferência, trauma, repetição, intensidade, irrepresentabilidade, pulsão de vida, pulsão de morte.


ABSTRACT

The present work proposes a reflection from the freudian hypothesis of death drive. Considered a mark of a new conception of the psychism, this will be the starting point for a deep review of the psichoanalitic practice. The core of these questionings will be based on the contributions of Sandor Ferenczi, author of great relevance when proposing new clinical trials tuned with the issue of "compulsion to repetition". Our aim is to think of a clinical practice to stick to the humiliating aspects both of Tanatos and of Eros: evident, in variable proportions, in psychic suffering. Therefore, we shall value radically the transferential dimension. There is something that is lived between analyst and analysand that is basic condition for the success of the psychoanalytic process: experiences absolutely brand new, eminently creative, essential for the emergence of new subjective possibilities.

Keywords: Transference, Trauma, Repetition, Intensity, Unrepresentability, Life drive, Death drive.


 

 

Introdução

O objetivo deste artigo é propor uma reflexão sobre a prática clínica, a partir da mudança de paradigma ocorrida no seio do pensamento freudiano, e que se caracteriza pelo deslocamento de um eixo das identidades rumo ao eixo das intensidades, numa retomada da dimensão econômica como peça-chave para uma nova compreensão do funcionamento psíquico. Foi a partir do contato de Freud com determinados impasses na prática clínica que essa virada conceitual pôde ser promovida. Estamos falando de seu contato com o fenômeno da "compulsão à repetição", base para a sua teorização do conceito de pulsão de morte (FREUD, 1974), responsável por uma profunda reformulação nos pilares que norteavam sua teoria.

Porém nosso propósito, mais do que fazer uma investigação do percurso freudiano em direção a uma retomada da dimensão intensiva, é propor uma análise a respeito das novas estratégias clínicas, esboçadas a partir desta reconfiguração do campo teórico-clínico da psicanálise. Pensar, contudo, sobre a gama de propostas clínicas construídas a partir de 1920, nos exige fazer um corte epistemológico, no sentido de melhor delinear o objetivo de nossa pesquisa. Nesse sentido, o leme de nossa investigação será o conceito freudiano de trauma, elemento determinante para constituir a sua hipótese de pulsão de morte. O traumático freudiano será, aqui, enfocado a partir de suas características de imprevisibilidade, disrupção e irrepresentabilidade.

Tais características nos permitem enxergar o trauma como uma experiência cuja elaboração se impõe como um desafio ao psiquismo. A concepção freudiana do fenômeno da compulsão à repetição será pensada por esse prisma: uma repetição além do princípio de prazer, que seria uma reação tardia ao trauma, mas uma reação que conteria em si mesma o objetivo de dominar retroativamente o fenômeno traumático. Dessa forma, a compulsão a repetir apontaria para uma tentativa de ligar o não ligado, expressão daquilo que não encontrou representação no psiquismo. A leitura do fenômeno freudiano da pulsão de morte – e da própria noção de pulsão – que defendemos aqui é a da existência de uma modalidade de padecimento psíquico que nos permite pensar o processo de subjetivação como um processo radicalmente centrado na dimensão da linguagem. A hipótese de que no seio do funcionamento psíquico atuam forças que pressionam o psiquismo rumo a uma ausência de tensão e ao retorno à quiescência orgânica nos permite detectar a presença de uma corrente "mortalista" a influenciar a vida psíquica. Em outras palavras, a concepção de pulsão nos permite entender o aparelho psíquico como um aparelho que, mais do que nunca, não tem a garantia de sobrevivência centrada em seu interior; ao contrário, o psiquismo não será capaz de sobreviver apenas em função da satisfação de suas necessidades orgânicas, mas em função dos laços promovidos pelo outro, responsáveis pela atividade de Eros, onde são suavizadas as influências destrutivas de Tanatos. O traumático, em última instância, apontaria para uma tendência "mortalista", presente no interior do psiquismo, de natureza eminentemente traumática, uma vez que, no interior do psiquismo, habitaria uma "exigência permanente de trabalho", cuja satisfação só é passível de ser encontrada – sempre parcialmente – a partir dos agenciamentos do sujeito face ao mundo externo. Estamos aludindo, então, a uma compreensão do psiquismo antivitalista, que concede um relevo ainda maior à dimensão intersubjetiva. Dessa forma, o surgimento do conceito de "pulsão" comporta uma dimensão traumática, porquanto leva em consideração a existência de – no seio do psiquismo – um núcleo irrepresentável, que demanda ao sujeito um trabalho incessante de representação.

Cabe ressaltar, porém, que pensar em uma prática clínica sintonizada com as reflexões freudianas da segunda tópica nos exige pensar que a vida psíquica será enfocada a partir deste novo dualismo pulsional, marcado pela oposição entre as pulsões de vida e pulsões de morte. Nosso trabalho, então, é pensar numa prática clínica que seja capaz de ligar o excesso pulsional – a partir do trabalho de representação, marca de Eros -, assim como de evitar os aspectos destrutivos de Tanatos, mas sustentando sua dimensão criativa. Nesse sentido, é papel do analista identificar os aspectos benéficos das duas pulsões, de vida e de morte, além de assumir uma oposição frente a seus aspectos nefastos.

Nosso trabalho, entretanto, buscará cotejar o pensamento freudiano com o de outro autor; refiro-me aqui a Sandor Ferenczi, cuja obra extremamente criativa – e eminentemente clínica – será de grande valia para nos auxiliar rumo a uma elucidação dos questionamentos freudianos da segunda tópica. Ferenczi será, aqui, tomado a partir de suas contribuições clínicas, em especial aquelas que nos oferecem novos dispositivos clínicos, relativos às situações, nas quais o trabalho da associação livre se encontra obliterado.

É necessário, por outro lado, que façamos, primeiramente, uma breve exposição a respeito do percurso freudiano que culminou no resgate de sua noção de trauma, base para uma nova concepção a respeito da vida psíquica.

 

A quebra de paradigma no pensamento freudiano

Birman (1995), a respeito da mudança de paradigmas no discurso freudiano, salienta que a psicanálise, em seu início, se consolidava como um saber determinista, cujo conceito fundamental – o inconsciente – estava ancorado numa dimensão sistemática. O psiquismo era tomado como um saber autônomo, regido por leis específicas, situado em fronteiras muito delineadas. O trabalho do analista consistia em tornar o inconsciente consciente, a partir de seu saber interpretativo. Interpretar era, sobretudo, revelar, tirar o véu daquilo que estava oculto. A esse respeito comenta:

Assim, nos seus primórdios, a psicanálise pretendia ser um saber da interpretação, mediante o qual a figura do analista como intérprete seria detentor de um discurso soberano, sendo capaz pois de trazer para o campo da consciência a representação ausente e restabelecer então a continuidade da história do sujeito. A verdade do sujeito estaria então condensada nessa representação ausente, a que caberia ser restaurada pela interpretação psicanalítica. Certamente, o determinismo psicanalítico encontrava-se aqui no seu apogeu. Nesse contexto, a metapsicologia se realizava no registro eminentemente tópico, apesar de implicar também os registros dinâmico e econômico. (BIRMAN, 1995, p.37).

Neste ponto, a idéia de um pensamento psicanalítico, marcado fortemente por uma corrente determinista, é correlata à preponderância do eixo tópico, onde o inconsciente se compunha por um mapeamento muito delineado. Esta perspectiva centrada em um psiquismo entificado, porém, vai perdendo terreno com o passar do tempo. Desde a interrupção prematura do processo de análise por parte de Dora (FREUD, 1974), Freud deixa de enxergar a transferência como um conceito de importância secundária para tomá-la como um elemento de primeira grandeza na experiência psicanalítica. É preciso entendermos que a valorização da transferência, nesse contexto específico do pensamento freudiano, baseia-se numa concepção do processo analítico marcado pela análise das resistências. A idéia de uma análise das resistências dispõe, em primeiro plano, a análise das transferências e contratransferências, presentes no setting psicanalítico. Aludimos, assim, à relevância da dimensão dinâmica – do conflito de forças – no interior do pensamento freudiano, neste dado momento.

Um pouco mais adiante, em seu texto: "Recordar, repetir e elaborar", Freud (1974) se depara com os limites da interpretação. Ao expor que o paciente manifestaria em forma de ação – mais especificamente dirigido à figura do analista – exatamente aquilo que ele não fora capaz de rememorar, Freud passa a questionar alguns aspectos de sua teoria, à medida que implementa um limite à recordação. Embora aponte o trabalho da elaboração como um instrumento diante da repetição, sem dúvida já se aproxima de uma teorização que considera algo da ordem da irrepresentabilidade. Pois a idéia de uma lembrança só passível à consciência sob a forma de ação, já denotaria uma mudança de estatuto do psiquismo e o limite da palavra na experiência psicanalítica. Sobre esta transição assinala Birman:

Portanto a problemática que se delineia paulatinamente no percurso freudiano é de como o registro da qualidade se constitui a partir do registro da quantidade. Dito de outra maneira, como é que se constitui a produção de representações no aparelho psíquico, considerando-se o primado do registro econômico na metapsicologia.(BIRMAN, 1995, p.38).

Com isso a evolução do pensamento freudiano ruma para uma categoria de pensamento marcada pelo indeterminismo, onde o tema das intensidades passa a ser fator de grande importância. Estamos aludindo, assim, à valorização do eixo econômico, em detrimento dos eixos tópico e dinâmico.

Este percurso ganha contornos mais fortes a partir de 1915, quando o conceito de pulsão adquire um papel central na nova concepção do aparelho psíquico, onde conceitos como o inconsciente e o recalque são redefinidos, constituindo-se como derivações da atividade pulsional.

A radicalidade da nova concepção do discurso freudiano assinala que, para haver vida, não basta a satisfação das necessidades biológicas, mas a manutenção permanente do investimento libidinal permanente por parte do outro. Retomaremos, agora, o tema da atividade pulsional a partir de sua relação com a teoria freudiana da angústia, estabelecendo algumas conexões com sua noção de trauma.

Embora a quebra de paradigma no pensamento freudiano possa ser localizada a partir de suas reflexões desde 1914 (FREUD, 1975), trata-se, no entanto, de um processo de transformação que irá culminar no surgimento de seu conceito de pulsão de morte, base para uma transformação profunda na concepção do autor a respeito do funcionamento psíquico. É sobre esta passagem que nos debruçamos agora.

 

A compulsão à repetição e o surgimento do conceito de pulsão de morte

Em relação ao fenômeno das neuroses traumáticas, Freud assinala que estas portam um sofrimento psíquico que possui a marca de uma compulsão. Porém, trata-se de uma forma de padecimento psíquico que não guarda quaisquer referências com o princípio de prazer, sendo uma modalidade de sofrimento cuja repetição não promoveria qualquer possibilidade de satisfação:

Chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação(…) (FREUD, 1974, p.34).

Nesse sentido, Freud concederá a este fenômeno um caráter demoníaco, uma vez que não apresentava nenhuma correlação com o edifício teórico-clínico freudiano, ancorado no conflito psíquico entre o eu e o recalcado ou, dito de outra forma, na oposição entre as pulsões de autoconservação e as pulsões sexuais. A esse respeito comenta:

Pois é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma "compulsão à repetição", procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos – uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco, e, ainda muito claramente, expressa nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises de pacientes neuróticos. Todas essas considerações preparam para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima "compulsão à repetição" é percebido como estranho. (FREUD, 1974, p.298).

Também neste texto, mais precisamente no segundo capítulo, Freud assinala a existência de um fator determinante para a caracterização do trauma: o susto (Schreck). Para entender melhor a natureza e a importância deste último item no presente texto, é preciso contextualizá-lo perante outras duas modalidades de reação psíquica ante um perigo externo. São elas: o medo (Furcht) e a angústia (Angst). No medo, além da percepção de um objeto ameaçador, há a representação do mesmo, como é o caso do objeto fóbico. Na angústia, embora haja a percepção do objeto de ameaça, sob a forma de uma angústia preparatória, não há sua determinação precisa, tal como ocorre no medo. Já no caso do susto encontram-se ausentes estes dois elementos: tanto a identificação quanto a preparação ante o objeto. Desta forma, o aparelho psíquico é invadido por uma profusão de estímulos contra os quais é incapaz de se defender. Este processo confere tal intensidade à cena traumática, que sua mera lembrança é percebida pelo psiquismo como um evento atual. A investigação do fenômeno da angústia será retomada em "Inibições, sintoma e angústia" (FREUD, 1974) e articulada com o fenômeno da repetição. Voltaremos a esse ponto mais adiante.

Dessa forma, embora a compulsão à repetição se caracterize por uma atividade "além do princípio de prazer", não deixa de ser uma modalidade de reação ao trauma; reação que visaria produzir a angústia que faltara no momento do episódio traumático. O aparelho psíquico, então, visaria, a partir da reprodução contínua do sofrimento relativo ao momento do susto, produzir a angústia que se encontrava ausente. Nesse sentido, o autor assinala:

Esses sonhos esforçam-se por dominar retrospectivamente o estímulo, desenvolvendo a ansiedade cuja omissão constituiu a causa da neurose traumática. Concedem-nos assim a visão de uma função do aparelho mental, visão que, embora não contradiga o princípio de prazer, é sem embargo independente dele, parecendo ser mais primitiva do que o intuito de obter prazer e evitar desprazer. (FREUD, 1974, p.48)

Portanto, em um primeiro momento, a idéia de uma compulsão à repetição foi associada à noção de trauma, na qual a existência de uma "compulsão a repetir" seria referida ao caráter de imprevisibilidade e irrepresentabilidade do evento traumático. Podemos perceber que Freud retoma, assim, a noção freudiana de "Trauma", esboçada anteriormente no texto "O Projeto" (FREUD, 1974).

Contudo, na mesma obra, Freud ampliará sua reflexão ao afirmar que o fenômeno da compulsão à repetição não será apenas a evidência de um cenário traumático, mas a expressão de uma atividade arcaica, relativa a toda vida psíquica, denominada pelo autor de "pulsão de morte". A criação deste conceito – responsável por uma revolução no pensamento freudiano – provocará um novo arranjo na cartografia da vida psíquica. O dualismo pulsional até então vigente – calcado na oposição entre pulsões sexuais e pulsões do eu – passaria a pertencer ao novo conjunto das pulsões de vida (Eros) em oposição à pulsão de morte (Tanatos).

A hipótese da atividade da pulsão de morte abrirá espaço para numerosas proposições face à vida psíquica; o próprio conceito por si só foi tratado por Freud sob diferentes pontos de vista. O autor o tomará fundamentalmente por três vertentes: (1) pelo prisma da "compulsão à repetição", marca da irrepresentabilidade do evento traumático, (2) também expressão de uma busca pela ausência de tensão, pelo movimento de retorno ao inanimado, (princípio de nirvana) e (3) a partir de sua ação destrutiva (pulsão de destruição).

Isso nos permite pensar em uma prática clínica cujo processo analítico poderá ser dotado de dispositivos clínicos que busquem problematizar a prática psicanalítica clássica, pautada unicamente na interpretação. O processo analítico, aqui, será tomado como uma atividade não referida somente ao método de deciframento – ao mesmo tempo sem dele abrir mão – mas, também, configurada numa prática calcada na busca da inscrição daquilo que ainda não fora capaz de encontrar registro no psiquismo.

 

Investigação da noção de trauma à luz do pensamento de Sandor Ferenczi

A razão maior pela escolha da obra ferencziana para, ao lado do pensamento freudiano, fazer uma investigação a respeito do tema do trauma se dá pelo seguinte motivo: o autor não é apenas uma referência de peso relativamente à investigação do tema do trauma, mas sua produção é extremamente rica nos âmbitos teórico e clínico.  Trata-se de uma obra criativa ao máximo, onde a liberdade para a produção de novos operadores clínicos é uma constante. Não pensemos, todavia, que esta liberdade é feita sem rigor; ao contrário, seus instrumentais clínicos foram submetidos a permanente reflexão, certas vezes até deixados de lado em função de ulterior constatação de sua ineficácia. Todos os seus dispositivos clínicos, no entanto, baseiam-se em uma premissa fundamental: a restauração do processo de livre associação – objetivo maior do processo analítico. Os operadores ferenczianos têm o propósito maior de superar os obstáculos que impedem o avanço natural deste processo.

Há, ainda, uma outra razão para a escolha de Sandor Ferenczi como uma das principais referências desta investigação: a clínica ferencziana valorizou sobremaneira a dimensão afetiva, tratando-a como elemento fundamental para o êxito do tratamento. Dessa forma, a hipótese de uma "clínica dos afetos" será lapidada ao longo do presente trabalho. Tal proposta diz respeito a uma compreensão do trabalho afetivo na qual o "sentir" do analista não será tomado como obstáculo à prática clínica; ao contrário, constitui uma condição sine qua non para o êxito do trabalho analítico. Nesse sentido, remetemos a uma concepção clínica onde a premissa da neutralidade será questionada, sem que, com isso, o rigor de uma orientação clínica bastante precisa seja deixada de lado. Em relação à importância da contribuição do Sandor Ferenczi para o pensamento psicanalítico, comenta Rezende:

A esse respeito, os trabalhos de ferenczi têm inegável peso. Contemporâneo de Freud, ele procura justamente suprir a escassez das contribuições voltadas para a técnica após a postulação da pulsão de morte (e tudo o que ela implica). Diante do novo panorama, Ferenczi atende à exigência – inerente à própria mudança teórico-clínica – de repensar os dispositivos técnicos, o que, em última análise, viria fazer jus, no plano do tratamento, à radical reviravolta na teoria (REZENDE, 2006, p.9).

Importa que nos detenhamos sobre o que está em jogo na proposição clínica construída por Ferenczi. Estamos falando de uma reflexão que busca colocar a dimensão intensiva no cerne da experiência clínica, o que leva o autor a pensar em alternativas frente ao método psicanalítico clássico – pautado na interpretação. Nesse sentido, comenta Birman:

Isso implica em dizer que, para Ferenczi, o alvo em questão seria a economia pulsional, e não mais apenas o campo das representações psíquicas, que deveria receber a incidência da intervenção psicanalítica. (BIRMAN, 2009, p.336)

Ferenczi irá, aliás, justificar a técnica ativa exatamente por esse viés; sua utilização é justificável para situações nas quais se esgotaram as possibilidades de associação. E, seguindo essa linha de raciocínio, tais reflexões são oriundas de uma determinada concepção do sofrimento psíquico – estreitamente ligada à proposta freudiana – onde o traumático é decorrente da permanente exigência de trabalho da pulsão. A respeito da proposição ferencziana e sua relação com o pensamento freudiano, Birman assinala que Ferenczi:

Retomou assim o ensaio de Freud de 1914 (1972), intitulado "Rememoração, repetição e elaboração", em conjunção com o "Além do princípio de prazer" (Freud [1920] 1982), com efeito, de maneira que toda a questão da técnica ativa foi fundada na problemática da compulsão à repetição e no novo conceito de pulsão de morte. (BIRMAN, 2009, p.337)

Embora esta proposta teórico-clínica tenha sido alvo de uma série de ressalvas em momento posterior (FERENCZI, 1992), a mesma representa um paradoxo em sua obra: por um lado, foi um dos marcos de uma clínica autoral, uma vez que se tratava de proposta absolutamente inovadora e, por outro, foi alvo de uma intensa resistência da comunidade psicanalítica. A esse respeito assinala Birman:

Contudo a comunidade psicanalítica não legitimou Ferenczi na nova direção da retórica psicanalítica. A mudança na posição do analista se transformou numa polêmica, que efetivamente acompanhou Ferenczi até a sua morte. Assumindo uma postura conservadora, com efeito, a grande maioria dos analistas considerava um risco imprevisível a inflexão intempestiva impressa por Ferenczi na experiência analítica. (BIRMAN, 2009, p.337)

Em 1926, Ferenczi publica o texto: "O problema da afirmação do desprazer" (FERENCZI, 1992). Nele o autor fará referência aos aspectos destrutivos da pulsão de morte, assim como refletirá sobre as possibilidades de suavização destas mesmas tendências:

(…) em certos casos, as pulsões de destruição voltam-se contra a própria pessoa, que, inclusive, a tendência para a autodestruição, para a morte, é a pulsão mais primitiva, e que só no transcorrer do desenvolvimento é que ela passa a ser dirigida para o exterior. Tal modificação "masoquista" da direção da agressão desempenha um papel, sem dúvida, em todo ato de adaptação. (FERENCZI, 1992, p.396)>

No tocante à reação do ego frente às pulsões de destruição, Ferenczi afirma que a parte que sobrevive ao ego é capaz de prover ao sujeito novas vicissitudes. Neste sentido, Ferenczi se vale de seu conceito de "clivagem" para propor a idéia de que uma parte do ego – que não foi soterrada com o trauma, seja qual for sua natureza – é capaz de garantir a sobrevivência do indivíduo:

Entretanto, o mais surpreendente nessa autodestruição é o fato de que neste caso (na adaptação, o reconhecimento do mundo circundante, a formulação de um julgamento objetivo) a destruição converte-se verdadeiramente na "causa do devir". É tolerada uma destruição parcial do ego, mas somente com o objetivo de construir, a partir do que restou, um ego capaz de resistência ainda maior.(Idem, p.402)

Dessa forma, Ferenczi se vale da noção de pulsão de morte, mas a reconfigura dando a Eros um aspecto de mais potência e de mais movimento. Em sua proposta, Eros não promove apenas um "Detour" no caminho inexorável rumo à morte; assim como não irá enxergar a pulsão de morte como "sempre vencedora"(FREUD, 1974). Embora reconheça a influência de Tanatos na vida psíquica, enxerga Eros como uma força capaz de sobressair-se a ela, criando novas possibilidades subjetivas. A esse respeito assinala:

Irei mesmo ao ponto de considerar os próprios traços mnêmicos como cicatrizes de impressões traumáticas, produtos da destruição que Eros, infatigável, decide, não obstante, empregar na preservação da vida; faz deles um novo sistema psíquico que permite ao ego orientar-se melhor em seu meio ambiente e tornar julgamentos mais sólidos. De fato, só a pulsão de destruição "quer o mal" e é Eros quem dela extrai o bem. (FERENCZI, 1992, p.402 )

Dessa forma, é possível analisarmos como a relação entre Eros e Tanatos modifica-se à luz do pensamento ferencziano, concedendo o autor a Eros uma importante mobilidade e autonomia diante de Tanatos, assim como não toma esta última como privilegiada em relação à primeira.

Em 1928 Ferenczi publica o texto "A elasticidade da técnica analítica" (FERENCZI, 1992). Neste trabalho, Ferenczi questiona o lugar do analista, assim como problematiza os pressupostos freudianos a esse respeito. Alude a uma série de sugestões que indicam a possibilidade de o analista ocupar um lugar distinto da psicanálise clássica. Vale recorrer a um comentário relativo à noção ferencziana de elasticidade:

O título (elasticidade) é excelente,/.../ e mereceria receber uma aplicação mais ampla, pois os conselhos técnicos de Freud eram essencialmente negativos. O que lhe parecia mais importante era ressaltar o que não se devia fazer, assinalar as tentações que surgiam na contracorrente da análise. Quase tudo o que se deve fazer de positivo, ele relegou ao tato que você mencionou. Mas o resultado assim obtido foi que os sujeitos obedientes não perceberam a elasticidade dessas convenções e se submeteram a elas como se fossem leis-tabus. Era preciso que isso viesse a ser revisto um dia, sem anular, evidentemente, as obrigações. (FERENCZI, 1992,  p.35)

Nesse sentido, Ferenczi passa a questionar a rigidez de certas diretrizes da prática clínica, originalmente apregoadas por Freud, da mesma forma que propõe novas contribuições relativas ao tema, por sua vez, dotadas de um caráter absolutamente autoral. Em relação à sua concepção de "tato", Ferenczi a descreve da seguinte forma:

Adquiri a convicção de que se trata, antes de tudo, de uma questão de tato psicológico, de saber quando e como se comunica alguma coisa ao analisando, quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para extrair dele certas conclusões; em que forma a comunicação deve ser, em cada caso, apresentada; como se pode reagir a uma reação inesperada ou desconcertante do paciente; quando se deve calar e aguardar outras associações; e em que momento o silêncio é uma tortura inútil para o paciente, etc. Como se vê, com a palavra "tato" somente consegui exprimir a indeterminação numa forma simples e agradável. Mas o que é o tato? A resposta a essa pergunta não nos é difícil. O tato é a faculdade de sentir com. (FERENCZI, 1992, p.27)

Portanto, a noção de "sentir com" nos permite pensar que a aproximação entre analista e analisando, longe de ser um problema, pode ser, ao contrário, um benefício ao tratamento. Ferenczi formula o termo: "hipocrisia analítica" com o objetivo de criticar uma determinada noção de "conforto" em relação ao lugar do analista. Questiona, assim, certas idéias de "superioridade" e "hierarquia" comumente associadas ao exercício da prática psicanalítica clássica. Dentro da nova concepção, o "tato" será a capacidade do analista permitir-se estar mais próximo do sofrimento psíquico do analisando, quebrando, assim, uma certa relação de autoridade entre eles; e sem por isso misturar-se ao analisando. A esse respeito afirma Pinheiro:

O tato é uma distância justa, nem a mais nem a menos, um poder "sentir com" sem "ser como". O conceito de tato torna-se fundamental para a compreensão de sua proposta técnica, assim como a revisão dos conceitos que participavam da pré-história e da história da clínica freudiana. (PINHEIRO, 1995, p.111)

E a idéia de tato nos leva a uma situação de suma importância para Ferenczi: a de que a transferência negativa deve ser buscada, no sentido de sua enunciação, ao longo do processo analítico. A esse respeito, Ferenczi defende a idéia de que o analista não deve se furtar a ouvir o que existe de hostil por parte do analisando em relação ao analista:

Se não nos protegermos mas, em todas as ocasiões, encorajarmos também o paciente, já bastante tímido, colheremos mais cedo ou mais tarde a recompensa bem merecida de nossa paciência, sob a forma de uma transferência positiva. (FERENCZI, 1992, p.30)

Dessa forma, o encorajamento daquilo que é hostil não seria uma tarefa que, para Ferenczi, pudesse prejudicar o bom andamento da análise; ao contrário, seria fator essencial para o estabelecimento de uma relação transferencial mais saudável, (transferência positiva). Além disso, defende também a idéia de que o analista pode e deve suportar certa agressividade do analisando, sendo continente para ela, de modo que o recalcado possa emergir:

(…) se o médico não se defende, o paciente cansa-se pouco a pouco do combate unilateral; quando já provocou o bastante, não pode impedir-se de reconhecer, ainda que com reticências, os sentimentos escondidos por trás da defesa ruidosa (…). (FERENCZI, 1992, p.31)

Portanto, o que está em jogo é a humanização da figura do analista diante do analisando. Ferenczi é direto a esse respeito: "Compare-se a nossa regra de "sentir com" à presunção com que o médico onisciente e onipresente tinha até agora o hábito de encarar o paciente". (FERENCZI, 1992, p.31)

E este processo de humanização poderia, inclusive, criar condições para que o analista pudesse assumir seus erros diante do analisando. Tais aberturas elevariam a aliança terapêutica a um outro patamar, marcada por uma maior franqueza e sinceridade. A esse respeito Kuperman assinala que a idéia de "elasticidade" em Ferenczi seria uma forma de pensar a clínica a partir de uma experiência de "afetação mútua", base para a emergência da dimensão afetiva:

Mas o fundamental de "Elasticidade da técnica psicanalítica", ao contrário do que se poderia precipitadamente inferir, não é a proposta de uma identificação do analista com o analisando, ou mesmo, e mais grave, de uma projeção sobre este de conteúdos psíquicos do próprio psicanalista. O aspecto decisivo apreendido no curso das formulações de Ferenczi, que reside no recurso a essa categoria empregada pelos estetas do século XIX e início do século XX, é a compreensão do campo transferencial como um plano de compartilhamento afetivo que, por meio do encontro lúdico, favorece a produção de sentidos para as experiências de cada um dos parceiros da análise. (KUPERMANN, 2008, p.93)

Nesse sentido, a "técnica elástica" aponta para uma estratégia com delimitações muito claras, mas que privilegia a dimensão humana do tratamento analítico. Além disso, estamos falando de um "espaço de regressão" onde o analisando possa, de fato, mergulhar fundo em sua história infantil, aproximando-se de seu núcleo traumático. Portanto, mesmo não sendo um psicanalista de crianças, Ferenczi hipotetizou uma clínica que valorizasse o infantil, não só enquanto premissa do funcionamento psíquico, mas, também, da prática clínica; prática essa que exige do analista grande sensibilidade para a emergência do infantil no espaço analítico. No tocante à relação entre a elasticidade e o infantil, Kupermann faz a seguinte assertiva:

(…) a surpresa revelada a partir do emprego da sua "técnica elástica" foi a de que seus analisandos passaram a se permitir sofrer processos regressivos intensos nos quais as formas de expressão apresentadas se aproximavam das de crianças, tanto em sua dimensão lúdica, quanto em sua dimensão de dor traumática. (KUPERMANN, 2008, p.94)

Todavia, uma das questões mais importantes apresentadas neste texto será a possibilidade do analista tomar o tratamento como um espaço onde as experiências vividas no setting, em termos emocionais, são tão reais quanto as experiências vividas em sua vida, fora do espaço analítico. A esse respeito assinala Ferenczi: "Pouco a pouco, a própria análise torna-se um fragmento da história do paciente, que ele passa em revista antes de se separar de nós." (FERENCZI, 1992)

Isso significa dizer que o "sentir com", mais do que um artifício terapêutico, representa – este é o ponto de vista de nosso trabalho – uma concepção do processo analítico como uma experiência tão fundamental como qualquer outra vivida ao longo da história do analisando. Além disso, pensamos que esta pode ser, muitas vezes, a única possibilidade do analisando viver aquilo que faltou em sua vida e que, exatamente por isso, será vivido por ele sob o prisma do trauma – marca fundamental do sofrimento psíquico.

Ferenczi defende a idéia de que é fundamental que o analista possa, juntamente com o analisando, empreender um mergulho em sua história traumática, encarando seu trauma não como algo remanescente ao passado, mas como um problema absolutamente pertencente ao presente. Esta seria a essência do "sentir com": a convicção do analista diante do discurso do analisando.

Concluo este tópico discutindo a seguinte citação do autor:

(…) chamei a atenção para o fato do processo de cura consistir, em grande parte, em o paciente colocar o analista (o novo pai) no lugar do verdadeiro pai, que ocupa tanto espaço no superego e que continua doravante convivendo com esse superego analítico. (FERENCZI, 1992, p.24)

Em seu texto "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte" (FERENCZI, 1992), de 1929, Ferenczi alude à questão do desamparo familiar, base da entrega infantil às ações destrutivas de Tanatos. Nesse sentido, em relação a algumas situações clínicas, comenta:

Foi a análise de certos distúrbios circulatórios e respiratórios, de origem nervosa, em particular, a asma brônquica, mas também casos de inapetência total e de emagrecimento, anatomicamente inexplicáveis, que me permitiram examinar mais a fundo a gênese das tendências inconscientes de autodestruição. Todos esses sintomas condiziam bem, na ocasião, com a tendência psíquica geral dos pacientes que tinham de lutar muito contra tendências suicidas. (FERENCZI, 1992, p.48)

Um pouco mais adiante, assinala que tais tendências possuem a marca da desfusão pulsional, em consequência do pouco investimento familiar no momento do surgimento da criança. Nesse sentido, complementa:

Todos os indícios confirmam que essas crianças registraram bem os sinais conscientes e inconscientes de aversão ou de impaciência da mãe, e que sua vontade de viver viu-se desde então quebrada. Os menores acontecimentos, no decorrer da vida posterior, eram bastantes para suscitar nelas a vontade de morrer, mesmo que fosse compensada por uma forte tensão da vontade. Pessimismo moral e filosófico, ceticismo e desconfiança, tornaram-se os traços de caráter mais salientes desses indivíduos. (FERENCZI, 1992, p.49)

Dessa forma, Ferenczi enfatiza a importância do investimento familiar como fator de suavização das influências destrutivas de Tanatos na constituição do psiquismo. A ausência deste investimento pode levar o sujeito a adquirir um funcionamento marcado por uma particular dificuldade face aos desafios inerentes à vida. Porém, Ferenczi, mais do que assinalar o desinvestimento como um fator relevante no trauma, propõe estratégias analíticas específicas diante desta particular carência de recursos psíquicos para lidar com a vida. Ressalta que o analisando deve ter o direito de viver, no interior do processo analítico, aquilo que não pôde fazê-lo em sua infância:

(…) nesses casos de diminuição do prazer de viver, vi-me pouco a pouco na obrigação de reduzir cada vez mais as exigências quanto à capacidade de trabalho dos pacientes. Finalmente, impôs-se uma situação que só pode ser assim descrita: deve deixar-se, durante algum tempo, o paciente agir como uma criança (…). (FERENCZI, 1992, p.51)

E, mais adiante, completa:

(…) permite-se a tais pacientes desfrutar pela primeira vez a irresponsabilidade da infância, o que equivale a introduzir impulsos positivos de vida e razões para se continuar existindo. Somente mais tarde é que se pode abordar, com prudência, essas exigências de frustração, que, por outro lado, caracterizam as nossas análises. (FERENCZI, 1992, p.51)

Assim, Ferenczi utiliza a expressão Laisser faire (FERENCZI, 1992, p.52) para nomear o operador clínico que objetiva o acesso à liberdade não usufruída ao longo da vida. Essa estratégia terapêutica será a base para o surgimento de uma clínica que favoreça a regressão até o núcleo traumático do analisando. Retomaremos este tema mais adiante.

Um ano mais tarde – em 1930 – publica seu texto "Princípio de relaxamento e neocatarse" (FERENCZI, 1992); nele, Ferenczi irá fazer referência à Breuer em relação à aplicação do método catártico. Alega que este método, embora tivesse caído em desuso, deixou um importante legado, expresso exatamente pela presença de uma dimensão afetiva que foi, paulatinamente, perdendo a força com o método da livre associação da psicanálise clássica. Mesmo de acordo com as razões que levaram o método a chegar ao fim, Ferenczi ressalta esta dimensão afetiva, que deve ser resgatada em sua proposta clínica:

A relação intensamente emocional, de tipo hipnótico sugestiva, que existia entre o médico e seu paciente, esfriou progressivamente para converter-se numa espécie de experiência infinita de associações, logo, um processo essencialmente intelectual. (FERENCZI, 1992, p.55)

Além disso, Ferenczi, assim como em seu texto "Elasticidade da técnica psicanalítica" (FERENCZI, 1992), torna a enfatizar aqui a necessidade de que o espaço de análise possa se constituir como um espaço mais livre, em que determinadas situações traumáticas possam se presentificar. As idéias de "relaxamento" e "neocatarse" apontam exatamente para o surgimento do evento traumático de outrora, sem que isto se confunda com o antigo método catártico propriamente dito. Alega que a neocatarse poderá incluir desfechos mais duradouros, uma vez que, o que emerge é oriundo de um laborioso trabalho investigativo, consequência do processo de livre associação e superação das resistências. Mas é fato, porém, que a "neocatarse" irá tomar emprestado algo da "paleocatarse": a possibilidade da existência de uma descarga de afeto que coexista com o trabalho da livre associação. Nesse sentido, assinala: "Há uma diferença imensa entre esse desfecho catártico de uma longa psicanálise e essas erupções emocionais e mnêmicas, que a catarse primitiva podia provocar." (FERENCZI, 1992, p.63)

De qualquer forma, há um "aspecto catártico" presente na clínica ferencziana que não deve ser desprezado; ao contrário, é parte integrante da estratégia clínica proposta. E, para que esta "neocatarse" ocorra, a questão do "relaxamento" no setting é fundamental. Entende-se aqui como "relaxamento" a possibilidade de viver aquilo que não foi vivido no momento mesmo do trauma: estamos novamente às voltas com o importante dispositivo clínico descrito como laisser faire. Ferenczi, porém, é taxativo quanto aos limites desta liberdade:

Mesmo em relaxamento analítico, por mais puxado que seja, não será admitida a satisfação de desejos ativamente agressivos nem de desejos sexuais, assim como muitas outras exigências excessivas: o que fornece ao paciente numerosas ocasiões para aprender a renúncia e a adaptação. A nossa atitude amistosa e benevolente pode, sem dúvida, satisfazer a parte infantil da personalidade, a parte faminta de ternura, mas não a que logrou escapar às inibições do desenvolvimento e tornar-se adulta. (FERENCZI, 1992, p.63)

Estamos aludindo, então, a um importante ponto desta abordagem clínica: de que o infantil vivido na análise não representa o direito de o analisando "fazer o que quiser". Estamos apenas permitindo que ele possa viver, no espaço de análise, aquilo que ele não pôde viver em sua história de vida, assim como interditando todo tipo de postura regressiva contraproducente ao curso subsequente de sua progressão. Em outras palavras: o analisando só poderá crescer se puder regredir. Dessa forma, a idéia de uma "neocatarse" – esta é interpretação do trabalho em questão – baseia-se na emergência de um "quantum de afeto" a partir de uma situação anterior de regressão. Em uma outra excelente passagem, Ferenczi nos brinda com a seguinte afirmação: "Do que esses neuróticos precisam é de ser verdadeiramente adotados e de que se os deixe pela primeira vez saborear as bem-aventuranças de uma infância normal." (FERENCZI, 1992, p.77)

Ao comentar este texto, Pinheiro ressalta que um "empréstimo fantasmático" se faz necessário na concepção clínica defendida por Ferenczi. Alega que o analista deve colocar sua própria capacidade de "representar psiquicamente" à disposição de seu analisando. Nesse sentido, afirma: "Cabe ao analista emprestar a sua própria fantasia e construir uma versão para o que não tem memória nem palavra." (PINHEIRO, 1995, p.111)

A idéia, portanto, de uma "neocatarse" pode ser de grande valia para a emergência de todo material que não vem à tona pelo método tradicional da interpretação. E os recursos psíquicos do analista teriam que estar a serviço de tal objetivo, para o êxito desta empreitada. A respeito, assinala Pinheiro:

Mostra-nos como este é o mais desconfortável dos lugares que o analista ocupa. É desconfortável porque o analista é obrigado, por assim dizer, a colocar sua própria fantasia à disposição do paciente que tem uma lacuna em sua história. (PINHEIRO, 1995, p.112)

 

Considerações finais – reflexões sobre o lugar do analista

A articulação entre as idéias de Freud e Ferenczi objetivou uma reflexão a respeito de novos dispositivos clínicos que pudessem contribuir para o êxito do processo analítico. A emergência da hipótese freudiana da pulsão de morte irá redefinir não só um novo dualismo pulsional, mas, também, instaurar uma nova concepção da vida psíquica. Nesse sentido, é fundamental compreender que algo se constrói no momento mesmo do trabalho analítico, de absolutamente novo. Dessa forma, a investigação e a livre associação não constituem uma simples rememoração do passado recalcado e sim uma forma de ligação de um excesso, inerente ao sujeito atravessado pela dimensão pulsional. Com isso, o trabalho do analista é, ao mesmo tempo, um trabalho de "investigação" e "construção", uma vez que elabora uma prática que, em sua essência, se  pauta na criação de um cenário que possibilite inscrever a pulsão.

Ao mesmo tempo, se levarmos em consideração o novo dualismo pulsional instaurado a partir de 1920, entre as pulsões de vida e as pulsões de morte, é preciso um aprofundamento relativo a esta nova oposição. Comecemos pela pulsão de morte: é preciso que compreendamos que tanto Freud como Ferenczi assinalaram os aspectos destrutivos de Tanatos. É tarefa do analista, portanto, agir no sentido de escoar os aspectos destrutivos das pulsões de morte para fora do eu, estimulando, assim, o analisando a deslocar-se do pólo do "masoquismo" rumo ao pólo do "sadismo". É comum, no sofrimento psíquico de nossos analisandos, encontrarmos sujeitos capturados por uma forma de padecimento no qual o ego é o alvo principal de uma agressividade que não tem como escoar para o mundo objetal. Frequentemente, esse estímulo à renúncia a uma posição masoquista é o que possibilitará o início de um trabalho analítico, posto que a criação de uma "mitologia" do trauma já consiste num trabalho de escoamento da destrutividade de Tanatos para fora do eu, além de significar um trabalho de simbolização daquilo que comparece como pura intensidade – expressão maior da pulsão. Portanto, como condição para que os aspectos criativos da pulsão de morte possam ser valorizados no setting analítico, é fundamental que seus aspectos destrutivos possam ser combatidos.

E o mesmo pode ser dito em relação a Eros. Penso que o conjunto das pulsões de vida também pode ser compreendido a partir de uma mesma dupla perspectiva: em seus aspectos positivos e nos negativos. Eros pode ser tomado como o trabalho de simbolização de tudo aquilo que é da ordem do não inscrito, do excesso, ou seja, da própria exigência pulsional. Contudo, Eros também se remete a tudo aquilo que é da permanência, da unidade, aspecto que denota, sem dúvida, uma faceta mortificante, antagônica à idéia de movimento.

Com isso, podemos concluir que o próprio sintoma – presente na queixa do analisando – tem a marca da fusão pulsional. Possui um caráter de permanente exigência, de recusa ao instituído, marca fundamental de Tanatos. Ao mesmo tempo, possui um traço de imutabilidade, aspecto inerente à natureza mais essencial de Eros. Cabe, assim, ao analista avaliar as características destrutivas das duas classes de pulsões, que, por sua vez, são a essência do sofrimento psíquico. Ao mesmo tempo, é também papel do analista ser um agente de captação dos aspectos benéficos de Eros e Tanatos, utilizando-os como recursos indispensáveis ao êxito do trabalho analítico.

Portanto, é papel do analista identificar um núcleo traumático, inerente à natureza do psíquico, no discurso de seu analisando, e sustentá-lo no decorrer do processo de análise. Em contrapartida, há uma faceta do trauma que deve ser combatida, posto que concorre para elevar o sofrimento psíquico a um nível tamanho, que o trabalho analítico pode ser inviabilizado. Em outras palavras: devem-se construir recursos para que o analisando possa lidar com o traumático; do contrário, o processo de análise passa a se tratar, simplesmente, de um estéril processo de multiplicação de sofrimento, absolutamente antiterapêutico.

Assim, ao valorizar uma hipótese de trabalho aqui denominada como uma "clínica dos afetos", estou priorizando uma prática onde a dimensão afetiva consiste numa peça-chave para o êxito do tratamento. Minha convicção é de que uma escuta amorosa é fundamental para a inauguração – e continuidade – do trabalho analítico. Refiro-me, aqui, a uma valorização "radical" da dimensão transferencial, onde uma escuta afetiva é determinante para a construção de um espaço que possa, de fato, permitir a ligação do excesso pulsional. Dessa forma, estamos falando de uma ênfase no processo analítico como um encontro marcado pela dimensão afetiva, fato amplamente debatido na teorização ferencziana. A partir da valorização desta faceta de Eros é que uma análise será possível. Em suma: podemos dizer então que, a partir da sustentação de uma dimensão afetiva, o "afeto" freudiano – marca de uma intensidade não ligada – poderá vir a ser, sempre parcialmente é claro, integrado a uma cadeia de representações.

 

Referências

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Endereço para correspondência
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Tel.: (21)2256-5879
E-mail: andreavelar@ibest.com.br

Recebido: 01/08/2011
Aprovado: 28/09/2011

 

 

Sobre o Autor

André Avelar
Psicólogo. Psicanalista. Membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle. Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Doutorando em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professor e supervisor da Pós-graduação da Universidade Santa Úrsula (CEPCOP - Centro de ensino, pesquisa e clínica em psicanálise).