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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.36 Belo Horizonte Dec. 2011

 

 

Devastação e autismo

 

Devastation and autism

 

 

Isabela Santoro CampanárioI, II; Jeferson Machado PintoIII

ICírculo Psicanalítico de Minas Gerais
IICírculo Brasileiro de Psicanálise
IIIUniversidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autismo é uma condição de estudo onde podemos ver, com muita freqüência, a devastação acontecer. A devastação mostra um ilimitado da dor. Não é uma dor circunscrita, como no caso do sintoma. Temos a hipótese de que os pais de crianças autistas acabam se afastando delas devido a esta dor sem limites, que foi, até então, vista pelos estudiosos como falta de afeto, ausência de desejo da mãe, “mãe fria”, depressão materna. Nos casos atendidos nos primeiros meses de vida alguns analistas têm conseguido, ao possibilitar o laço das crianças com seu agente de função materna, reverter este quadro de devastação apresentado pelos pais e, consequentemente, reverter a devastação também nas crianças, negativizando os sinais de risco de autismo. Apesar da devastação não ser exclusiva do autismo, pois é trans estrutural, achamos que se aplica muito bem a esta patologia. Por isto nossa proposta de examinar o tema: devastação e autismo. Traremos a casuística própria de uma criança atendida desde os cinco meses de idade em psicanálise mãe-bebê, onde houve negativação dos sintomas de risco de autismo.

Palavras-chave: Risco de autismo, Tratamento psicanalítico precoce mãe-bebê, Devastação.


ABSTRACT

Autism is a study capacity where we can frequently see devastation and its occurrence. Devastation shows unlimited pain. It’s not a delineated pain as in a symptom. A hypothesis that we have is that, because of this endless pain, the autism parents finish moving away from their children. This was seen by the researchers as a lack of affect, an absence of mother’s desire, a ‘cold’ mother, or motherly depression. At cases cared in the first months of live some analysts obtain, by making possible the tie of the children with the functional motherly agent, to revert the devastation canvas shown by the parents, therefore reverting devastation also in the children, switching off the risk factors for autism. Despite this devastation not being autism exclusivity, for its transtructural, we believe that it very well applies to this pathology, thus being the motive to investigate the subject: devastation and autism. We have our own clinical case study of a child attended since the fifth month of life through a mother-child psychoanalysis where the risk signs for autism were turned off.

Keywords: Risk factors for autism, Mother-child early psychoanalytical treatment, Devastation.


 

 

A devastação, como acentua Miller (citado por PINHEIRO, 2009) mostra um ilimitado da dor. Temos a hipótese de que os pais de crianças autistas acabam se afastando delas devido a esta dor devastadora. Outra hipótese é de que o afastamento dos pais como responsável pela etiologia do autismo deve-se a uma falsa observação feita tardiamente, após alguns anos do quadro clínico instalado, e que é conseqüência e não causa do autismo.

Quando atendemos estas mães, logo no início, percebemos que algumas desejaram seu filho, outras não estão deprimidas e, a maior parte, não é fria. Mas encontramos uma característica comum a estas mães: uma dor devastadora devido ao fato da criança não responder ao seu contato.

Nos casos atendidos nos primeiros meses de vida, os analistas conseguiram, ao possibilitar o laço das crianças com seu agente de função materna, reverter este quadro de devastação apresentado pelos pais e, conseqüentemente, reverter a devastação também nas crianças, negativizando os sinais de risco de autismo.

Trabalhamos, atualmente, com a tese de Laznik (2009) de que estas crianças nascem com uma hipersensibilidade ao Outro a ser esclarecida. O desejo materno, até então existente, deixa de existir devido a pouca interação do bebê com quem faz a função materna. Minha hipótese é de que o bebê, devido a pouca resposta de contato com a mãe, pode deixar de ser investido falicamente por quem faz a função materna e daí emerge a devastação, que mostra um gozo não delimitado pelo falo.

 

O caso José Roberto

Traremos um caso ainda em atendimento. Sua publicação é um risco a ser corrido, pois pode, teoricamente, influenciar os atendimentos clínicos. Freud (1980) já nos alertava para os perigos desta situação. No entanto, ele não se referia no citado texto a casos de risco de autismo, condição de extrema gravidade que, como sabemos, pode produzir e provocar sujeitos que ficam condenados ao silêncio. Assumo, aqui, o risco de que o caso é a melhor maneira de transmissão de um saber para que outros casos como o dele sejam atendidos “a tempo” de permitir outro destino pulsional a estas crianças, e serve mesmo para a problematização dos limites deste tratamento. O fato de torná-lo público já tem a função de retirá-lo de seu silêncio, de sua obscuridade, visando reduzir o que há nele de imaginário, evitando sua cristalização. Além disto, conto com a autorização da família.

José Roberto chega ao meu consultório aos cinco meses de idade. Nasceu prematuro de 26 semanas, tendo feito uma cirurgia cardíaca devido a uma comunicação inter-atrial bastante comum em bebê grande prematuro como ele. Ficou internado por, aproximadamente, dois meses, dos quais 35 dias na UTI entubado. Teve meningite neonatal e foi submetido a várias intervenções potencialmente dolorosas e arriscadas.

A mãe, Alessandra, procurava estar todo o tempo ao seu lado, mas encontrava-se muito estressada e fragilizada com tantos procedimentos necessários para a sobrevivência da criança. Sendo da área da saúde, sabia do risco de vida e de seqüelas que a criança corria, o que piorava ainda mais a sua angústia.

Quando teve alta do hospital, a avó materna, Marina, uma socióloga que já conhecia o trabalho com pacientes com risco de autismo, notou que José Roberto evitava o olhar, tendo alertado a filha. Ele chegava mesmo, às vezes, a jogar-se para trás quando alguém insistia em entrar em seu campo visual.

A alimentação sempre foi difícil, tendo que ser feito um grande esforço para alimentá-lo desde que retirou a sonda, o que geralmente provocava lágrimas na mãe. A babá conseguia um resultado melhor de contato com o bebê, mas a mãe se ressentia deste fato. A avó materna também conseguia um contato maior, mesmo assim, muito limitado.

José Roberto adoecia com muita freqüência: otites de repetição, bronquite, resfriados. Tinha um refluxo importante que lhe causou bastante dor abdominal e vômito, algumas vezes após a alimentação, o que fazia a mãe entrar em pânico. O refluxo já estava medicado.

Alessandra queria muito ser mãe e já tentava engravidar há algum tempo. No entanto, percebeu que estava grávida apenas no quarto mês de gestação. No quinto mês entrou em trabalho de parto precoce e teve que ficar internada para tentar segurar  a gravidez, mas José Roberto acabou nascendo ainda bem prematuro e com grande risco de não sobreviver.

Quando chegou a meu consultório José Roberto gostava muito de um tapete de bichos que fazia sons de animais, que ganhara de presente do pai, mas recusava o olhar, mesmo diante do manhês. Trata-se da maneira particular que cada mãe tem de se dirigir ao seu filho atraves da fala. Geralmente é uma linguagem com picos prosódicos que atraem o olhar do bebê.  Interrogamo-nos sobre a qualidade deste manhês feito por mim nas primeiras sessões, que podia trair a preocupação em que me encontrava com a gravidade do quadro clínico da criança.

A mãe contou, com detalhes, na primeira consulta todas as intervenções pelas quais a criança tinha passado. José chorava muito ao ouvir o tom de voz materno. Alessandra estava muito triste por notar que o bebê recusava o contato.  De fato, podíamos dizer de uma mãe deprimida e devastada pelo sofrimento experimentado desde o nascimento de José Roberto e, ainda mais, pela recusa do olhar da criança.

A mãe logo perguntou pelo diagnóstico e eu disse para ela ter calma, pois o diagnóstico só é possível após algum tempo. Um bebê prematuro, submetido a muitos procedimentos invasivos e, potencialmente dolorosos, pode apresentar uma recusa de olhar, que regride após algum tempo. Então, cabia um diagnóstico diferencial com o risco de autismo.

Alessandra nunca vinha sozinha com o bebê: sempre trazia a babá, o marido ou a sua mãe. Isto acontecia não somente em relação ao consultório pois ela contava que tinha muito medo de estar só com o bebê e não conseguir lidar com ele. Chamava a atenção o desamparo da mãe quando ele chorava. No entanto, quando a babá a acompanhava, não queria que entrasse na sala, com ciúmes da pouca relação estabelecida pelo bebê com ela, pedindo-lhe que esperasse na ante-sala. A família se mudou durante certo tempo para o apartamento da avó materna devido a esta insegurança de Alessandra, que se sentia melhor na casa da mãe.

A coisa mais angustiante para Alessandra era a recusa alimentar de José Roberto. Ela ficava sempre muito queixosa de que ele não ganhava peso e, por isto, forçava a alimentação e ele vomitava. Trabalhamos o fato que o bebê, como grande prematuro que foi, podia mesmo estar um pouco abaixo do peso ideal sem que isto fosse grave.

Mais tarde vim a descobrir porque esta questão da alimentação era tão difícil para a mãe. Ela mesma sofria, há muitos anos, de anorexia, o que me foi contado por sua mãe, a avó materna da criança. Ao ver o bebê reproduzindo o vomitar, não suportava. O próprio sintoma anoréxico materno retornou com força. Ao perceber este ponto insuportável no laço entre mãe e filho, propus que a babá assumisse a alimentação da criança, o que foi um alívio para ambos.

Após três meses de tratamento semanal, com algumas faltas devido à saúde frágil da criança, José Roberto começou a fazer algum contato visual com a analista. Usávamos muitas canções na sessão, além do famoso tapete com sons de animais.

Surgiu um significante: a mãe relata que ele é muito “opiniudo”, por isso chora muito, não olha muito para as pessoas e é bravo. E, logo em seguida, a mãe riu e José Roberto olhou-a, feliz. Passamos a usar este significante com freqüência. Quando chegavam ao consultório eu perguntava: “José, e como foi esta semana, ainda muito “opiniudo” com mamãe”? A mãe passou a responder num belo manhês: “demais, Isabela, você nem imagina”... E ria. O bebê ria também, descontraído.

As sessões se tornaram, cada vez mais lúdicas e a mãe passou a  relatar com admiração as conquistas do filho: “ele se sentou sozinho!”  Todos os presentes na sessão bateram palmas quando a criança se exibiu, fazendo o que a mãe havia dito. Foi restabelecido o gozo fálico e, a cada sessão, mais palmas para as conquistas da criança.  Apareceu na mãe o prazer em adiar seu prazer em tomar um banho quando chegava cansada em casa de seu trabalho, brincando com José enquanto ele a solicitava.

Numa das sessões a mãe se deu conta de que não menstruava há cinco meses. Fez um exame que confirmou uma nova gestação. Após duas semanas do diagnóstico da segunda gravidez, entrou novamente em trabalho de parto prematuro e teve que ser internada para tentar retardá-lo. Ficou internada durante um mês, quando nasceu seu outro filho, Lucas, também grande prematuro de 25 semanas.

Durante a internação da mãe, o pai ou a avó trouxeram José Roberto às consultas. Após o parto, seu irmão Lucas ficou internado e passou por todos os procedimentos por que José havia passado. No entanto, ao contrário deste, Lucas era um bebê que fazia muito contato com o Outro, alimentava-se bem e corria menos risco de vida que o irmão, apesar de, também, ter ficado internado por quase dois meses, ter estado muito tempo entubado na UTI e ter sido submetido a vários procedimentos invasivos e cirurgias.

 Assim que pode fazê-lo, Alessandra voltou às sessões com José Roberto, mas menos ansiosa. Dividia-se entre os dois filhos, um internado e outro em casa. Mas, como os seus sintomas anoréxicos persistiam, ela retomou sua análise individual e seu tratamento psicofarmacoterápico.

Após cinco meses do início do tratamento me ausento do país devido ao doutorado. Fico muito preocupada em deixar José Roberto neste momento sem tratamento, logo após sua melhora inicial e, por isso, o encaminho ao Centro de Saúde onde trabalho na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.

Nesse período, o paciente passou a ser tratado no grupo pais - bebês, grupo criado pela nossa equipe 1 há cerca de oito anos, após termos implantado o projeto de Intervenção a Tempo no município, do qual participam as três profissionais e até três crianças e seus cuidadores. Notamos que o grupo facilita algumas intervenções, tais como, por exemplo, a intervenção que uma mãe poderia fazer que, por ser muito direta, não poderia ser feita pela analista.

Constitui um procedimento interessante e que tem produzido ótimos resultados, além de otimizar o tempo da equipe de três profissionais que são referência para uma Regional onde residem cerca de 250.000 pessoas, sendo quase 90.000 em área de risco (aglomerados) e que  possuem o SUS como único meio de tratamento. A demanda é, sempre, enorme e a equipe pode atender apenas aos casos de maior complexidade, ou seja, aos casos de autismo, psicose e neuroses graves.

O Projeto de Intervenção a Tempo busca capacitar os profissionais pediatras, generalistas, enfermeiros e agentes de saúde a reconhecer e encaminhar precocemente crianças com sinais de risco psíquico.

O grupo naquele momento, foi formado com dois pacientes que, coincidentemente, tinham o mesmo primeiro prenome. O atendimento em grupo revelou-se um sucesso para ambos e José Roberto manteve sua melhora progressiva. Após um mês – no período em que eu estava fora –, a equipe decidiu filmar uma sessão de José Roberto para que eu visse como o paciente está bem. Registraram uma cena linda, onde a avó sustenta José Roberto em pleno júbilo frente ao encontro de sua imagem no espelho, aos 11 meses. Todo o grupo presente aplaude e o elogia. Ele ainda com as pernas bambas, não conseguindo se sustentar, mas olhando para todos os adultos presentes com expressão de alegria.

A outra criança, companheira de sessão, José Tiago, solta um grunhido, pois todos haviam olhado para Zé Roberto, se esquecendo dele. Todos estavam encantados com o encantamento especular da criança. Flávia, a fonoaudióloga, diz em um sonoro manhês falando no lugar de José Tiago: “Olha pra mim também, gente”! “Vocês olham só para o outro José, gente”.

Nesta cena, Alessandra, mãe de José Roberto, encontra-se com José Tiago, o companheiro de sessão de Jose Roberto, no colo. Marina (a avó materna de José Roberto) sustenta o neto diante do espelho, e Luciana (TO) faz gracinhas para ele através do espelho. José Roberto responde também fazendo gracinhas e olhando para cada um dos adultos para ver se despertava prazer neles.  Ainda nesta cena, todos estão sentados no chão, rindo muito, menos Marília, mãe de José Tiago, que observa a cena alheia, sentada em uma cadeira, e Flávia (fonoaudióloga) que filma e intervém com o manhês.

José Roberto sentiu muitos ciúmes quando seu irmão, Lucas, teve alta do hospital e veio para casa, principalmente porque trocam sua babá por uma nova, e colocaram a sua antiga babá para cuidar do irmão. Parou de falar. Nessa mesma época a família saiu do apartamento da avó e retornou a sua própria moradia, outra mudança que a criança estranha. Mas José Roberto reagiu bem e recuperou-se com facilidade destas mudanças. Seu vínculo com o Outro parecia relativamente bem estabelecido, mesmo diante de perdas que, antes, poderiam ser gravíssimas devido à sua hipersensibilidade às mudanças e às contingências da vida.

Quando retornei da minha viagem, José Roberto estava com um ano e quatro meses e continuava muito bem: brincava muito de fort da2 (abria e fechava portas, escondia-se atrás de objetos, para depois voltar a encontrar o olhar da analista, que fala “pude”), voltou a falar algumas palavrinhas, como o nome da nova babá, vovó, papai.

Não se furtava mais ao contato visual. Ao brincar de comidinha, dava de comer ao adulto e ficava contente quando falávamos que estava gostoso. Apontava objetos para o deleite escópico do Outro. Todos estes sinais excluiriam o autismo pelo CHAT aos 18 meses. O Checklist for Autism in Toddlers (CHAT) é um instrumento que, ao ser aplicado a crianças aos 18 meses, pode identificar crianças que mais tarde se comprovaram autistas. O diagnóstico baseia-se na falha de três itens do teste: o apontar protodeclarativo, apontar que não pode estar ligado a objetos da necessidade da criança; o jogar simbólico, ou seja, o brincar de “faz-de-conta”; o evitar do olhar. Ele, aos 16 meses, já não preenchia mais os critérios para criança autista por este exame.

Persistia, apenas, a recusa alimentar. Acho interessante que, dentre os sinais de autismo, este foi o único que restou, coincidindo com a questão materna. Esta anorexia seria, ainda, uma dificuldade que os autistas podem apresentar, ou já se tratava de uma identificação com a anorexia materna? Esta dificuldade alimentar seria dirigida a Alessandra, um ensaio frustrado de separação de seu Outro materno?

Alessandra, naquele momento, tinha muita dificuldade de vir às sessões, talvez numa dificuldade em exibir seu corpo, cada vez mais magro. Após um mês do retorno da analista, interrompeu o tratamento de José Roberto por quase dois meses, que  acabou por ser  retomado pela avó.  Marina contou, no retorno, que José Roberto não suportou uma aula de musicalização para bebês a que foi levado, devido ao excesso de estimulação sonora nas sessões. Tapava os ouvidos e chorava com expressão facial de dor. Quando a professora propôs o trabalho com sons mais brandos e atendimento individual, o bebê ficou melhor. A analista explicou, então, que a hipersensibilidade (neste caso, auditiva) da criança ainda podia persistir por alguns anos e que devia ser respeitada. Na sessão seguinte, Alessandra retornou com José Roberto e refizemos o contrato da análise.

Logo após esse momento, tive que me ausentar novamente do país para estudo. Quando retornei, Alessandra tinha colocado José Roberto numa escola pela manhã, o que coincidia com o horário das sessões no Centro de Saúde. Fez novo movimento de interromper o tratamento e, novamente, apelamos para a avó que, mais uma vez, teve que dar o suporte para que José Roberto voltasse a ser atendido.

Acabamos retornando o tratamento de José no meu consultório particular. Ele já estava com dois anos. Falava algumas sílabas e alguns nomes. A mãe teve uma conquista: tornou-se muito carinhosa com José Roberto e passou a vir sozinha com ele na maioria das sessões, beijando-o muito. E era claro o prazer experimentado em seu manhês quando o filho fazia alguma coisa que causava admiração. Ficou toda contente quando a elogiamos quanto aos avanços da sua relação com José Roberto. Somente algumas vezes pedia que a sua mãe, a avó paterna ou o pai o trouxessem à sessão.

Alessandra queixou-se, então, da relação com sua própria mãe, ao mesmo tempo muito próxima, mas também muito invasiva, e de sua dificuldade em se separar de seus cuidados e, mesmo, de cuidar de seus filhos sem ela.

No consultório, José Roberto gostava de brincar com carrinhos. Mais tarde, adorava uma casinha onde colocou personagens que ele mesmo escolheu entre minha família de bonecos: a mãe, o pai, a avó materna, a madrinha, a babá. Sempre excluia Lucas, o irmão de quem tem muitos ciúmes, da brincadeira. Muitas vezes, batia no pai, esquecendo-se dele num canto da casinha, demonstrando uma clara rivalidade edipiana.

Em casa, continuava vomitando e controlando os pais com o vômito. Alessandra se estressava menos, mas o pai perdia a paciência e batia nele algumas vezes. Há alguns meses, passou a aceitar dormir somente junto com os pais. O pai saía da cama e ia dormir no quarto com Lucas e a mãe ficava com ele no quarto do casal. Após trabalharmos a questão, a mãe passou a dormir na sala e ele a dormir, sozinho, na cama de casal.

O pai se ressentiu disto em uma sessão dizendo que, há muito, havia se esquecido do que  era serem marido e mulher. Mas, ao mesmo tempo, disse: “ele dorme cedo, se dormir na sala vai atrapalhar todo mundo de ver televisão”. O pai falou em se separar mas, Alessandra foi firme: “Enquanto os meninos são pequenos não, eles precisam de você”. Ela pedia o pai para os filhos, mas ainda não o marido.

Muitas vezes, José brincava de fazer comidinha e alimentava os bonecos, a mãe e a analista durante a sessão. Em algumas sessões, a avó trazia comida de verdade e ele alimentava a todos, mas recusava-se a comer. Notávamos que a mãe, discretamente, comia apenas um pouco, numa pantomima de prazer pouco convincente.

A análise sofreu, ainda, mais uma interrupção por motivo de estudo. Mas, nesse momento, fizemos um contrato prévio com a mãe e com José Roberto, deixando explícito que não os estou abandonando, para que ela não repetisse o movimento de abandono das sessões quando eu retornasse, pois o João se ressentia muito dos meses que ela demorava  para voltar.

Quando retorno, José Roberto, dois anos e quatro meses, já está falando várias frases e a mãe está muito orgulhosa com as conquistas fálicas do filho. Retomamos, imediatamente, o trabalho analítico. Foi retirado da escola, pois vomitava muito ao ser deixado lá. A separação era, ainda, muito traumática para ele.

Matricularam-no em uma nova escola no semestre seguinte, desta vez com sucesso, mas não sem dificuldades, pois a criança tenta forçar os pais a desistirem de levá-la à escola vomitando. Depois de quatro meses, José Roberto estava melhor adaptado e passa vários meses sem vomitar, o que só retorna temporariamente após a saída da babá.

Surgiram muitas birras, testando os pais. Fazemos intervenções no sentido de uma maior valorização do marido enquanto objeto de desejo desta mãe, sem muito sucesso por enquanto. E a criança tenta se virar em fazer seu Édipo, começando a apresentar algumas fobias. Passa a ter medo de Jesus Cristo e, uma vez, chora ao ver o pai de um paciente em minha sala de espera quando sai do consultório.

Em outra sessão, fala que a avó é seu outro papai. A avó realmente, a princípio, era menos afetada pela manipulação através do vômito e pelas birras da criança, desempenhando bem a função paterna. Agora, até mesmo a mãe já consegue sustentar esta função de limite. Mas o pai real, aquele desejado pela mãe, ainda não existe na dinâmica familiar, dificultando o terceiro tempo do Édipo para José Roberto.

Malvine Zalcberg (2003) em seu livro A relação mãe-filha, nos traz reflexões interessantíssimas a respeito da devastação, que se dá para a autora, quando a separação se faz impossibilitada. Chama a atenção uma das frases com que a autora abre seu livro. “Para toda mulher, há sempre três mulheres: ela menina, sua mãe e a mãe da mãe”. (Winnicott, 1987, citado por Zalcberg, 2003). Achamos preciosa esta frase quando tomada em relação a este caso clínico e, mesmo a outros, onde o papel da avó como função materna suplementar é demandada, o que, ao mesmo tempo, pode manter a dificuldade de separação. Muitas vezes, a intervenção clínica na psicanálise mãe-bebê pode atingir a neurose infantil materna, fazendo ressurgir a mãe enquanto menina. Muitas intervenções clínicas em manhês têm este objetivo.

Conseguiremos, através da análise, possibilitar esta separação obstaculizada entre Alessandra e Marina e entre Alessandra e José Roberto, que traz a anorexia como sintoma, apontando para a dificuldade de separação? Para trazer a luz a estes questionamentos, faz-se necessário aprofundarmos no conceito de devastação.

 

Voltando à devastação

Seria útil explorarmos o conceito de devastação, termo que Lacan emprega, inicialmente, para qualificar a relação mãe-filha e, posteriormente, em relação ao parceiro amoroso devastador.

O dicionário histórico da língua francesa Robert nos diz que “ravage” vem do latim popular “rapire”, que significa levar à força ou de surpresa, pegar rapidamente, “pilhar”. Por analogia a pilhar, “ravage” passa a significar o que as águas arrastam com elas, designando por metonímia um dano importante causado com violência e rapidez.

Em psicanálise, o termo ravage (devastação, estrago) é empregado por Lacan, pela primeira vez,  no texto “O aturdido”, após haver escrito as fórmulas da sexuação. Vamos escolher a tradução de ravage por devastação, por ser mais aproximada da palavra usada por Freud, catástrofe.

“... a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida, contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação” (LACAN, 2003, p.465, grifo nosso.)

Lacan busca com esse termo retomar aquele usado por Freud que é catástrofe.A transição para o objeto paterno é realizada com o auxílio das tendências passivas, na medida em que escaparam à catástrofe” (FREUD, 1980, p.275).

Devastação e catástrofe, portanto, se referem aos laços estabelecidos entre uma menina e sua mãe e àquilo que, dessa ligação, resta na subjetividade feminina. Vamos encontrar, inicialmente, em Freud uma leitura da relação primitiva da mulher com sua mãe abordada por seu conceito de inveja do pênis (Penisneid).

Freud se questiona, posteriormente, sobre os destinos da inveja do pênis na vida psíquica posterior da mulher e sua articulação com a ligação pré-edípica da menina com sua mãe. A menina faz de sua mãe a responsável por sua falta de pênis e não lhe perdoa por essa desvantagem. Por isso, a ligação da menina com sua mãe pode terminar em ódio. Freud faz a sexualidade feminina derivar da inveja do pênis e observa quatro consequências psíquicas decorrentes dela, sendo a devastação (catástrofe) uma delas, que situa a mãe como responsável pela falta da filha.

Em Freud, a catástrofe está estritamente relacionada ao destino do falo na menina e ele observa que certas mulheres permanecem em sua ligação original com a mãe sem nunca alcançarem uma verdadeira mudança em relação aos homens.

Segundo Estela Solano-Suarez, Lacan desloca a problemática feminina, posto que Freud a havia centrado na relação das mulheres com respeito à demanda dirigida ao pai. Lacan caracteriza, fundamentalmente, a posição feminina a partir da relação com a mãe. Em “O aturdido”, Lacan afirma que a menina parece esperar da mãe mais substância que do pai. A menina espera da mãe, e não do pai, um “a mais” de substância.

Substância, assim como subsistência, tem a mesma etimologia, vinda do latim clássico “subsistere”, que significa resistir, não ceder. Subsistência é o que permite viver, é o que se refere aos víveres. Por isso, podemos imaginar a enormidade do que uma mulher espera de sua mãe. Trata-se de algo que ela, seguramente, não lhe pode dar, uma vez que a mãe não lhe pode dar nem a existência enquanto mulher, nem a substância feminina. Não lhe dá porque é algo da ordem do impossível.

Interessante observarmos, em relação ao caso José Roberto, que Marina, a avó materna é cheinha e, com frequência, trazia comida para as sessões de análise do neto. José e Alessandra  recusavam os víveres trazidos pela avó. Esta mesma avó sustentava o tratamento do neto ao fazê-lo retornar as sessões e ao assumir, inclusive, a princípio, o seu pagamento, quando retornaram para meu consultório particular. Alessandra fugia, muitas vezes, do tratamento oferecido e pago pela avó. A demanda oral pelo nada de Alessandra chamava a atenção.

Recentemente, a bisavó da criança faleceu (mãe da avó, já em idade bem avançada e após uma doença crônica). Alessandra sentiu muito. “Agora que minha avó morreu, sei que ela foi muito mais que avó para mim, assim como minha mãe é muito mais que avó para José... isto tem vantagens e desvantagens...”. “Acho que tenho que romper com isto, os meninos passam mais tempo na casa de minha mãe que lá em casa”. “Não sei se é amor ou invasão”.

Como amar é dar o que não se tem (LACAN, 1999, p.218), o amor é o mais difícil dos dons. Nunca temos certeza do amor do outro, a não ser na psicose. Após uma análise, os signos do amor materno podem adquirir outra significação para a menina que, até então, não se julgava amada pela mãe. A demanda de amor feminina pede signos e palavras do Outro que possam dar uma consistência ao seu ser. É necessário que a análise faça a mulher cair desta ilusão, para que ela possa assumir seu modo de fazer com o feminino e, como a mãe, encontrar um parceiro, um homem do qual ela faça sinthoma para ter filhos. Segundo Lacan (2007) a mulher seria sinthoma para o homem, enquanto o homem seria devastação para a mulher.

Para Solano-Suarez, a saída da devastação para uma mulher, que ela chama de a paixão maior feminina, é possível de ser feita em uma análise, permitindo à mulher poder responder ao real em jogo na posição feminina. Criando sua própria versão, um “saber fazer” com a feminilidade que corresponde ao saber fazer do artesão. Por isso as mulheres são peritas em cobrir o real, delas e, também, do corpo de seus filhos enquanto bebês. Só quando se liberta da devastação é que a mulher cria um saber fazer com o real do feminino.

Ainda não vimos isto acontecer com Alessandra. E interessante que ela consegue parar de dormir com seu filho, mas não volta a dormir com o marido. Também investe muito pouco em cobrir o real de seu corpo magro de objetos fálicos.

Segundo Soller (2005) o núcleo da devastação seria o gozo feminino que invade o sujeito, provocando um eclipse subjetivo temporário, provocando desde uma leve desorientação até a angústia extrema, passando por variados graus de extravio e evitação, o que observamos com frequência em Alessandra e, também, em outras mães de crianças autistas. Defendemos a hipótese de que a predominância de qualquer outro tipo de gozo pode devastar, principalmente o gozo do Outro.

Devido à intervenção psicanalítica precoce mãe-bebê apostamos no fato de que, breve, Alessandra e José Roberto têm chances de sair da devastação, separando-se.

 

Referências

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ZALCBERG, M. A relação mãe-filha. Rio de Janeiro: Campus, 2003.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Isabela Santoro Campanário
Rua Teixeira de Freitas, 800/101 – Santo Antônio
30350-180 – Belo Horizonte/MG
Tel.: (31)3281-0602
E-mail: isabelasantoro@uol.com.br

Recebido: 01/08/2011
Aprovado: 12/09/2011

 

 

Sobre os Autores

Isabela Santoro Campanário
Psiquiatra da infância e adolescência. Psicanalista. Editora das revistas Reverso do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais e da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Mestre e doutoranda em psicologia pela UFMG. Autora do livro Espelho, Espelho meu: A psicanálise e o tratamento precoce do autismo e de outras psicopatologias graves, Ed.Ágalma, 2008. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

Jeferson Machado Pinto
Psicanalista. Doutor em Psicologia pela USP. Autor do livro “Psicanálise, feminino, singular”, Belo Horizonte: Autêntica, 2008. Professor do Departamento de Psicologia da UFMG. Orientador de tese de Isabela Santoro Campanário.

 

 

1Luciana Del Prete, terapeuta ocupacional e Flávia Villar, fonoaudióloga.
2Brincadeira observada por Freud (1980) em seu neto de 18 meses que, diante da partida da mãe, punha-se a brincar com um carretel fazendo-o desaparecer e aparecer acompanhado dos sons “óoo” (fort-lá), quando o mesmo sumia e “da” (aqui), quando reaparecia. Freud interpreta o jogo, entre outras coisas, como a capacidade que a criança pode adquirir de simbolização da ausência materna.