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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.36 Belo Horizonte dez. 2011

 

 

Quando cai a noite1

 

When nigth falls

 

 

Luciana Knijnik

Unesco
Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul
Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo revisitamos a obra freudiana A Interpretação dos Sonhos estabelecendo um diálogo com operadores conceituais do campo da cultura. A produção onírica que, por meio de seu conteúdo fala não somente daquele que sonha, mas do mundo, é apresentada em sua dimensão de criação.

Palavras-chave: Sonhos, Criação, Cultura, Impessoal.


ABSTRACT

In this article we will revisit Freud's Interpretation of Dreams setting a dialogue with the conceptual operators in the field of Culture. The dream's content that tell us not only about the person that dreams it but also about the world, is presented in its creative dimension.

Keywords: Dreams, Creation, Culture, Impersonal.


 

 

À duração de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro.
CLARICE LISPECTOR

 

Seis anos após ter vindo a público, o livro A Interpretação dos Sonhos (1900), considerado pelo próprio autor como a chave de sua obra, atingiu a singela marca de 351 exemplares vendidos. Se hoje reconhecemos nos sonhos um campo fértil em significados, na época não havia este consenso. Desde a Idade Média, o posicionamento dos filósofos em relação aos sonhos tem sido contraditório. Descartes, para invalidar o lugar dos sentidos no estabelecimento da realidade, considerava a atividade onírica tão insensata quanto as declarações dos dementes. Contudo, para Espinosa os sonhos mostravam que a suspensão do juízo não podia ser considerada um efeito de nossa livre vontade. Visões divergentes seguiram também com Hegel, Nietzsche e Schopenhauer (ROUDINESCO, 1998).

A revisão da produção sobre sonhos, disponível na época e realizada pelo próprio Freud, aborda a temática nas culturas judaica, árabe, japonesa, chinesa e hindu. Já nas sociedades tradicionais, o sonho remete ao mito, à lenda e ao conto, enquanto que a interpretação fica a cargo de feiticeiros, xamãs e profetas. Seja como previsão do futuro, como parte do texto bíblico ou da ordem do sobrenatural, a partir de Freud a interpretação dos sonhos assume novas dimensões.

A ascensão do pensamento positivista, na segunda metade do século XIX, inscreveu a “desrazão” no território da doença, relegando o sonho à categoria de mero produto cerebral ausente de qualquer vestígio de sentido. Se, para comprovar que a histeria não derivava de causas orgânicas, Freud enfrentou muitas oposições, ganhar credibilidade com a ousadia de afirmar que os sonhos possuem significado não seria tarefa menos árdua.

Contrariando o que muitos leitores das publicações oriundas da tradução inglesa podem crer2, Freud não buscou uma retórica rebuscada para conferir cientificidade a seus achados. Seu domínio da língua alemã possibilitou uma escrita repleta de filosofia e poesia, sem perder conexão com a linguagem simples e cotidiana dos vienenses de seu tempo. Como bem alertou Bruno Bettelheim, “a escolha de palavras e o estilo direto de Freud servem à finalidade de preparar o leitor para aplicar a si mesmo insights psicanalíticos, pois somente através de sua experiência interior ele poderá entender completamente o que foi que Freud escreveu” (BETTELHEIM, 1982, p.20).

Alheio à suposta neutralidade científica e mergulhado em sua auto-análise e na escuta clínica de seus pacientes, Freud constrói uma teoria dos sonhos. A análise do conteúdo do paradigmático sonho da injeção de Irma abre caminhos para a formulação da teoria da formação do sonho e o método de interpretação. Diz ele: “Se adotarmos o método de interpretação de sonhos indicado por mim aqui, verificaremos que os sonhos realmente têm um significado e estão longe de constituir a expressão de uma atividade fragmentária do cérebro, como as autoridades têm alegado” (FREUD, 1900, p.130).

Para ele os sonhos podem ser entendidos como uma escritura feita com imagens, um pensamento que possui sentido. Declara, ainda, que as aventuras oníricas nada mais são que a realização alucinatória de desejos inconscientes. Como aponta Roudinesco (1998, p.393), ocorreu a Freud, “ao escutar os pacientes lhe contarem seus sonhos da mesma forma que seus sintomas mórbidos, que o sonho, a exemplo da fantasia e do sintoma, era um estado psíquico passível de constituir, também ele, o ponto de partida de associações livres”. Em suas palavras “quando o trabalho de interpretação fica concluído, percebemos que um sonho é a realização de um desejo”3(FREUD, 1900, p.130).

Bem como foi formulado em relação à histeria, afirma que o sonho está calcado em conteúdos não conscientes, tampouco reconhecidos pelo próprio sonhador: um texto psíquico expresso por elementos pictográficos, uma mensagem cifrada. A gramática própria do sonho revela ainda precisos mecanismos psíquicos em seu processo de constituição, quais sejam, o deslocamento4, a condensação5, a elaboração secundária6e o uso de símbolos.

Esta gramática remete a do povo Guató7. Manoel de Barros (2006, p.VIII) relata o diálogo com o índio Rogaciano:

Uma hora me falou que não sabia ler nem escrever. Mas seu avô que era o Chamã daquele povo lhe ensinara uma Gramática do Povo Guató. Era a Gramática mais pobre em extensão e mais rica em essência. Constava de uma só frase: os verbos servem para emendar os nomes. E botava exemplos: Bentevi cuspiu no chão. O verbo cuspir emendava o bentevi com o chão. E mais: o cachorro comeu o osso. O verbo comer emendou o cachorro no osso. Foi o que me explicou Rogaciano sobre a Gramática do seu povo.

Retornando a Freud, lembramos que seu pensamento não se limitava a formulações acerca do aparelho psíquico e seus mecanismos: ele foi um investigador de sua cultura. No livro dos sonhos, como em toda sua obra, apresenta “nítidos esboços do mundo médico vienense, repleto de rivalidades e de caçadores de prestígio, e da sociedade austríaca, infectada pelo anti-semitismo e no final de suas décadas liberais” (GAY, 1989, p.110).

Garcia-Roza (1988, p.84), por sua vez, acrescenta elementos importantes à discussão que pretendemos empreender neste texto, destacando a dimensão de criação do sonho. Para ele, “no caso dos sonhos, a distorção a que é submetido o texto é índice de uma eficácia do trabalho de sonho e não de sua debilidade [...] O bom trabalho do sonho não segue os mesmos caminhos que a boa tradução”. Assim, não há um texto pronto, verdadeiro e imutável que gere cópias distorcidas na medida em que se distanciam do original.

Seguindo esta mesma direção, a memória, guardiã dos tempos, pode ser entendida enquanto produção de diferença. Não sendo qualificada como fixa, estanque e imutável, a memória adquire o estatuto de movimento, de jogo de forças, de transformação permanente, considerando que, para Freud, o que encontramos na origem é pura diferença e não identidades.

Seguramente, afirmar a produção onírica como criação pura implica, ainda, em uma concepção de subjetividade. Nesta seara fazemos coro com Tedesco (2005, p.151). Diz ela,

Apostamos na definição da subjetividade como acuidade, por excelência, de trabalhar a ativação e a reutilização de fragmentos expressivos. No exercício do estilismo de si é dado à subjetividade atualizar-se como acontecimento, ou seja, preservar-se na eleição de estratégias de escape do antecipável, transbordar de seus contornos figurativos e se desenhar em um movimento bifurcante do si, modo reiterado de reinventar-se no movimento criador que a constitui.

Atualmente, no campo psicanalítico, estamos de acordo que o sonho é fruto das experiências do próprio sonhador. Considerando que os sujeitos estão imersos em caldos culturais diversos, podemos inferir que os sonhos, por meio de seu texto, falam não só daquele que sonha, mas do mundo. Nos sonhos há algo da ordem do impessoal que ultrapassa a experiência particular de um determinado indivíduo e produz ressonâncias em um coletivo.

No terreno da arte, não é diferente. Uma pintura de Pablo Picasso pode ser analisada sob diversos aspectos, como o material utilizado, a precisão técnica ou mesmo a história de vida do pintor. Entretanto, nenhum destes elementos justifica o impacto causado por um quadro como a Guernica8. Nesse exemplo uma pintura se torna vetor de expressão de dimensão transversal. Como aponta Pacheco (2006, p.22): “A função crítica e clínica da arte, para nós, está justamente em fazer existir o que não estava previamente na posse consciente deste assim chamado autor ou criador e que não será passível de corresponder inteiramente à sua, nem a nenhuma personalidade

Em relação à criação literária, Tedesco (2005, p.146) assinala: “só é possível escrever traindo a personalidade. A escrita expressa não o sentimento de alguém, mas o acontecimento, o indeterminado. Um afeto sem dono, uma experiência de um qualquer”. Nesta perspectiva, apresentamos um autor que merece nossa atenção: Primo Levi (1919-1987), um dos poucos sobreviventes de Auschwitz, onde milhões de judeus, ciganos e homossexuais foram exterminados. Graduado em química, tornou-se escritor pela necessidade de contar o que viveu. Membro de família judia, fez parte de um grupo de resistência na Itália e foi capturado pelas milícias fascistas. Em 1944, aos 24 anos, foi deportado para o campo de concentração, onde permaneceu por quase um ano.

Em É Isto um Homem?, no capítulo intitulado Nossas Noites, Levi relata o seguinte sonho:

Aqui está minha irmã, e algum amigo (qual?), e muitas outras pessoas. Todos me escutam, enquanto conto do apito em três notas, da cama dura, do vizinho que gostaria de empurrar para o lado, mas tenho medo de acordá-lo porque é mais forte que eu. Conto também a história da nossa fome, e do controle dos piolhos, e do Kapo9 que me deu um soco no nariz e logo mandou que me lavasse porque sangrava. É uma felicidade interna, física, inefável, estar em minha casa, entre pessoas amigas, e ter tanta coisa para contar, mas bem me apercebo de que eles não me escutam. Parecem indiferentes; falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse. Minha irmã olha para mim, levanta, vai embora em silêncio (LEVI, 1988, p.60).

Acatamos a precaução indicada pelo mestre quando afirma que “é impossível compreender um sonho enquanto o sonhador não nos der as informações pertinentes” (FREUD, 1900, p.187). Não intencionamos prescindir do método analítico e tomar um atalho, preenchendo a significação dos símbolos. Se houvesse a possibilidade de escutarmos Primo Levi no setting analítico, provavelmente suas associações proporcionariam múltiplos caminhos para dar significado a esse sonho, mas não será desta vez. Afinamos nossa escuta desse sonho para ouvir aquilo que transborda o universo particular do sonhador e que antecipa a experiência dos sobreviventes do terrorismo de Estado: o encontro com um mundo que não suportará ouvir os horrores vividos.

E, para finalizar, recorremos novamente a Manoel de Barros (1997, p.75).

A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem de suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz

[um formato de pássaro.
Arte não tem perna:
O olho vê, a lembrança revê,
[e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar
[– como em Chagall.
Agora é só puxar o alarme do silêncio
[que saio por aí a desformar.

 

Referências

BARROS, M. de. Livro sobre o nada. Rio de Janeiro: Record, 1997.         [ Links ]

BARROS, M. de. Memórias inventadas. A segunda infância. São Paulo: Planeta do Brasil, 2006.         [ Links ]

BETTELHEIM, B. Freud e alma humana. São Paulo: Cultrix, 1982.         [ Links ]

ENDO, P. C. Violências, elaboração onírica e horizonte testemunhal. Temas em Psicologia. Sociedade Brasileira de Psicologia, v.17, n.2, 2009.         [ Links ]

FREUD, S. A interpretação de sonhos (1900). In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.IV.         [ Links ]

FREUD, S.. Conferências introdutórias sobre psicanálise: Conferência XI (1915-1916). In: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XV.         [ Links ]

GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. A interpretação do sonho (1900), vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.         [ Links ]

GAY, P. Freud, uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.         [ Links ]

LEVI, P. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.         [ Links ]

PACHECO, E. M. A Tradição do imemorável. Entre a clínica e a literatura. Dissertação de mestrado. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2006.         [ Links ]

ROUDINESCO, E. & PLON, P. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

TEDESCO, S. Literatura e clínica: ato de criação e subjetividade. In: KUPERMANN, D.; MACIEL JR., A. (org.). Polifonias clínica, política e criação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2005.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Dr. florêncio Ygartua, 60/604
90430-010 – Porto Alegre/RS
E-mail: luknijnik@hotmail.com

Recebido: 01/08/2011
Aprovado: 08/09/2011

 

 

Sobre a Autora

Luciana Knijnik
Psicóloga. Mestre em psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Consultora da UNESCO. Conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. Em formação psicanalítica no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

 

 

1Trabalho apresentado na Jornada de 16 de julho de 2011, no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.
2Didier Anzieu (apud ROUDINESCO, 1998) destaca que o título alemão, De Traumdeutung, evoca mais a interpretação popular dos sonhos das adivinhadoras do futuro e da astrologia do que um tratado científico.
3 Em Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise (1932-1936), Freud reformula sua afirmação de que o sonho é realização de desejo para a proposição de que o sonho é uma tentativa de realização de desejo (ENDO, 2009).
4Efeito da censura onírica. Opera pela substituição de um elemento por outro mais remoto, que funcione, em relação ao primeiro, como simples alusão. Outra forma de deslocamento ocorre mudando a ênfase de um elemento importante para outros de menor relevância (FREUD, 1915-1916, Conferência XI).
5 O conteúdo manifesto aparece como uma versão abreviada dos pensamentos latentes (FREUD, 1915-1916, Conferência XI).
6 Aproximação do pensamento diurno. Modificação realizada pelo sonhador para que o sonho ganhe coerência, tornando-se compreensível (GARCIA-ROZA, 1988).
7 Indígenas canoeiros do Pantanal.
8 O quadro, pintado durante cinco meses, retrata o bombardeio de Guernica. No dia 26 de abril de 1937, a cidade basca foi maciçamente atingida pelas tropas franquistas, apoiadas por Hitler. Aproximadamente 40% da população foi  morta ou atingida.
9 Prisioneiro que servia como supervisor do trabalho forçado nos campos, gozando, em troca, de alguns privilégios.