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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.36 Belo Horizonte dez. 2011

 

 

A ética do cuidado na clínica psicanalítica

 

Ethics or care in psychoanalytical clinic

 

 

Marcelo Wanderley Bouwman

Círculo Psicanalítico de Pernambuco
Hospital Barão de Lucena

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo de considerações gerais sobre o cuidado, o texto aborda algumas contribuições ferenczianas para a ética psicanalítica, enfocando a hospitalidade, a empatia e, especialmente, a saúde (cuidado de si) do analista como figuras do cuidado na clínica contemporânea. A questão técnica da transferência negativa na situação analítica é destacada como um momento crucial para o analista e decisivo na travessia de uma análise.

Palavras-chave: Cuidado, Ética, Técnica, Transferência negativa.


ABSTRACT

Starting from general considerations about care, the author approaches the ferenczian contributions to psychoanalytical ethics, and focus the hospitality, the empathy, and specially, the analyst's health (self care), as figures on care in contemporary clinic. There is a particular prominence on the subject of negative transference in the analytical situation as a crucial moment to the analyst and conclusive to an analysis crossing.

Keywords: Care, Ethics, Technique, Negative transference.


 

 

É preciso ter vivido afetivamente, experimentado na carne, para atingir um grau de certeza que mereça o nome de ‘convicção’.
FERENCZI

 

I – Cuidado

A palavra cuidado, segundo os dicionários clássicos de filologia, deriva do latim cura (coera) e era usada em contextos de relações de amor e amizade. Expressava a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pela pessoa ou objeto estimados. Outros filólogos consideram que a origem da palavra encontra-se em cogitare-cogitatus e suas derivações coeydar, coidar, cuidar. O sentido é similar ao de cura: ter atenção, interesse, atitude de desvelo e preocupação. Logo, o cuidado se apresenta quando algo ou alguém tem importância para nós. A dedicação e a disponibilidade de participação, o sentimento de zelo e a responsabilidade realizam o cuidado (SILVA JÚNIOR, 2005).

Nesse sentido, cuidado é um modo de ser no mundo, que fundamenta as relações que se estabelecem com todas as coisas. No jogo de relações, na coexistência e convivência, o ser humano edifica seu próprio ser, sua autoconsciência e sua própria identidade. Segundo Leonardo Boff (2000), existem duas maneiras básicas de existir: pelo trabalho e pelo cuidado. Logo, a construção da realidade passa a ter seu processo emergente a partir dessas dimensões. Para a humanidade, o trabalho se transforma em um modo de ser consciente e assume a marca de um projeto, com suas manobras de modelagem de si mesmo e da natureza. Entretanto, a busca pela superação dos desafios impostos pela natureza levou o ser humano a aprofundar sua capacidade de interpretação e intervenção. Essa racionalidade leva o ser humano a uma objetividade cada vez mais imediata por uma tecnologia que acaba por robotizar e fragmentar a ação humana, distanciando-o da natureza.

Para Boff, cuidar das coisas implica em: ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes sossego e repouso. Cuidar é entrar em sintonia com, auscultar-lhes o ritmo e afinar-se com ele. A razão analítico-instrumental abre caminho para a razão cordial, o espírito da delicadeza, o sentimento profundo. A centralidade não é mais ocupada pelo logos razão, mas pelo pathos sentimento.

Do ponto de vista existencial de Heidegger, o cuidado acontece antes de qualquer comportamento humano, o que significa dizer que é encontrado em toda atitude e situação de fato. O cuidado é o modo de ser essencial da humanidade. Está presente em tudo, portanto é o fenômeno ontológico-existencial básico, quer dizer, fundamental para a interpretação do sujeito (BARRETO, 2000).

 

II – Ferenczi, a ética e a técnica do psicanalista

Passando para o campo da clínica psicanalítica, gostaríamos de pensar inicialmente em uma atitude psicanalítica que seja acolhedora, mas que não infantilize o sujeito; que espere consequências de seus gestos, palavras, atos e ações, sem, no entanto, ser intrusiva; que favoreça a regressão e o relaxamento em busca de acesso aos traumatismos fundamentais do sujeito, mantendo o regime de frustração necessário para viabilizar a travessia da análise; em suma, uma postura que não atenda à maioria das necessidades, desejos e vontades do paciente, mas que o ampare diante do horror do traumático e testemunhe com ele os momentos de júbilo na retomada da ilusão de onipotência, tão importante no desenvolvimento e aquisição do sentido de realidade. 

Para embasar esse pensamento pretendemos fazer uma contextualização de algumas contribuições realizadas por Sándor Ferenczi no âmbito da teoria e da clínica psicanalítica.

Jurandir Freire Costa comenta a ética em Ferenczi:

Uma só intenção move Ferenczi; um único imperativo orienta sua teoria, o imperativo ético. O que fazer diante do desamparo; o que fazer com quem sofre e não pode saber do que sofre; o que fazer quando dependemos da linguagem para ser o que somos, embora venha dela o que nos traumatiza? Diante de perguntas como estas, Ferenczi não hesita: experimenta! Faz, desfaz e refaz. Pensa no impensado, retifica o que pensou, duvida das certezas, e a soma é uma magnífica peça de invenção teórica e sensibilidade clínica (PINHEIRO, 1995, p.9-10).

Ferenczi constrói, desconstrói e reconstrói, realçando o valor da dúvida e o perigo das certezas, dos dogmas e das ortodoxias. Teresa Pinheiro ressalta a perspicácia de Ferenczi:

É a partir de uma história, trágica ou dramática, com seus encontros, desencontros e mal-entendidos, que o adulto pôde “tornar-se”. Enganado por si mesmo, e pelos adultos de sua infância, ele é aquele que traçou o seu caminho como pôde. Suas verdades, seus valores, sua lucidez escondem geralmente alguém que se enganou e se perdeu. A ilusão que ele forja de uma lógica onde tudo se encadeia nada mais é que um outro equívoco, mas é por aí que ele se reconhece. O que ele é e a história de seus investimentos são o seu maior tesouro, mesmo que às vezes seja pesado carregá-lo (PINHEIRO, 1995, p.40-41).

Ferenczi (1992) afirma que “é preciso ter vivido afetivamente, experimentado na carne, para atingir um grau de certeza que mereça o nome de ‘convicção’”.

Os artigos predominantemente técnicos de Freud estão situados ao longo da década de 1910. Com efeito, de 1912 até 1918, Freud escreveu, pelo menos, seis textos fundamentais para o desenvolvimento da técnica. São eles: 1. A dinâmica da transferência (1912), 2. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912), 3. Sobre o início do tratamento (1913), 4. Repetir, recordar e elaborar (1914), 5. Observações sobre o amor transferencial (1915) e 6. Linhas de progresso na terapia psicanalítica (1918).

Após o trabalho de Freud, de 1920, “Além do princípio do prazer”, a compulsão à repetição vai colocar impasses para a clínica psicanalítica. Do ponto de vista da técnica, é Ferenczi quem vai ser o porta-voz do enfrentamento clínico dessas questões espinhosas trazidas com o advento da pulsão de morte no âmbito da metapsicologia e traduzidas por estagnações no processo psicanalítico. Em um certo sentido, podemos pensar as certezas, os dogmas e as ortodoxias como repetições do mesmo e, portanto, representantes no pensamento da pulsão de morte.

De 1919 a 1926, há toda a experimentação com a técnica ativa, que privilegiava a dimensão econômica das pulsões e o princípio da abstinência. As tentativas de revitalizar o processo analítico através de ordens, interditos ou sugestões paradoxalmente vão revelar o potencial de submissão do dispositivo analítico para o paciente. O tratamento clássico reproduzirá, para muitos pacientes difíceis, uma situação de traumatismo infantil vivido pela criança do paciente e repetido transferencialmente na situação analítica. Com as contraindicações da técnica ativa, em 1926, a atenção de Ferenczi se voltará para o potencial regressivo da situação analítica e para o estudo do traumatismo precoce infantil.

Em 1927 e 1928, Ferenczi escreve três artigos fundamentais para o desenvolvimento da técnica psicanalítica, a partir do enfrentamento desses impasses vivenciados na clínica com pacientes traumatizados: “A adaptação da família à criança” (1927), “Elasticidade da técnica psicanalítica” (1928) e “O problema do fim da análise” (1928). Explicita em cada um deles, e em seu conjunto, os princípios éticos que o analista deverá cultivar no cuidado “flexível” com estes doentes.

 

III – Hospitalidade

Em “A adaptação da família à criança” (1927), Ferenczi falará da importância da hospitalidade nos primeiros anos de vida. Este ensaio constitui um marco na história da psicanálise. Em meio às questões trazidas por Otto Rank sobre o trauma do nascimento, Ferenczi opera uma efetiva mudança de paradigma teórico: seu olhar passou a recair não mais na pressuposta experiência individual do sujeito pulsional e na evidente adaptação do bebê ao seu meio, mas ressalta a percepção de que cabe ao ambiente se adaptar àquele que chega, acolhendo-o de maneira ativa. Assim, o estado de desamparo primordial só se tornará traumatizante se receber como destino as figuras do abandono ou da intrusão, tão presentes na clínica dos ‘pacientes difíceis’ que buscavam socorro no divã de Ferenczi. É justamente a ênfase no ambiente e nas experiências transubjetivas o que lhe permite afirmar alto e bom som que “o nascimento é um verdadeiro triunfo”. De fato, na experiência do nascimento, não apenas o bebê está pronto como também a família busca se adaptar às particularidades do novo membro – seja protegendo-o da intensidade dos estímulos externos, seja atendendo prontamente às suas necessidades. Assim, as primeiras experiências vitais do bebê trariam a marca da alegria de existir e da exuberância onipotente, que favoreceriam o gesto espontâneo e a expansão psíquica em direção à constituição do campo dos objetos e também ao sentido de realidade (KUPERMANN, 2009). Podemos intuir que Ferenczi se antecipou a Winnicott.

Complementando este trabalho, em “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” (1929), Ferenczi irá falar dos pacientes traumatizados como tendo sido “hóspedes não bem-vindos na família”. Foram “crianças que registraram bem os sinais conscientes e inconscientes de aversão ou de impaciência da mãe” e tiveram “sua vontade de viver desde então quebrada. Os menores acontecimentos, no decorrer da vida posterior, eram bastantes para suscitar nelas a vontade de morrer”. Possuíam uma capacidade insuficiente de adaptação e quando não utilizavam um dos numerosos meios orgânicos para desaparecer rapidamente, conservavam um certo pessimismo, ceticismo e desconfiança como traços de caráter, além de algum grau de infantilismo emocional. Diante de tais casos de diminuição do prazer de viver é que Ferenczi fez suas tentativas de elasticidade da técnica, quando se viu pouco a pouco na obrigação de reduzir cada vez mais as exigências quanto à capacidade de trabalho dos pacientes:

Deve-se deixar, durante algum tempo, o paciente agir como uma criança [na situação analítica, permitindo-lhe] “desfrutar pela primeira vez a irresponsabilidade da infância, o que equivale a introduzir impulsos positivos de vida e razões para se continuar existindo. Somente mais tarde é que se pode abordar, com prudência, essas exigências de frustração, que, por outro lado, caracterizam as nossas análises (FERENCZI, 1992, p.51).

Ao preconizar o princípio do relaxamento na situação analítica, Ferenczi pretendia dar espaço às vivências traumáticas da infância. Diferentemente da técnica ativa, o relaxamento e a neocatarse buscam uma repetição diferenciada, na medida em que o analista age de forma diferente daquela vivida pelo paciente na infância. A posição do analista precisa oscilar entre a frustração e o acolhimento benevolente (MAIA, 2003). De acordo com Ferenczi (1992), “a semelhança entre a situação analítica e a situação infantil incita mais, portanto, à repetição; o contraste entre as duas favorece a rememoração”(FERENCZI, 1992, p.76).

 

IV – Empatia

Em “Elasticidade da técnica psicanalítica” (1928), Ferenczi destacará o valor da empatia na situação analítica e do tato psicológico do analista frente às singularidades do paciente e às dificuldades de cada caso. Do mesmo jeito que a família precisa se adaptar às necessidades da criança, a técnica do analista deverá ser flexível e elástica para acolher e entrar em sintonia com o infantil presente em cada paciente adulto.

A empatia é a tendência do analista ser sensível às comunicações verbais e não verbais de seu paciente, podendo colocar-se em seu lugar, sem, entretanto, perder os referenciais próprios e, a partir de então, sentir e pensar como se fosse o paciente. A empatia, dessa forma, indica uma habilidade relacional de identificação (KAHTUNI, 2009). Postular que sentimentos e ideias de analista e paciente podem entrelaçar-se e que o outro à minha frente não é “uma representação de meu ego”, mas um ser real com quem posso me identificar, explicita um reconhecimento do outro em termos éticos, em uma amplitude até então pouco valorizada nos textos psicanalíticos (COELHO JÚNIOR, 2004).

O tato psicológico, por sua vez, designa tanto a capacidade do analista de distinguir e escolher o momento justo da intervenção terapêutica adequada quanto o modo de realizar essa intervenção. O tato se relaciona com o ritmo e o tom da intervenção.

Para Ferenczi, os processos empáticos, de tato e de avaliação crítica de um analista bem analisado, não se desenrolarão no inconsciente, mas no nível pré-consciente. Ou seja, antes de valorizar a empatia como a marca do inefável, que teria sua origem nas profundidades de um insondável inconsciente, Ferenczi criteriosamente situa a possibilidade empática de um analista (diríamos ‘bem analisado’) no nível pré-consciente.

 

V – Saúde do analista

Com efeito, para Ferenczi, a análise profunda do analista seria a segunda regra fundamental da psicanálise. Enquanto a regra fundamental (o uso da associação livre pelo paciente e da atenção flutuante pelo analista) é uma recomendação técnica que visa à instauração da situação analítica, a segunda regra é, em especial, uma exigência ética, ressaltando a responsabilidade do analista na condução do processo de seus pacientes e a única base confiável para uma boa técnica analítica.

Em outro trabalho (BOUWMAN, 2009) procuramos demonstrar como Ferenczi, ao longo de sua trajetória clínica, esboçará uma “metapsicologia dos processos psíquicos do analista durante a análise”, revelando a complexidade do trabalho do analista. Ferenczi (1919) descreveu as diferentes tarefas do analista durante cada sessão – atenção flutuante, controle da contratransferência e atividade intelectual – e, em “O problema do fim da análise” (1928), insistiu que, para exercer a sua função, é indispensável para o analista uma análise profunda, destacando o difícil lugar do analista como objeto da transferência. Diante da dificuldade e especificidade de seu ofício, o analista precisa cuidar de sua saúde.

No decorrer de sua longa jornada de trabalho, [o analista] jamais pode abandonar-se ao prazer de dar livre curso ao seu narcisismo e ao seu egoísmo, na realidade, e somente na fantasia, por breves momentos. Não duvido de que tal sobrecarga – que, por outra parte, quase nunca se encontra na vida – exigirá cedo ou tarde a elaboração de uma higiene particular do analista (FERENCZI, 1992, p.40).

Cabe nesta reflexão ampliar o cuidado de si do analista para além de sua análise pessoal. As questões que se colocam agora são de como o analista repõe as suas reservas anímicas (também as corporais e as mentais) para um bom exercício de sua função e de como o analista se posiciona eticamente, perante a cultura atual e, por que não dizer, politicamente também.

Sobre hospitalidade, empatia e saúde do analista me reporto a uma entrevista de Adam Phillips, psicanalista inglês, lida recentemente, na qual ele ressalta, como única exigência para aceitar um paciente, a de que se sinta “sensibilizado com aquilo que faça o paciente sofrer”. Sobre o fato de cobrar quantias modestas por uma sessão, Phillips afirma: “Não quero fazer parte da cultura que acredita que uma coisa é boa se for cara”. Sobre raramente aceitar celebridades como pacientes, ele reforça: “Essa é exatamente a cultura da qual eu não quero fazer parte”. Furtando-se a conferências profissionais, Phillips prefere falar a estudantes universitários, que “têm mais vida, são mais engajados, mais apaixonados e mais destemidos” (NAPARSTEK, 2010). São exemplos que dão conta de um posicionamento do analista que visa, entre outras coisas, manter a sua saúde.

Entramos inevitavelmente no campo da singularidade de cada analista e de suas idiossincrasias. Para cuidar dos outros é necessário cuidar de si mesmo, logo a dinâmica existencial entre saúde e doença do analista deve interferir em cada análise sob sua responsabilidade, em cada paciente sob seus cuidados.

 

VI – Xeque ao rei!

A figura do analista está em xeque, mas dispõe de boas e diversas defesas para escapar do mate! Desenvolvendo um pouco mais essa metáfora, existem três defesas possíveis contra um xeque no jogo de xadrez. Capturar a peça agressora, colocar uma peça de defesa entre a agressora e o rei ou movimentar o próprio rei. O analista pode se defender da “violência” transferencial com uma reação contratransferencial (atuação), com um ato interpretativo (análise) ou dando movimento à sua autoanálise (primeiro, sobrevivendo aos ataques, depois, controlando e analisando a sua contratransferência).

Não se trata de abafar uma reação agressiva nem de medir forças com o analisante, mas de manter a análise no nível simbólico, promovendo, quando possível, insights e transformações. A ideia de elasticidade da técnica trazida por Ferenczi diz respeito à atitude do analista de procurar colocar-se no diapasão afetivo do paciente, sentir com ele todos os seus caprichos, todos os seus humores, mas também ater-se com firmeza, até o fim, à posição analítica ditada pela experiência. O essencial é a sobrevivência do analista aos ataques, como bem colocou Winnicott, ressaltando a importância de não haver retaliação por parte do analista. Com autocontrole e controle da contratransferência, o analista pode parecer agir como um joão-bobo, segundo a descrição de Ferenczi (1992):

O analista no tratamento deve prestar-se, às vezes durante semanas, ao papel de “joão-teimoso”, em quem o paciente exercita seus afetos de desprazer. Se não só não nos protegermos, mas, em todas as ocasiões, encorajarmos também o paciente, já bastante tímido, colheremos mais cedo ou mais tarde a recompensa bem merecida de nossa paciência, sob a forma de uma nascente transferência positiva (FERENCZI, 1992, p.35).

A transferência negativa, muitas vezes, coloca o analista em seu limite, assim como pode levar o processo a impasses difíceis de superação. Analisando a sua contratransferência, o analista põe em movimento a sua autoanálise e busca uma mudança de lugar, tenta sair de sua paralisia e encontrar novamente o fio que o orientará no labirinto que se transformou aquela análise.

Nessa perspectiva, o bom terapeuta deve ser um mestre na arte da defesa, recusando-se a empreender contra-ataques violentos e buscando recursos para lidar com os artifícios e artimanhas de seu parceiro. Trata-se de um parceiro, não de um adversário, logo o jogo precisa continuar até atingir o seu objetivo: desmontar o arsenal bélico do sujeito e transformá-lo através da análise da agressividade e da sexualidade. O ponto nevrálgico do jogo é justamente a vivência da transferência negativa, agressiva ou erótica, por parte dos dois participantes.

A verdadeira arte da defesa é aquela que promove, juntamente com a sobrevivência do terapeuta, o potencial simbólico do encontro. Através de insights, o paciente vai desconstruindo a sua couraça narcísica e adquirindo mais porosidade e sensibilidade. Novos pontos de contato são acionados, trocas mais satisfatórias começam a acontecer neste novo território.

Muitas vezes é com humor que o sujeito se depara com a habilidade defensiva e simbólica do terapeuta. Para que tanto esforço, tanta luta, tanta agressividade, tanto sadismo, tanta inveja? O humor é um dos meios de desestabilizar a tática de guerra do indivíduo: lance inusitado que faz a pessoa desconfiar de si mesma, de suas intenções, de seus objetivos.

A questão da neutralidade benevolente e do não envolvimento subjetivo do analista diante da pessoa que o procura é o que está efetivamente em xeque nas nossas reflexões. Colocar-se empaticamente no lugar do outro, respeitando a sua individualidade e o seu ritmo de caminhar, sem querer influenciá-lo ou educá-lo, é o que se espera do analista. Mas até que ponto isto é possível e desejável? Qual o lugar dos valores e dos ideais suspensos do analista durante a travessia analítica? Como se manifesta a singularidade do analista frente à alteridade do paciente?

Lembramos Ferenczi (1992), quando diz que “todo paciente, sem exceção, registra as menores particularidades do comportamento, da aparência exterior, da maneira de falar do médico”(idem, p.35). “Os pacientes perspicazes não tardam em desmascarar toda pose fabricada” do analista (idem, p.37).

Mais do que neutralidade deveríamos falar da presença reservada do analista e de sua implicação pessoal em alguns momentos cruciais da travessia analítica.

Uma situação pouco relatada é a vivida pela dupla terapêutica quando o analista passa por um período de fragilidade ou de vulnerabilidade. Quais as repercussões, na situação analítica, quando o analista atravessa uma doença ou um recente trabalho de luto? Como proceder de modo coerente diante de cada paciente?

Anos atrás, uma colega psicanalista foi surpreendida por uma crítica severa de uma paciente: “Vocês, psicanalistas, são muito dissimulados. Minha amiga fez um contrato com uma colega sua em dezembro do ano passado e ela morreu em fevereiro do ano seguinte, ou seja, três meses depois. Essa sua colega estava morrendo de câncer, doente há muito tempo, e omitiu o fato num contrato que seria de longo prazo! Não considero essa uma atitude honesta!” Não havia contestações a serem feitas, apenas concordar com a indignação da paciente. São situações delicadas, muito comuns na clínica de cada analista, e que pouco se discutem nas jornadas e nos congressos psicanalíticos.

Neste momento de nossa reflexão, estamos satisfeitos em levantar esses questionamentos, deixando o aprofundamento dessa problemática para pesquisas futuras.

 

Referências

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Endereço para correspondência
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Tel.: (81)3267-7753 / 9975-8028
E-mail: marcelo.bouwman@gmail.com

Recebido: 04/08/2011
Aprovado: 29/08/2011

 

 

Sobre o Autor

Marcelo Wanderley Bouwman
Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Pernambuco. Médico da Clínica de Psicossomática e Saúde Mental do Hospital Barão de Lucena / SUS.