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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.36 Belo Horizonte dez. 2011

 

 

Ainda em cartaz, "Estamira": A Psicanálise nas telas do Cinema

 

Still in theaters, "Estamira": Psychoanalysis in Cinema screens

 

 

Thiago Robles Juhas I; Niraldo de Oliveira SantosII

I Centro de Estudos em Psicologia da Saúde
II Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo discutir e articular as relações entre o cinema e a Psicanálise. Para isto, utilizou-se do documentário Estamira, de Marcos Prado, 2006. O filme retrata a história de uma mulher que sofre de transtornos mentais e trabalha, há anos, no hoje extinto aterro sanitário na cidade do Rio de Janeiro. O Cinema, como expressão de arte, se relaciona com a Psicanálise de diversas formas, pois também trata da subjetividade dos participantes na produção cinematográfica. O diretor, sem ter a intenção de qualquer expressão psicanalítica, assume um lugar de objeto que escuta e deseja desvendar o saber da personagem, o que se assemelha à função de um analista. Estamira transmite aos telespectadores sua narrativa da verdade, seu discurso contundente que, na mesma enunciação impacta, confunde e toca. Na psicose, como é caso de Estamira, os delírios da personagem tentam responder a eventos traumáticos inassimiláveis, são respostas a circunstâncias compostas de grande sofrimento; a personagem elucida o mecanismo de produção delirante ao mostrar, em sua história de vida, que a única resposta possível encontrada às violências que vivenciou, foi o delírio.

Palavras-chave: Psicanálise, Cinema, Psicose, Delírio.


ABSTRACT

This paper aims to discuss and articulate the relationship between cinema and psychoanalysis. To achieve this goal, it was analyzed the documentary Estamira, of Marcos Prado, 2006. The film tells the story of a woman suffering from mental disorders who had worked for years at the sanitary landfill (a dump) in the city of Rio de Janeiro. Cinema as an expression of art relates to various forms of psychoanalysis, they also deals with the subjectivity of those involved in film production. The director, despite not having a prior intention, holds a place of psychoanalytic object and listens carefully, which resembles the function of an analyst. Estamira passes her narrative of true that is outstanding, but in the same time confuses and impacts. In psychosis, the case of Estamira, the delusions is an answer for traumatic events that could not be assimilated, they are responses to circumstances of great suffering. The character elucidates the mechanism of delusion, showing that the only possible response to the violence she experienced was the delusions and hallucinations.

Keywords: Psychoanalysis, Cinema, Psychosis, Delusions.


 

 

Apresentações

"A minha missão, além de eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não".

 

O que pensar destas palavras que, ao mesmo tempo, dizem algo que não tem sentido, mas aparentam ter algum tipo de significado? Quem tem ouvidos, que ouça! No ano de 2000, Marcos Prado, diretor e fotógrafo, realizava um trabalho fotográfico que já durava cerca de seis anos no aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Em meio ao ambiente fétido e imundo que o rodeava, ele encontra uma senhora, com roupas e postura peculiares, contemplando a paisagem do lixão. Pede a ela autorização para fotografá-la. Esta consente, com a condição de que, depois, ele sentasse para conversar. Na prosa com Marcos, a excêntrica senhora conta que mora em um castelo, enfeitado com lixo e fala sobre o mundo, as pessoas, e coisas que, às vezes, parecem não fazer muito sentido aos que a ouvem.

Marcos se encanta com o discurso daquela senhora, discurso bem diferente e, por vezes, confuso. Eles se tornam amigos e, certo dia, ela lhe pergunta qual seria sua missão. Antes que ele pudesse responder, ela diz que a missão dele era a de revelar a verdade dela. Desta forma, Marcos Prado decide fazer um filme sobre sua vida e nomeia a produção com o nome da senhora: Estamira. O presente trabalho tem como objetivo tecer algumas considerações sobre Estamira, o cinema e a psicanálise.

 

A personagem e a sua história

Estamira, filme de Marcos Prado (2006), conta a história de Estamira, uma mulher que sofre de transtornos mentais, vive e trabalha, há mais de 20 anos, em um aterro sanitário. Uma pessoa de olhar e expressão de quem já sofreu muito ao longo da vida, uma mulher de vida árdua, que fala sozinha, ouve vozes e, quando se refere a Deus, o faz com catarse, proferindo inúmeros palavrões. Trata-se de uma figura muito carismática e respeitada no extinto lixão da capital carioca. Sua história é marcada por violência e rupturas, dentre elas: os estupros, a prostituição, as traições vivenciadas em seus dois casamentos, o distanciamento de sua filha mais nova, a dependência alcoólica e o fato de ter sido moradora de rua. Ao assistir o documentário, pode-se acompanhar o seu tratamento psiquiátrico na rede pública: os médicos a diagnosticam como portadora de quadro psicótico de evolução crônica, alucinações auditivas, idéias de influência e discurso mítico. As filmagens duraram quatro anos, sendo que o início da produção coincide com o começo do tratamento psiquiátrico; assim, o filme retrata e acompanha as mudanças de comportamentos e as mudanças do discurso da personagem, provavelmente em consequência dos efeitos (colaterais) dos medicamentos, que toma diariamente. Os filhos de Estamira também participam do filme, contam sobre seu passado trágico e mostram como é viver ao lado de alguém com esquizofrenia. Já a personagem conta pouco de sua história e fala mais de sua "verdade" e de sua "missão".

O filme sensibiliza quem o assiste, pois as falas e os significantes contundentes dos personagens chocam, sua narrativa parece possuir diversos significados que, às vezes, escapam do espectador. É preciso assisti-lo e ouvi-lo, mais de uma vez, porque, só assim, é possível supor uma compreensão acerca da seqüência discursiva da personagem quando esta fala de coisas reais, concretas, sofridas, de traumas que podem ser de difícil compreensão para quem nunca vivenciou tais sensações em sua vida. O diretor apresenta, através do gênero documentário, o mundo da personagem como ele realmente é. Há momentos em que o filme mostra apenas lixo, podridão, miséria, coisas concretas, que rodeiam o mundo de Estamira: tentativas de metaforizar o real?

 

Aproximações possíveis entre cinema e psicanálise

O documentário pode ser caracterizado como uma construção da realidade humana (a partir da visão do diretor), que conta com a subjetividade de quem o produz com um objetivo e transmissão de valores. É arte como expressão da verdade; a vida como ela é, sendo que, por vezes, há intenções político-partidárias – o desejo do diretor? De certa forma, o cinema, como ficção ou irreal, representa a realidade transformada em arte, que trabalha, quase sempre, retratando as produções humanas, fato este que chama a atenção de quem estuda e se utiliza da psicanálise. Segundo Penafria (1999, p.17) "um documentário pauta-se por uma estrutura dramática e narrativa, que caracteriza o cinema narrativo. A estrutura dramática é constituída por personagens, espaço da acção, tempo da acção e conflito".

O cinema e a psicanálise tiveram seu nascimento em épocas semelhantes, no final do século XIX, quando o conhecimento científico e as novas formas de tecnologia avançavam de modo exponencial. A psicanálise vê e observa um mundo de representação e memória, toma o homem para além do corpo e, sem excluí-lo, procura desvendar os anseios e vicissitude da alma humana. Se a psicanálise como ciência e técnica se aprimorava, o cinema cada ano se utiliza de novas tecnologias ópticas para ampliar o olhar, para operar no universo do fantástico e construir expressões de realidades de formas jamais vistas. Segundo Froemming (2004), o cinema constrói, desmembra e fragmenta o racional e a fantasia e, de maneira similar à psicanálise, investiga, constrói e desconstrói a racionalidade, aprende e formaliza um olhar científico ao que não opera logicamente. Ambos, os filmes e a teoria psicanalítica acerca da construção da realidade, são frutos da união da ciência, razão e irracionalidade, e sem dúvida, pode-se afirmar que o cinema e a psicanálise contribuíram para a construção da subjetividade e seu acesso a ela, ao longo de todo o século XX, e até os dias de hoje.

Segundo Fernandes (Fernandes, 2005, p.69), ambos tratam dos sonhos e expressam, por meio de imagens e sons variados, as emoções humanas, "O homem busca no escuro do cinema o isolamento do mundo para viver uma experiência imaginária com todas as emoções proibidas e perigosas; sai delas como se despertasse de um sonho"

Os filmes podem ser a expressão de uma dimensão onde não há falhas, tudo pode ser bem organizado, mesmo quando se trata de temas complexos e problemáticos, onde sempre é possível um "então viveram felizes para sempre..." Ao lado dessa dimensão do ideal e fantástico, do integrado e alienante, há, também no cinema, imagens que propõem questões aos espectadores e problematizam a realidade. As produções cinematográficas sempre comunicam algo, uma mensagem por vezes, mais ou menos clara, muito ou pouco política e que possui diferentes gêneros, como por exemplo, a comédia, o drama, o terror, o suspense e o romântico. A prática e costume de ir ao cinema ou assistir um filme com outra pessoa, já está incorporada em muitas culturas como meio de se fazer laço social, como por exemplo, encontros de amigos, pais separados que levam seus filhos ou casais que se enamoram nas salas de cinema.

Os gêneros cinematográficos possuem funções distintas: a comédia para quando se está triste ou para desfrutar o momento com amigos; o drama e o suspense para fazer refletir e questionar-se; o romance para cativar um outro de quem se quer aproximar ou, até mesmo para, sozinho, elaborar os desenlaces das relações. Existem, também, os gêneros mais explícitos como é o caso dos filmes adultos que tem muitos desdobramentos psíquicos como o fetiche e a compulsão sexual.

A arte, incluindo o cinema, desperta no homem o que nele há de mais importante e problemático: traz à tona seu particular, seu "buraco", aquilo que o faz sujeito. A psicanálise tem sua matriz implicada com a arte, na tragédia de Édipo, na dúvida de "ser ou não ser" de Hamlet. Mesmo que Freud não tenha escrito nada sobre o cinema, a arte foi trabalhada e teve importância ao longo de sua obra. Artistas como Leonardo e Michelangelo contribuíram com a obra psicanalítica. Assim como a análise dos textos de Schereber, o legado de Freud sobre a psicose e a obra Gradiva de Jansen são contribuições literárias e artísticas que formalizam a psicanálise como ciência humana. Segundo Ide (2008), as imagens em movimento, os sons, as impressões obtidas a partir da experiência de assistir um filme, todos estes elementos absorvidos pelo aparelho psíquico, são, sempre, recobertos por sentimentos e afetos que, às vezes, são recalcados, simbolizados, sublimados ou somatizados.

 

O que é tão estranho em Estamira?

Estamira é um documentário didático ao mostrar os alcances da relação entre cinema e psicanálise. Talvez um dos aspectos mais importantes do filme seja demonstrar a função e a importância da escuta, pois ouvir o outro nem sempre é fácil; escutar do outro sobre o que nos é diferente ou muito semelhante, escutar sobre a dor ou morte é, muitas vezes, insuportável. Entretanto, não é isso mesmo que faz a psicanálise? Escutar o sujeito? Até que ponto se escuta os outros fora de um dispositivo analítico, suas fantasias, seus delírios ou pergunta-se: o que se escuta de Estamira?

Há momentos do filme em que não se pode discordar do que a protagonista fala; em outros, há um estranhamento profundo, mas, estranho mesmo, é que o conteúdo de sua narrativa, em alguns momentos, também nos é familiar. O telespectador reconhece, tomado de angústia, o abandono da personagem por parte dos pais, dos cônjuges, da sociedade e de deus. Quem assiste Estamira, certamente, se recorda de que existem pessoas que vivem no lixo, no refugo, que são tratados como abutres, que vivem à borda, sujeitos com famílias sustentadas pelo que se obtêm do lixo. Como não estranhar tal situação. Como não se incomodar com as narrativas de Estamira?

Em seu artigo "O Estranho", Freud (1919) aborda o fenômeno da estranheza, como aquilo que, um dia, já foi familiar, ou seja, ao se deparar com alguma imagem ou sensação qualquer, ocorre o retorno de uma percepção que, em um algum momento anterior, era conhecida, e, no estado atual, é percebida como estranha. Através da sobreposição do percebido da realidade externa e do vivido no mundo interno o elemento chave da situação de estranheza, foi, outrora, esquecido ou reprimido. O conceito freudiano diz respeito à ideias que se associam ao retorno de uma cena que foi reprimida, fato que provoca, indubitavelmente, uma sensação de desamparo e angústia. Acompanhando a mesma lógica da negação, o conceito de estranho em Freud indica o recalque, demonstra situações em que o que deveria permanecer obscuro é trazido à luz, irrompe na consciência, ou seja, o que se apresenta como estranho está vinculado, de alguma forma, com o que é familiar. O estranho provem de que algo recalcado pode retornar, não importando se o elemento em questão já era originalmente assustador ou pertencente a qualquer outro tipo de afeto, mas, quando retorna, angustia.

O filme, desde o seu início, causa estranhamento e, quem assiste se pergunta: que realidade é essa? As imagens aparecem como se fossem de um mundo diferente, um mundo fora da realidade. As primeiras impressões são de um lugar sem forma, sem matéria, que tem um aspecto sombrio. Os primeiros minutos de filme são formados por palavras que, parecem não ter sentido, paisagens sem forma e sem contorno. Reconhece-se a miséria. O retorno do recalcado dos telespectadores se atualiza nas cenas do lixo, do dejeto, do que pode ser descartado, na solidão, na fome, atributos que retornam á consciência, mas, melhor seria se de lá não tivessem saído. O que fica sob recalque, primordialmente, é o fato de que todo o lixo mostrado é familiar. É conhecido dos telespectadores e de todos os homens, de maneira geral, pois todos são produtores de lixões. Os restos amontoados mostrados por Marcos Prado, que estão em estado de putrefação, já estiveram em nossas mãos. Assim vemos os dejetos por nós produzidos e descartados, queremos esquecê-los, negamos sermos responsáveis pela formação de montanhas de lixo, que, inclusive, destroem o meio ambiente. Segundo Rinaldi (2008, p.63) "é o resto que retorna e que incomoda".

 

Esta que "mira" o social

O discurso de Estamira problematiza o lixo como uma representação da própria condição do homem, do quanto o homem se apega ao desnecessário, e como a sensação de prazer trazida por este nos torna escravos do imediato, da máxima, "usou jogou fora". O filme e a personagem denunciam o desamparo humano; não só o biológico ou familiar, mas, também, o social, o econômico e o político. Estamira, essa que olha, é uma idéia, um estado de espírito no qual o ser humano pode ser mais autêntico. É uma resposta à negligência social. Sabe-se dessa realidade, pois ela é vista todos os dias, mas é esquecida, é recalcada. Mas, no entanto, ela retorna. A narrativa da personagem apresenta uma série de elementos politicamente corretos, demonstra códigos sociais estabelecidos, deflagra e denuncia alguns comportamentos humanos.

A denúncia alcança muitos níveis, tais como: o uso inadequado dos bens, o desperdício, o questionamento da educação do país conceituando os homens da atualidade como indivíduos assujeitados, uma vez que, só reproduzem e não possuem autonomia. Da mesma forma, critica o tratamento psiquiátrico sem o cuidado de particularizar os sujeitos, generalizando e homogeneizando o que deveria ser o mais particular, o sofrimento psíquico.

 

O desamparo e a denuncia da "verdade"

O olhar de Estamira assusta. É possível ver em seus olhos que experimentou muito sofrimento ao longo de sua vida. O documentário revela sua história, que vai sendo desvendada aos poucos. Demonstra seu cotidiano, a subjetividade, o modo de estar no mundo da personagem e os seus delírios. Seu discurso é, muitas vezes, um trocadilho, um equívoco, bem como se utiliza de uma entidade, por ela criada, o "trocadilo", esta criação mítica, segundo Estamira, é responsável pelos equívocos que viveu e os mal-entendidos que existem no mundo que a rodeia.

Às vezes, é difícil compreender a sonoridade das palavras da personagem; é curiosa a diferença que há entre assistir o filme com ou sem legenda, pois sem esta, a compreensão do que diz Estamira conta muito mais com a interpretação e a subjetividade de quem ouve. A personagem se utiliza da imaginação e busca a sua verdade. Ela se impõe com uma força narrativa que traduz suas experiências violentas: explorada sexualmente quando criança, traída pelo marido na fase adulta e estuprada já idosa.

Estamira fala quase o tempo todo; seu discurso extravasa todos os sentimentos contidos em frases com palavras conhecidas se misturando com neologismos. A narrativa se une com uma trilha sonora angustiante e as imagens de um lixão: tudo impacta, tudo é tão real. Estamira tem "verdades" a serem reveladas ao mundo. A verdade por ela relatada, como afirma uma de suas filhas, são palavras que abalam profundamente, mas, logo em seguida, se perdem quase por completo. Sabe-se que a oferta cria a demanda: Estamira demanda aos seus telespectadores sua narrativa da verdade, seu discurso poético e delirante, que na mesma enunciação ensina e confunde, e, como bem disse sua filha, ‘balança’, faz com que pesemos nossas certezas e nossas ‘verdades ao contrário’, como ela diz. De certo modo, a personagem se assemelha a todos nós, uma vez que, de acordo com Ventura (2008, p.144) "muitas vezes buscamos a nossa própria verdade e porque não dizer a nossa missão".

 

Delírio, a borda do real

O diretor oferta a escuta, assume a missão que lhe foi dada por Estamira. Por mais arrogante, verbalmente agressiva e desagradável que a personagem possa se mostrar, Marcos Prado dá voz a seus delírios, sustenta uma ética de caráter psicanalítico, a ética da escuta. O filme aborda a psicose e a escuta do seu dizer. O delírio é um dos pontos principais tratados no filme, a personagem elucida o conceito ao mostrar em sua história que a resposta encontrada para os abusos e as violências a que foi e é submetida, foi uma resposta delirante, pois Estamira é convocada a responder onde não pode, e assim responde com o delírio. Os delírios são respostas a circunstâncias de sua vida composta de grande sofrimento e encontros com ‘tudo que é tão real’.

Segundo Leite (2006) o encontro com a real falta do objeto, ou seja, qualquer evento que apresente status traumático, faz com que algo se estruture no psiquismo. Na neurose há o recalque e uma resposta ao trauma com uma fantasia e com o simbólico. Na psicose, como é o caso de Estamira, é o delírio que tenta responder ao traumático inassimilável.

A história de vida da personagem demonstra que ela foi uma mulher saudável até o período da vida em que os sucessivos encontros com a violência e as situações que não podiam ser elaboradas de forma neurótica, a levaram a não mais acreditar e sentir, como ela fazia até então. Anteriormente, Estamira era uma pessoa com valores religiosos que acreditava em um deus, protetor e bondoso. Era, também, uma boa mãe, contida e controlada.

É importante ressaltar que o delírio não é a psicose propriamente dita, e, sim, uma tentativa de tratamento desta. É o restabelecimento das relações libidinais com os objetos anteriormente abandonados (Leite, 2006). Trata-se de uma tentativa de recobrir um buraco e da falta de operações simbólicas: o fenômeno oferece contorno ao que não pode ser simbolizado. A esquizofrenia constitui casos em que é difícil compreender a pessoa analiticamente, pois há um total retraimento da libido, o que dificulta o estabelecimento da transferência; contudo, o possível tratamento da esquizofrenia também se dá na escuta analítica em que o objetivo é da reconstrução da história do sujeito.

Segundo Sousa (2007), os delírios da personagem de Marcos Prado, se não considerados como uma história individual e particular, são entendidos apenas como loucura. Aos olhos dos outros, é reconhecida como louca, não tem crédito, não se pode compreender, não consegue compartilhar opiniões e crenças. Contudo, o diretor permitiu a fala de uma realidade facilmente encontrada por muitos, inclusive moradores de rua e pessoas que também vivem na borda de um país e de um mundo que não quer saber, e prefere continuar vivendo adormecido em relação a situação da exclusão dos portadores de transtornos mentais. A partir do "Caso Estamira" torna-se possível, ainda, notar o estigma e o preconceito que as pessoas acometidas por transtornos mentais, inclusive os transtornos psicóticos, ainda sofrem da sociedade. Inclusive com os próprios filhos, que, por vezes, falam das dificuldades de se ter uma mãe com transtorno mental.

 

A escuta e a transmissão: tarefas distintas

Pensando o documentário como uma transmissão de conceitos psicanalíticos, é possível analisar o tratamento da psicose que ele opera em Estamira, na medida em que Marcos Prado permite que fale e a deixa delirar, de modo a não barrar ou impor testes de realidade. Marcos Prado, sem ter a intenção de qualquer expressão psicanalítica, assume um lugar de objeto que escuta e deseja saber do saber da personagem, o que caracteriza de forma bem consistente a função de um analista, que, tal como o fotógrafo, constrói um relato de caso.

A escolha do diretor sobre o que foi mostrado no documentário considera importantes elementos da subjetividade de Estamira; o diretor oferece a sua escuta à personagem que sofre e necessita dar voz ao seu mundo mental. A construção de Marcos Prado partilha elementos em um trabalho conjunto: personagem e diretor.

É importante diferenciar que construção não é o mesmo que interpretação. A construção do documentário é direcionada para o arranjo dos elementos do discurso de Estamira, visando demonstrar a história e as condutas da personagem. Já a interpretação visa um sentido – não há no filme uma interpretação direta –, mas fica a cargo de quem assiste interpretar Estamira: ela é louca, é sabia, é doente, é lúcida, é somente uma vítima? O que ela é mesmo?

O diretor do documentário registrou algumas cenas com cores vivas e iluminação ao natural; em outras, aplicou o efeito de preto-e-branco quase chegando à desintegração da imagem, formas cinematográficas que dão maior destaque ao lixo e a miséria. Durante anos seguidos visitou Estamira e seus filhos, seus companheiros os catadores de lixo que, assim como ela, moram no enorme e insalubre depósito de lixo da cidade do Rio de Janeiro.

Marcos permite que ela se faça ouvir e registra sua revolta contra um deus estuprador e médicos copiadores de receitas. O diretor, como o analista, busca o singular de quem filma/ouve, por meio do caminho que o sujeito percorre: não atrapalha a caminhada, segue a direção – no caso do filme – que Estamira lhe aponta e transmite o caminho solitário que ela percorreu em sua vida.

A partir da psicanálise, o analista propõe ao paciente que não deixe nada de lado em sua fala. O paciente é levado a falar sobre todos os assuntos possíveis, mesmo detalhes que parecem desprezíveis: a regra fundamental é a associação livre. Em contrapartida, no cinema há uma seletividade na inclusão de cenas que se impõe desde o princípio; nem toda imagem é importante para o diretor e para a composição do filme. O cinema quebra a regra fundamental da psicanálise, pois toma algumas cenas como irrelevantes, sem importância, ou absurdas. Tanto no processo de análise, quanto no cinema, quando se interrompe uma sessão ou se sai da sala após o término de um filme, os efeitos continuam a repercutir para alguns sujeitos e, por vezes, levam dias para passar. Tal é o caso da angústia ou do "estranho" que são despertados em determinado momento da análise.

Os elementos utilizados por Marcos Prato são similares à construção de um caso clínico em psicanálise. Não é igual a um caso clínico, pois, segundo Figueiredo (2004), diferente dos casos "psicanalíticos" que têm como objetivo transmissão e construção da psicanálise, o documentário conta com uma posição ativa do diretor, uma vez que ele sai de uma posição exclusiva de escuta, para a de amigo, companheiro e provedor econômico de Estamira, papéis que não cabem a um analista. Pensado como um "caso clínico" o filme é didático, mostrando de forma ímpar o que é a psicose – já que nesta o inconsciente está a céu aberto. O diretor, na montagem final, encontrou elementos do discurso da personagem ao pé da letra, incluiu as ações, demonstrando que estas são norteadas por uma posição no discurso determinada por Estamira. O relato se apresenta rico em detalhes, cenas e conteúdos. O diretor jamais deve ter imaginado que receberia uma missão, esta muito similar a dos analistas.

 

Considerações finais

Estamira e o documentário convocam o expectador a se deparar com seus próprios dejetos. Miller (2010, p.1) discorre que os dejetos são os elementos rejeitados, "o que cai, é o que tomba quando por outro lado algo se eleva". O filme nos convoca a olharmos que o resto, o que se joga fora, retorna. O fato é que, para a psicanálise, os dejetos do mental são as formações do inconsciente, matéria-prima do trabalho psicanalítico.

Marcos Prado precisou de mais de três anos para preparar o documentário, soube respeitar o tempo e as limitações de Estamira. Segundo ele, de fato, recebeu uma missão, a de revelar a sua história e realidade (sua visão de mundo). A Estamira resta delirar, falar de sua missão e, assim, tentar imprimir uma certa ordem ao seu mundo mental; a nós, resta-nos lidar com todo esse resto, que, por mais esquecido e descartado, volta a nos questionar cotidianamente – na vida, na clínica e nas telas do cinema.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Artur Pinto da Rocha, 53 – Jaguaré
05335-060 – São Paulo/SP
Tel.: (11)3714-53632
E-mail: thiagoroblesj@gmail.com

Recebido: 01/08/2011
Aprovado: 12/09/2011

 

 

Sobre os Autores

Thiago Robles Juhas
Psicólogo Clínico e Psicanalista em Formação. Especialista em Psicologia Hospitalar, Curso Avançado de Formação continuada em Psicologia Hospitalar: Saúde, Subjetividade e Instituição pelo Centro de Estudos em Psicologia da Saúde (CEPSIC) Divisão de Psicologia (DIP) do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – IC/HCFMUSP.

Niraldo de Oliveira Santos
Psicanalista. Membro da Comissão de Ensino da Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise (CLIPP/SP). Doutorando em Ciências pelo Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da USP. Diretor Técnico de Saúde do IC/HCFMUSP.