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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.37 Belo Horizonte jul. 2012

 

 

Psicanálise com crianças: considerações sobre o sintoma de encoprese

 

Child psychoanalysis: considerations about the encopresis symptom

 

 

Ana Carolina Teixeira PintoI; Raymundo de Oliveira Reis NetoII

I Fundação Municipal de Saúde de Nova Friburgo
II Universidade Estácio de Sá - Campus Nova Friburgo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda, desde um enfoque psicanalítico, uma das formas de manifestação do quadro designado em psiquiatria pelo termo “encoprese”: “evacuação nas roupas”. Partindo da perspectiva de que, do ponto de vista inconsciente, o sujeito é sempre responsável, destacamos como a aquisição da higiene, ainda que dependa de aspectos biológicos, é resultado de uma escolha (inconsciente) do sujeito diante da demanda do Outro. A partir dessa leitura e de alguns fragmentos de discurso dos pais dessas crianças, tecemos algumas considerações sobre esse sintoma e seu tratamento em psicanálise, mostrando como os meninos que atendemos com esse quadro apresentavam uma postura narcísica, ao não cederem o objeto fezes em favor do amor ao Outro.

Palavras-chave:Psicanálise, Encoprese, Sujeito, Objeto fezes, Demanda.


ABSTRACT

This paper deals with, from a psychoanalytical focus, one of the forms of the manifestation of situation designated in psychiatry as “encopresis”: “evacuation in one’s clothing”. Based on a perspective that, from the unconscious point of view the subject is always responsible, we emphasize that because the acquisition of hygiene still depends upon biological aspects, it is the (unconscious) choice of the subject in view of the demand of the Other. Thus, based upon this understanding and some fragments of the discourse of the parents of these children, we have produced some considerations regarding this symptom and its treatment through psychoanalysis, showing how the boys whom we have assisted who presented this situation displayed a narcissistic posture, by not ceding the feces object in favor of love of the Other.

Keywords: Psychoanalysis, Encopresis, Subject, Feces object, Demand.


 

 

Introdução

Este trabalho aborda, desde uma perspectiva psicanalítica, um sintoma que tem sido fonte de queixa frequente em nosso trabalho com crianças: a “evacuação nas roupas”. O interesse pelo tema surgiu do atendimento de diversas crianças encaminhadas em função desse quadro ao ambulatório de psicologia infantil da unidade de saúde em que trabalhamos. Essas crianças, todas elas do sexo masculino e com idade entre seis e nove anos, foram encaminhadas pelo setor de pediatria com diagnóstico médico de “encoprese”.

Já o nosso primeiro contato teórico com o tema se deu através da leitura das classificações de transtornos mentais mais utilizadas atualmente, bem como de manuais de psiquiatria infantil. Assim como diversos outros sintomas em psiquiatria, a evacuação nas roupas adquire o estatuto de transtorno mental, sendo designada, nesse campo, pelo termo “encoprese” e compondo, juntamente com a micção nas roupas (por sua vez, conhecida pelo termo “enurese”), os Transtornos de Excreção.

No Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR, 2002), os Transtornos da Excreção são incluídos dentre os Transtornos Geralmente Diagnosticados pela Primeira Vez na Infância ou na Adolescência. Esta seção do manual, como o próprio nome já diz, inclui os transtornos mentais que geralmente são diagnosticados pela primeira vez na infância ou adolescência, embora, ocasionalmente, não sejam diagnosticados até a idade adulta.

Ao longo deste trabalho, enfocamos especificamente uma das formas de manifestação da encoprese. Diferentemente dos casos em que a criança deposita as fezes em lugares específicos (num canto da sala, do quarto dos pais, etc.), nos casos que tratamos, mesmo após a evacuação, o sujeito mantém as fezes em contato direto com o corpo.

Ainda que estabelecendo alguns contrapontos com a literatura psiquiátrica sobre a encoprese, abordamos esse sintoma desde uma perspectiva psicanalítica, da qual destacamos, desde já, a seguinte concepção: do ponto de vista inconsciente, o sujeito é sempre responsável. Partindo dessa concepção, fazemos uma leitura do fenômeno de evacuação nas roupas distinta da perspectiva que trata o sintoma (ou o transtorno) como algo exterior à criança e que, portanto, deve ser extirpado. Tal como sinalizado por Freud desde os primórdios de seu trabalho, o sintoma é sempre também um modo de satisfação. Não se trata apenas de aceitar que a expulsão das fezes tal como é feita gere satisfação pela passagem do bolo fecal pelo reto, mas também apostar que é em conexão com fantasmas inconscientes que tal fenômeno encontra sustentação enquanto modo de ligar o sujeito a um objeto que insiste em escapar.

Na primeira seção, trabalhamos o processo de transição, pelo qual passa a criança na fase anal, do uso das fraldas à aquisição da higiene. Abordando o tema desde um referencial psicanalítico, destacamos alguns aspectos em jogo nesse processo, mostrando como ele não pode ser reduzido a fatores biológicos ou educativos, sendo determinado, prioritariamente, pela relação do sujeito com o objeto fezes e a demanda do Outro.

Em seguida, introduzimos alguns pontos em comum no discurso dos pais dessas crianças extraídos da nossa clínica. Articulando esses fragmentos de discurso com a leitura que realizamos anteriormente sobre a aquisição da higiene pela criança, tecemos algumas considerações sobre a evacuação nas roupas e o tratamento deste quadro em psicanálise.

 

Sobre a aquisição da higiene

No segundo dos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, Freud (1996) postulou as fases do desenvolvimento psicossexual, apontando que, na infância, as pulsões parciais são desvinculadas e independentes entre si na busca do prazer e não se encontram subordinadas à primazia genital. A primeira fase da organização pré-genital é a fase oral ou canibalesca, na qual a zona erógena é a boca, o prazer está ligado à excitação da mucosa dos lábios e da cavidade bucal e o alvo sexual consiste na incorporação do objeto.

Lacan (1995) postula a frustração como o verdadeiro centro dessa primitiva relação mãe-criança. De um lado, o autor coloca em cena a frustração da mãe enquanto mulher e, reconhecendo a importância que Freud chegou a dar ao lugar ocupado pelo filho na economia libidinal da mulher, já que simbolicamente este consiste num substituto do falo, afirma que o desejo da mulher pelo falo norteia sua relação com a criança. De outro lado, põe em evidência a frustração da criança na sua relação com a mãe.

Partindo dessa segunda perspectiva, introduz duas vertentes na frustração, o objeto e o agente. A mãe, enquanto agente simbólico, se faz presente e ausente segundo os apelos da criança, dando a ela o seio, objeto real de satisfação. No entanto, conforme destaca o autor, nem sempre a mãe vai atender aos apelos da criança. E ao não responder a estes, a mãe passa ao plano real. A mãe real surge como onipotente, visto poder atender ou frustrar as demandas da criança segundo sua própria vontade. Esse jogo de presença-ausência da mãe regula a demanda do sujeito, na medida em que é necessário que o objeto falte para que o sujeito possa demandar.

Com isso, o seio, anteriormente objeto real de satisfação, se transforma num símbolo de amor, passando ao plano simbólico. A partir de então, ter seus apelos atendidos pela mãe se traduz, para a criança, em “mamãe me ama”, do mesmo modo que não ter seus apelos atendidos ganha a conotação de “mamãe não me ama”.

A mãe se situa como o Outro capaz de atender para além das necessidades da criança, conforme explicitado na passagem abaixo.

A demanda em si refere-se a algo distinto das satisfações por que clama. Ela é demanda de uma presença ou de uma ausência, o que a relação primordial com a mãe manifesta, por ser prenhe desse Outro a ser situado aquém das necessidades que possa suprir (LACAN, 1998, p.697, grifo do autor).

Divergindo dos autores anglo-saxões, Lacan afirma que, já no nível da primitiva relação mãe-criança, o objeto da frustração é, portanto, um objeto simbólico, não um objeto real. Tal concepção justifica, por exemplo, que a criança chore mesmo sem estar com fome, na medida em que, para ela, mais importante do que a satisfação de uma necessidade fisiológica é o amor da mãe, presente “mais além do objeto” (LACAN, 1999).

Nesse momento em que a alimentação se coloca como temática central na relação mãe-criança, o alimento é tomado como a principal moeda de troca amorosa, seja da perspectiva de uma ou de outra. Isso por que, no nível da demanda, há uma relação de reciprocidade entre o sujeito e o Outro. Para que a criança possa se constituir como sujeito desejante é preciso que a mãe, enquanto sujeito do desejo, signifique seu choro. No entanto, é preciso também que a criança demande ao Outro, o que implica em aceitar a demanda que vem do Outro (você está com fome, por exemplo).

Mais tarde, quando a aquisição da higiene passar a ocupar um lugar de destaque na relação entabulada entre a mãe e a criança, outra moeda de troca surgirá nessa relação. A partir do momento em que a mãe, movida pelo desejo, começar a empreender tentativas de retirar as fraldas da criança, as fezes surgirão como principal moeda de troca. Essas exigências de higiene introduzidas pela mãe, e apenas aparentemente de caráter exclusivamente educativo, marcam a entrada da criança na fase anal, situada por Freud (1996), aproximadamente, entre os dois e os quatro anos de idade.

Diferentemente da fase oral, em que a primazia é do sujeito de ser nutrido pelo Outro, na fase anal é o sujeito que se encontra sujeitado à demanda do Outro. Mais do que a aquisição do controle esfincteriano em si, o que se introduz para a criança quando passa a ser solicitada pela mãe a evacuar nesse ou naquele momento é a demanda do Outro. E ao adquirir o estatuto de objeto demandado pelo Outro, as fezes perdem sua conotação exclusivamente biológica (enquanto resto), constituindo-se num objeto altamente valorizado pela criança. Conforme apontado por Freud, as fezes se constituem como dádiva, como um objeto precioso da criança que ela pode dar para alguém (FREUD, 2010).

Com a aquisição do controle esfincteriano, a criança experimenta, pela primeira vez, o sentimento de propriedade em relação aos seus excrementos, enquanto objeto de troca (DOLTO, 1980, p.27-68), se vendo agora imbuída, ela própria, do poder de atender ou não às demandas da mãe. Desse modo, em psicanálise, as fezes são consideradas para além da esfera biológica e a aquisição do hábito da higiene é retirada de um plano meramente educativo, sendo concebida e contextualizada dentro de uma etapa específica da constituição subjetiva em que, pela primeira vez, a criança é chamada a renunciar a um objeto que é uma parte dela mesma.

Se do ponto de vista biológico, a possibilidade de reter e expulsar as fezes consiste num sinal de maior desenvolvimento neuromuscular que viabiliza a aquisição da higiene, desde uma perspectiva psicanalítica, o controle esfincteriano permite ao sujeito ainda reter e expulsar ludicamente esse objeto investido de valor na relação com o Outro em prol do seu prazer autoerótico (FREUD, 1996).

Por um lado, ao afirmar a erogeneidade da zona anal, Freud relaciona a retenção das fezes à obtenção de sensações de volúpia ao lado de sensações dolorosas, apontando que a retenção da massa fecal pode ser utilizada pela criança para tirar proveito da estimulação da zona anal, na linha da estimulação masturbatória. Aqui, segundo Freud, não interessa à criança sujar a cama, apenas providenciar “que não lhe escape o dividendo de prazer que vem junto com a defecação” (FREUD, 2010, p.175).

Por outro, aponta para o valor que as fezes assumem para a criança. Mesmo no discurso de mães cujos filhos não apresentaram o sintoma de evacuação nas roupas, podemos identificar aspectos que apontam para a dificuldade do sujeito de renunciar ao objeto fezes, tais como: o fato de a criança ter passado por uma etapa transitória ao longo da aquisição da higiene, durante a qual já evacuava no vaso sanitário e, no entanto, se recusava a dar descarga; a criança permanecer observando as fezes evacuadas com ar de admiração pelo “lindo cocô” que fez; ou passar a evacuar mais espaçadamente do que na época em que usava fraldas (dia sim e dia não, em vez de todos os dias).

Surge então a questão de saber o que leva a criança a evacuar no momento que convém à mãe, renunciando ao prazer proporcionado por esse objeto altamente investido de libido. E, ainda, por que algumas crianças lidam mais facilmente com as exigências de higiene impostas pela mãe ao passo que outras, segundo relato das próprias mães, parecem transformar a evacuação numa espécie de disputa para ver quem decide quanto a essa parte de seu corpo, como nos casos descritos pela psiquiatria sob a rubrica de “encoprese”.

Quanto à primeira questão, recorramos a Freud: “Na defecação o bebê tem que decidir, pela primeira vez, entre a atitude narcísica e a de amor ao objeto. Ou ele entrega docilmente o cocô, sacrifica-o ao amor, ou retém para a satisfação autoerótica” (FREUD, 2010, p.258; grifo do autor). Para o autor, o que leva a criança a renunciar a esse objeto e, consequentemente, à satisfação proporcionada por ele, é o “amor ao objeto”. Em parágrafo acrescentado em 1915 aos “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1996), Freud já havia afirmado que, para a criança, o conteúdo intestinal

É obviamente tratado como parte de seu próprio corpo, representando o primeiro “presente”: ao desfazer-se dele, a criaturinha pode exprimir sua docilidade perante o meio que a cerca, e ao recusá-lo, sua obstinação (FREUD, 1996, p.175-76).

Atender às solicitações da mãe quanto à evacuação significa mais do que um sinal de boa educação por parte da criança. Trata-se, antes, da criança presentear a mãe com amor. Chegamos aqui a um ponto fundamental à elucidação do sintoma de evacuação nas roupas. Conforme apontado por Freud e Lacan, a retenção-expulsão das fezes é empregada pela criança na relação com as pessoas que cuidam dela.

Na seção seguinte, enfocamos mais diretamente o sintoma de evacuação nas roupas. Para tanto, introduzimos alguns fragmentos de discurso dos pais dos sujeitos que apresentam esse sintoma, destacando algumas particularidades desse discurso que nos permitem tecer algumas considerações a respeito desse quadro desde uma perspectiva psicanalítica.

 

Considerações psicanalíticas sobre a encoprese

A evacuação nas roupas consiste num sintoma comumente tratado pelos pais do sujeito como uma emergência, principalmente em função do prejuízo que, por vezes, acarreta na vida escolar da criança ou na vida social da família como um todo. Como consequência, soluções imediatas e milagrosas são demandadas ao psicanalista.

Na maioria das vezes, a procura pela psicanálise se dá quando a situação chega ao “limite”, para usar o termo empregado pela mãe de uma criança com esse sintoma ao descrever a “vergonha” que o filho a fez passar ao “sujar a cueca” enquanto os dois voltavam para a casa de ônibus: “O cheiro era tão ruim que apesar de o ônibus estar lotado, os lugares perto de nós ficaram todos vazios. Era melhor ir em pé do que aguentar aquele cheiro”.

Em alguns casos, a evacuação nas roupas chega a ocorrer diariamente e o constrangimento gerado por esse sintoma faz com que a própria criança se recuse a frequentar a escola, a casa de parentes e coleguinhas etc. (DSM-IV-TR, 2002). Em outros, a criança não parece demonstrar qualquer constrangimento, chegando ao ponto de negar a evacuação mesmo nas situações em que as fezes são descobertas em sua roupa ou quando o odor decorrente da mesma é óbvio (STUBBE, 2008).

Seja no primeiro ou no segundo caso, identificamos um discurso comum dentre as mães desses sujeitos: “Não aguento mais ficar com ele no banheiro esperando que faça cocô. Por mais que eu insista, ele não faz. Acho, inclusive, que vou ser demitida do trabalho, porque vivo chegando atrasada. Hoje mesmo fiquei a manhã inteira no banheiro com ele e nada dele fazer.”.

Algumas mães chegam a vigiar constantemente o filho, numa postura sempre alerta e, ao observarem na criança o menor sinal de vontade de evacuar, pedem insistentemente a ela que vá ao banheiro. Diante da resposta negativa da criança, é comum que a obriguem a sentar no vaso sanitário ou no penico até que, enfim, evacue. Mas, para alimentar ainda mais a queixa dessas mães, conforme relatado por uma delas, “parece até que quanto mais insisto pior fica a situação. Ele pode ficar o tempo que for no banheiro que não faz ou faz só um pouquinho, mas é só ele sair do banheiro que, pronto, faz cocô na calça”.

Dentre outros aspectos, esse discurso revela que brigar, exigir ou impor nem sempre faz com que a criança atenda às solicitações da mãe para evacuar no vaso ou penico introduzido por ela; ao contrário, são atitudes que parecem somente “piorar a situação”.

Como vimos na seção anterior, a etapa de transição da evacuação nas fraldas à aquisição da higiene não é determinada exclusivamente e nem prioritariamente pela maturação ou pelo condicionamento. Ainda conforme já destacamos, esse processo depende, dentre outros aspectos, do posicionamento do sujeito diante da demanda do Outro.

A clínica indica que o sujeito vai atender às solicitações da mãe tanto mais quanto estas forem determinadas pelo desejo dela. Em nossa experiência, a competição travada entre a criança e a mãe para ver quem decide em relação às fezes é menos presente se a expectativa dessa mãe de que o filho deixe de usar fraldas e passe a utilizar o banheiro for marcada pelo desejo, diferentemente dos casos em que a mãe parece lidar com as fezes em sua concretude, sem fantasmatização.

Nos casos em que a criança apresenta o sintoma de evacuar nas roupas, a passagem das fraldas ao uso do penico ou vaso sanitário parece se colocar para ela como uma imposição do Outro, e não como uma demanda do Outro. Essa postura impositiva da mãe ao apressar o processo de aquisição da higiene é apontada pela psiquiatria como um dos fatores em causa no sintoma que estamos estudando aqui. No campo psiquiátrico, a evacuação nas roupas estaria associada, dentre outros fatores, à expectativa da mãe de um controle prematuro dos esfíncteres por parte da criança (AJURIAGUERRA, 1983). Frequentemente, escutando os pais desses sujeitos, constatamos esse dado, conforme relatado com surpresa por uma mãe cujo filho, após dois anos evacuando e urinando no vaso sanitário “sem nenhum acidente, nem mesmo à noite”, voltou a evacuar na roupa: “Ele deixou de usar fraldas bem mais cedo do que os irmãozinhos!”.

Em psicanálise, é compreensível que o sujeito volte a evacuar nas roupas mesmo após ter largado precocemente as fraldas e ainda que isso tenha se dado sem grandes dificuldades aparentes, visto que o hábito da higiene pode ter sido adquirido exclusivamente em função do condicionamento. O caso de Júlio serve para ilustrar a íntima relação entre o sintoma de evacuação nas roupas e a aquisição precoce do hábito da higiene.

Júlio foi encaminhado para tratamento psicológico pela pediatra aos oitos anos de idade, poucos meses, de acordo com os pais, após ter começado a “sujar a cueca”. Ainda segundo relato dos pais, Júlio “aprendeu cedo a usar o banheiro, antes mesmo de ter dois anos”. No entanto, após anos sem que nenhuma regressão quanto a esse aspecto tivesse sido observada pelos pais, “de uma hora para outra”, ele começou a evacuar na cueca praticamente todos os dias, estivesse em casa, na escola, na casa de parentes ou coleginhas, na rua etc.

Apesar de residir com os pais, Júlio “foi mais criado pela madrinha”, que morava próximo a sua casa. Em função de seus empregos, os pais passavam o dia fora. Era a madrinha, portanto, quem ficava no pé dele para fazer os deveres de casa e estudar para as provas, quem comparecia às reuniões de pais na escola, quem ia buscá-lo na rua quando ele demorava a voltar para casa etc. A partir do momento em que essa madrinha se mudou para um bairro distante, Júlio acabou ficando “mais solto”. Ninguém mais pegava no seu pé para fazer os deveres de casa e estudar para as provas, ninguém mais ia à praça na qual ele costumava brincar com os coleginhas da vizinhança para chamá-lo de volta para casa, até mesmo ao Posto de Saúde ele ia sozinho. Desde então, Júlio passou a ficar na rua até tarde, suas notas despencaram e ele começou a “sujar a cueca”.

Observamos nesse fragmento clínico que a aquisição precoce da higiene, enquanto um dos fatores subjacentes ao sintoma de encoprese, não pode ser reduzida ao seu aspecto biológico. Não se trata de precocidade do ponto de vista biológico, visto que o fato de a criança ter adquirido a higiene em algum momento pressupõe que ela já tenha atingido a capacidade de controle dos esfíncteres. Para além da maturação biológica que permite o controle do esfíncter anal, a aquisição da higiene depende de o sujeito se encontrar num momento lógico de constituição psíquica favorável a esse processo. Do contrário, como evidenciado pelo caso de Júlio, a demanda de higiene introduzida pelo Outro acaba não sendo formulada pela criança como uma demanda dela própria e, desse modo, permanece condicionada à presença concreta de um Outro que a demande.

Cabe introduzir aqui o seguinte discurso de uma mãe às voltas com suas tentativas de tirar as fraldas do filho: “Na primeira semana foi mais tranquilo, ele aceitou numa boa. Já essa semana está sendo mais difícil, ele voltou a se sujar todo, vamos ver como vai ser semana que vem. Olha, tem que ter muita paciência, dar tempo ao tempo”.

O tempo parece ser justamente o que as mães de crianças com sintoma de evacuação nas roupas não puderam ter-lhes dado. Não se trata aqui de um tempo qualquer, mas de um tempo necessário para a criança se posicionar, enquanto sujeito, diante da demanda do Outro. Destacamos, na seção anterior, que tão importante quanto a mãe demandar à criança é esta se posicionar diante dessa demanda. Do ponto de vista da criança, é preciso que, em algum momento, a demanda do Outro se transforme numa demanda ao Outro (nesse caso em específico, pedir à mãe para ir ao banheiro). Podemos pensar, desde uma leitura psicanalítica, que a atitude impositiva da mãe em forçar apressadamente a retirada das fraldas do filho, impede a emergência do desejo na criança de atender às suas demandas.

Atender à demanda do Outro pressupõe ainda que o sujeito possa se separar do objeto fezes, dificuldade particularmente exacerbada para as crianças cujo sintoma que se coloca em primeiro plano é a evacuação nas roupas. O tratamento psicanalítico desses sujeitos aponta, principalmente ao escutarmos o discurso de seus pais, quanto eles se encontram identificados a esse objeto.

Há, ainda, que se destacar a incidência do significante no sintoma. O pai de uma dessas crianças, na época com nove anos de idade e encaminhada para análise pelo pediatra em função do diagnóstico médico de “encoprese primária”, insistia em qualificar o relacionamento que teve com a ex-mulher e a consequente gravidez dela como a maior “merda que fez na sua vida”. Já a avó de outra criança, com o mesmo diagnóstico, se referia a ela como “essa porcaria”. Também é comum ouvirmos as mães desses pacientes se queixarem de que o filho “não come nada que presta” ou que ele “só come besteira”.

Cabe ressaltar que para além de todo o benefício prático do ponto de vista da higiene, as fraldas oferecem à criança uma continência, mantendo seus excrementos em contato direto com o corpo dela. A evacuação nas roupas íntimas consiste numa forma de preservar o contato das fezes com o corpo, assim, o sujeito evita que essa parte de seu corpo se destaque.

Vemos, novamente, quanto a passagem das fraldas à evacuação no vaso sanitário não depende exclusivamente da aquisição do controle dos esfíncteres ou do treinamento. Outro dado que põe em evidência essa perspectiva é a “dificuldade escolar” apresentada por esses sujeitos que, apesar da facilidade nas demais matérias, não conseguiam “aprender matemática”, mais especificamente “continhas de dividir” (por outro lado, ainda conforme dados extraídos da nossa clínica, as crianças que apresentam o sintoma de micção nas roupas – enurese –, seja diurna ou apenas noturna, possuem em sua maioria dificuldade acentuada de escrita). Esse dado reflete a dificuldade do sujeito de lidar com a divisão, com a troca na relação com o Outro. Não podemos desprezar também o fato de as contas de divisão exigirem do sujeito a lida com o resto, com algo que sobra de uma operação.

Somente ao manejar a transferência de outro lugar que não aquele do qual já respondem os pais da criança, o analista pode intervir de modo a promover uma separação entre o sujeito e o objeto fezes. Para tanto, entendemos ser fundamental que o analista possa suportar a posição narcísica do sujeito.

Num dos casos que atendemos, o sujeito sempre levava para a sessão o brinquedo que ganhava no fim de semana ao comer num fast food da cidade e a primeira coisa que fazia ao entrar no consultório era colocá-lo num cantinho da sala, longe do analista. Somente após diversas sessões, durante as quais o objeto não foi demandado ao sujeito, quando o analista levou um jogo para brincar especificamente com ele, houve uma mudança de posição do sujeito. Este, que até então parecia “dar de ombros” ao analista, começou a oferecer a analista seus brinquedos.

Com o decorrer do tratamento, mais especificamente após essa mudança de posição do sujeito na relação transferencial (ser amado – amar), o sintoma cessou, dando lugar a um negativismo na relação com o outro. Diante das mais simples perguntas ou pedidos, principalmente vindos da mãe, a resposta do sujeito era a mesma: “não”. Na escola, sempre que solicitado a entregar a folha com o dever de casa, por exemplo, sua resposta era “não recebi a folha”.

A oposição até então manifestada no sintoma passou a se apresentar na relação do sujeito com as pessoas em seu entorno, entretanto, com esse deslizamento – do corpo para a palavra – o “não” pode se manifestar de forma menos concreta. Esse negativismo através do uso excessivo da palavra “não” se mostrou uma etapa comum e transitória no tratamento da maioria dos sujeitos que analisamos com o sintoma em questão, etapa que, uma vez atravessada, deu ensejo ao endereçamento de uma demanda ao analista e a uma maior abertura para o laço social.

 

Considerações finais

Embora a persistência ou a volta da evacuação nas roupas, assim como qualquer outro sintoma em psicanálise, não possua em si mesma uma significação única, acabamos de ver que, desde uma perspectiva mais geral, podemos considerar esse fenômeno não apenas como relacionado à atividade autoerótica do sujeito, mas também ao valor simbólico assumido pelas fezes na relação com o Outro. O sujeito pode renunciar ou não ao objeto fezes em prol do amor ao Outro ou de seu narcisismo, respectivamente. Vimos, também, que essa dificuldade pode estar relacionada à atitude impositiva da mãe que, tomando as fezes em sua concretude, negligencia o valor simbólico que elas podem assumir na relação com a criança, introduzindo a aquisição da higiene para ela numa etapa de sua constituição psíquica ainda não favorável a esse processo e, ainda, ao lugar que o sujeito ocupa no discurso do Outro – “porcaria”, “merda”, etc.

Quanto ao tratamento, descartamos, enquanto analistas, a possibilidade de conduzi-lo de modo a conscientizar essas crianças ou educá-las visando à aquisição ou reaquisição do hábito da higiene. A condução do tratamento deve possibilitar que os impasses vividos pelo sujeito na relação fantasmática com o Outro e com esse objeto sejam manifestados na relação transferencial, que nesses casos, em sua maioria, é marcada por uma postura narcísica, ou seja, pela dificuldade de ceder o objeto em troca do amor ao Outro.

Para finalizar, embora tenhamos tecido algumas considerações, a partir da literatura e da nossa clínica, sobre o fato de a evacuação nas roupas ter incidência maior em crianças que adquiriram precocemente o controle dos esfíncteres, deixamos em aberto a questão de saber por que os sujeitos com esse sintoma são em sua grande maioria do sexo masculino. Reservamos para um trabalho futuro, também, um estudo sobre outra forma de manifestação da encoprese com a qual temos nos deparado na clínica. Trata-se dos casos em que o sujeito consegue se separar do objeto fezes mais facilmente, elegendo, entretanto, locais específicos para evacuar não destinados a essa finalidade, e que variam caso a caso.

 

Referências

AJURIAGUERRA, J. Manual de psiquiatria infantil. 2. ed. São Paulo: Masson, 1983.         [ Links ]

DSM-IV-TR– Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Trad. Cláudia Dornelles. 4.ed. rev., Porto Alegre: Artmed, 2002.         [ Links ]

DOLTO, F. Evolução dos instintos. In DOLTO, F. Psicanálise e pediatria. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1980.         [ Links ]

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.VII.         [ Links ]

FREUD, S. Sobre as transformações dos instintos, em particular no erotismo anal [1917]. In Obras completas. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, v.XIV, p.252-262.         [ Links ]

LACAN, J. (1956/57). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.         [ Links ]

LACAN, J. (1957/58). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.         [ Links ]

LACAN, J. (1958). A significação do falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

STUBBE, D. Transtornos de excreção: encoprese funcional e enurese funcional. In STUBBE, D. Psiquiatria da infância e adolescência. Porto Alegre: Artem, 2008, p.112-117.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Carolina Teixeira Pinto
Rua Major Augusto Marques Braga, 07/203 – Centro
28610-210 – Nova Friburgo/RJ
E-mail: tpsicarol@hotmail.com

Raymundo de Oliveira Reis Neto
Avenida Manoel Carneiro de Meneses, 2001 – Casa B – Mury
28615-060 – Nova Friburgo/RJ
E-mail: r.reisneto@gmail.com

RECEBIDO EM: 14/03/2012
APROVADO EM: 04/04/2012

 

 

Sobre os Autores

Ana Carolina Teixeira Pinto
Psicóloga. Pós-Graduada em Teoria e Clínica Psicanalítica pela Universidade Estácio de Sá. Psicóloga da Fundação Municipal de Saúde de Nova Friburgo-RJ. Coordenadora do Grupo de Acompanhamento Terapêutico PariPassu. Rio de Janeiro – RJ – Brasil.

Raymundo de Oliveira Reis Neto
Psicólogo. Doutor em Psicologia Clínica pela PUC/RJ. Psicanalista. Coordenador e Professor do Curso de Psicologia da Universidade Estácio de Sá – Campus Nova Friburgo – Rio de Janeiro – RJ – Brasil.