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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.37 Belo Horizonte jul. 2012

 

 

Uma criança especial e as contribuições da psicanálise

 

The contributions of psychoanalysis to a child with special needs

 

 

Maria Melania Wagner F. Pokorski

Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
Faculdade Porto-Alegrense

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto descreve algumas situações do atendimento psicanalítico de uma criança especial que teve uma hidrocefalia detectada antes de seu nascimento. Durante o período de gestação e posteriormente, essa criança tinha sido submetida a procedimentos cirúrgicos para implante e controle de válvula. Muitas dessas intervenções foram revividas durante as sessões analíticas. Buscamos compreender a organização psíquica dessa criança com base nos referenciais de Aberastury, Winnicott e Nasio.

Palavras-chave: Criança especial, Organização psíquica, Intervenções.


ABSTRACT

This text describes some situations observed during the psychoanalytical treatment of a child with special needs, whose hydrocephaly diagnosis was detected before birth. During her fetal development, the child was submitted to intrauterine surgical procedures for implants and valve control. Many of such experiences were relived during psychoanalytical sessions. We aim to comprehend this child’s psychical organization based on the referential studies of Aberastury, Winnicott and Nasio.

Keywords: Special child, Psychical organization, Interventions.


 

 

Descrevemos o caso de uma menina especial no momento em que crianças especiais cada vez mais estão sendo incluídas no ambiente escolar e em vários outros espaços onde antes ficavam afastadas. Procuramos entender o que pode ser atribuído ao aspecto neurofisiológico em si e quais as suas repercussões na motricidade, na organização psíquica e na área cognitiva.

Inicialmente queremos esclarecer que este caso está sendo retomado. O atendimento à pequena paciente iniciou em abril de 2005. O caso foi apresentado em uma jornada de estudos em 2006 e fez parte da última etapa de três anos de supervisão clínica necessária à formação em psicanálise. Apesar do grande desafio e complexidade do caso, essa vivência tornara-se apaixonante, tanto pelas respostas quanto pelas situações traumáticas revividas durante as sessões com a menina, a quem chamaremos Vivian. Em função dos muitos desdobramentos, não enfatizaremos as questões pertinentes à família, apenas pontuaremos que esta se mostrou o tempo todo colaboradora, não medindo esforços em relação ao bem-estar da menina.

O período inicial da criança é constituinte de sua estruturação neurofisiológica, psíquica, mental e relacional. Alguns autores da psicanálise distinguem o período inicial em infans – antes da linguagem – e infância – depois da linguagem.

Quanto à organização psíquica, Freud (1924) define três estruturas: a psicose, a neurose e a perversão. Em 1949, psicanalistas americanos definem uma quarta estrutura, denominada borderline – um estado fronteiriço entre psicose e neurose, também conhecida como doença narcísica. Atualmente, aponta-se ainda uma quinta estrutura: o autismo. Os estudos de Laznik (2004) têm como principal objetivo um trabalho preventivo, intervindo no laço mãe-bebê. Para Laznik (2004), o autismo “é consequência de uma falha no estabelecimento desse laço, sem o qual nenhum sujeito pode advir” (LAZNIK, 2004, p.23).

Para o caso em questão, no entanto, vamos apenas diferenciar a psicose da neurose. Para Nasio (2011), as defesas usadas nessas duas estruturas são a foraclusão e o recalque respectivamente. A psicose pode ser consequência de um trauma infantil, quando o eu ainda não consegue dar conta das muitas vicissitudes que a realidade impõe à criança. A neurose, por sua vez, corresponde à etapa do complexo de Édipo, em que a pessoa procura esquecer a situação penosa vivida ou fantasiada. A foraclusão é uma defesa de recusa na qual uma ideia fixa e falsa se repete e acaba por impedir que a pessoa saiba, sinta ou aja. Observa-se, no discurso dessas pessoas, um plano para realizar, mas o tempo passa e elas permanecem apenas no discurso.

Ao iniciarmos o atendimento de Vivian, muitos questionamentos nos inquietavam. Havia inclusive dúvida se poderíamos chamar esse tratamento de análise, pois se tratava de uma criança especial com comprometimentos neurológicos que afetavam a organização da realidade psíquica interna e externa da paciente. Entretanto, sem adentrarmos em particularidades, queremos destacar algumas situações vivenciadas com Vivian durante os atendimentos, nos quais a paciente trazia diferentes contextos causadores de angústia em seu cotidiano. Poder revivê-las passou a ser uma forma de recordá-las e de tentar elaborá-las.

Quando o atendimento iniciou, Vivian tinha sete anos de idade e frequentava o Nível B da Educação Infantil em uma escola pública de Porto Alegre. A paciente repetia então o Nível B a pedido da mãe, que percebia na filha certas dificuldades em acompanhar as atividades escolares. A escola, por sua vez, acolheu a solicitação da mãe.

A gravidez havia sido planejada. Em uma ecografia fora constatado que o bebê possuía hidrocefalia. Aquele foi um momento muito difícil para o casal. Na época, vários médicos foram consultados em poucos dias. Houve desde o médico que recomendou o aborto por meio de pílulas para a eliminação do bebê até aquele que apostou em uma intervenção cirúrgica, ainda durante a gravidez. A cirurgia acabou ocorrendo em outro Estado brasileiro. Após o nascimento da criança, outras cirurgias foram necessárias para troca da válvula cerebral. Vivian teve várias convulsões e por isso precisou tomar anticonvulsivos.

A paciente, desde os primeiros atendimentos, mostrava-se uma criança linda e encantadora. Ela apresentava ótima linguagem tanto em relação ao vocabulário variado quanto ao emprego correto das palavras. Porém, por vezes, a linguagem era confusa quanto à sequência de ideias, principalmente quando contrariada ou quando se encontrava em situação mais regressiva. Percebíamos nela algum comprometimento motor, cognitivo e psíquico. Na parte motora, o lado esquerdo (perna e braço) respondia menos aos movimentos, e no lado direito a mão tremia, o que prejudicava sua motricidade fina. Nas noções de espaço e tempo, mostrava-se bastante confusa.

Os desenhos no início eram pouco estruturados e fragmentados. Quando Vivian nomeava que faria uma casa (ano de 2005), não havia uma integração entre os elementos da casa. Porém, ela nomeava que estava fazendo paredes, porta, cama, sofá. Em junho de 2006, ela fizera a primeira casa com estrutura de casa – paredes, porta, janela, telhado, chão, pátio para os cavalos e um jardim com flores.

Das sessões de atendimentos ressaltaremos a capacidade da paciente em brincar. Embora, por certo período, repetisse um mesmo tipo de brincadeira, percebíamos riqueza na sua criatividade, imaginação e no uso variado de palavras selecionadas do seu ambiente de convívio. Esse repertório léxico variado sugere uma boa memória.

A repetição de brincadeiras durante os atendimentos mostrava um pouco de seu enredo psíquico, do que a afligia e angustiava. A repetição nos remete a um movimento inconsciente que Freud aponta como sendo impossível de dominar. Ele faz com que a pessoa reproduza seguidamente atos, pensamentos, ideias ou sonhos que, em sua origem, produziram sofrimento. Para Roudinesco e Plon (1998), “a compulsão à repetição provém do campo pulsional, do qual possui o caráter de uma insistência conservadora” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p.656).

Em várias sessões, Vivian propunha organizar uma festa de aniversário e cantava o ‘Parabéns a você’. Geralmente eu era a aniversariante, que completava sete, oito ou quinze anos de idade. Percebíamos que era uma forma de celebrar a vida já que o seu começo tinha sido tão difícil. Para Dolto (2005), todo ser, pelo fato de nascer, “é porque ele desejou nascer. [...] eis você vivo muito mais por você ser sujeito de desejo” (DOLTO, 2005, p.109). E Dolto menciona que, antes de a mãe saber sobre a gravidez, a criança vive conhecida apenas por si mesma.

Nas festas de aniversário, os alimentos eram preparados pela mãe de Vivian com todo capricho e cuidado, a partir de massa de modelar. Certamente uma necessidade de incorporar e introjetar alimentos bons e nutritivos com todos os tipos de afetos.

Em outras sessões, Vivian me acomodava na cama do hospital (divã), dizendo que a válvula seria colocada na minha cabeça para me ajudar e que eu não tivesse medo. Ela, como mãe, deixaria um paninho comigo sempre que se ausentasse. Dizia que torcia por mim. Aqui o significado do objeto transicional, descrito por Winnicott (1975), estava muito presente. A sessão permitia a Vivian reviver e entender melhor aqueles momentos angustiantes no hospital, projetando em mim as suas ansiedades e medos.

Em suas falas, percebia uma mãe muito presente, cuidadora, carinhosa, uma mãe que transmitia segurança ao bebê que não sabia o que o aguardava no momento seguinte. Para Aberastury (1992), “a criança que sofreu a experiência penosa de uma operação a elabora com um jogo, no qual o outro, ou um boneco, padece, enquanto ela assume o papel de cirurgião” (ABERASTURY, 1992, p.49). Nesse caso, ela assumiu o papel de mãe.

Penso que, para uma criança com o mundo interno e o externo pouco integrados, a mistura de sofrimento com fantasias próprias da idade deixava-a muito angustiada. Para Klein apud Zorning, (2000), desde o nascimento existe um eu suficiente para experimentar angústias. Porém, é um eu não integrado que reage às angústias por meio de mecanismos de projeção e introjeção e que, muitas vezes, transformam parte dessa angústia em agressividade.

Para Winnicott (1990), é na relação precoce da mãe com o bebê que o psiquismo do bebê se estabelece. Ele destaca como fundamentais os cuidados maternos e o espaço transicional que faz parte desta primeira relação.

O paninho que Vivian me oferecia representava um objeto transicional. Para Winnicott, apud Nasio (1995), o objeto transicional

representa a mãe. Ele é dotado das qualidades da mãe nos momentos tranquilos. Ele representa a transição do bebê que passa do estado de união simbiótica com a mãe para um estado distanciado em que a criança se relaciona com a mãe como uma coisa externa e separada (WINNICOTT apud NASIO, 1995, p.194).

Para compreendermos a organização psíquica do bebê, cabe mencionar o estudo de McDougall (2000), Teatros do Corpo, no capítulo sobre “a matriz do psicossoma”, em que ela explica as origens do indivíduo. O eu se constitui gradativamente e é dividido em muitas partes – a saudável, a raivosa, a amorosa, etc. A palavra indivíduo significa uma unidade indivisível, em que há uma fusão mãe-bebê. Uma fantasia de formar apenas uma de duas pessoas (mãe-bebê). Nessa etapa, a mãe não é um objeto total nem separado para a criança; é a etapa anobjetal. Mesmo que seja uma etapa bem inicial do bebê, em momentos mais regressivos da pessoa, ela pode querer buscar esse estado de fusão.

Outro movimento é o da necessidade de separação e da diferenciação entre o eu e não-eu. Aos poucos, durante o desenvolvimento do bebê, as origens do universo simbólico vão se organizando a partir do paninho, da linguagem e, sobretudo, da palavra mamãe. Com essa palavra, a criança passa a evocar o calor e a proteção da mãe. Poder evocar e nomear a mãe é uma situação essencial à estruturação psíquica. No autista, a mente se fecha ao externo ou fica desligada das mensagens afetivas e não evolui para essa etapa de separação.

Vivian, além de reviver momentos angustiantes do início de sua vida, trazia ao consultório suas angústias em relação à aprendizagem. Nesses momentos, propunha brincar de escola, cenário onde ela assumia o papel de professora. Inicialmente representava uma professora muito brava, que exigia um trabalho correto de seus alunos. Por vezes chegava a gritar com os alunos, transmitindo-lhes medo. Para Aberastury (1992), as crianças com dificuldades na escola “costumam brincar de escola, tomando o papel de professores severos, que castigam e repreendem as crianças que sempre se enganam e não aprendem” (ABERASTURY, 1992, p.49).

Essas brincadeiras, com o tempo e com algumas intervenções, foram se modificando. Os papéis passaram a se alternar entre Vivian ser aluna ou professora. A professora se mostrava mais compreensiva. Quanto à troca de papéis, para Aberastury (1992, “a função do jogar é a de elaborar as situações excessivas para o eu – traumáticas –, cumprindo uma função catártica e de assimilação por meio da repetição dos fatos cotidianos e das trocas de papéis, por exemplo, fazendo ativo o que foi sofrido passivamente” (ABERASTURY, 1992, p.49).

Durante o período de férias escolares (ano de 2006), Vivian repetia nas brincadeiras o ingresso no primeiro ano do Ensino Fundamental. A mochila era arrumada com cuidado. A babá preparava o lanche bem reforçado e a mãe a levava para a escola. Imaginava e vivenciava o seu primeiro dia no primeiro ano. Em uma sessão, durante o mês de fevereiro, ela fez cinco folhas de atividades. Copiou o título do livro “A Branca de Neve e os Sete Anões – conto que gostava muito de contar e ouvir – do seu jeito, tudo eram bolinhas. Para Bettelheim (1980), essa história “trata essencialmente dos conflitos edípicos entre mãe e filha na infância e finalmente na adolescência, dando maior ênfase ao que constitui uma infância feliz, e que é necessário para crescermos a partir dela” (BETTELHEIM, 1980, p.241). Na segunda folha copiou “Rapunzel”; na terceira, uma atividade de matemática; na quarta fez uma pessoa; e na quinta fez um menino indo para a escola. Aqui lhe surgiu uma dúvida e perguntou: “Como é um menino?”

Diante de sua pergunta eu me questionei: “Será que agora está se dando conta da diferença de quem tem e quem não tem pênis? Ou ainda nega que é ela quem está se preparando para o primeiro ano e projeta isso no menino?” Parece que eram as duas coisas – a diferença e a negação do que está por vir.

As dúvidas que Vivian apresentava são próprias no período de três a seis anos de idade, quando a criança percebe a diferença de quem tem e quem não tem pênis. Nessa fase, as crianças bombardeiam os pais com os porquês. A descoberta implica entender que, de fato, alguma coisa falta. A falta remete a uma perda. A criança se dá conta de que já perdeu o seio, as fezes e se pergunta o que mais pode perder.

À angústia das perdas Freud, apud Kupfer (1997), chama de angústia de castração. A criança descobre diferenças que a angustiam. Entretanto, é essa angústia que a faz querer saber. Nessa fase ocorre o complexo de Édipo, quando a menina se define como mulher e o menino como homem. O desejo de saber associa-se ao de dominar, de ver e de sublimar. Assim, a criança sai do mundo da onipotência, no qual pode tudo, e entra no mundo da cultura, onde segue e compreende que há leis e regras que devem ser discutidas e cumpridas.

Os contos de fadas são considerados um recurso terapêutico. Vivian seguidamente solicitava a leitura de alguma história. Gutfreind (2010) reúne autores da psicanálise que defendem a importância do conto como recurso terapêutico com diferentes tipos de crianças (portadoras de carência afetiva, autista ou psicótica) e afirma que essas crianças reencontram, “através do conto, o fio da meada do pensamento e da subjetividade de si e do outro” (GUTFREIND, 2010, p.157).

Outro tipo de brincadeira com Vivian envolvia a questão da alimentação. Esta aparecia nas festas de aniversário e nos lanches escolares. Na realidade, Vivian não comia vários alimentos. Quando insistiam com ela para que os comesse, ela os vomitava.

Sobre a alimentação Vivian ditou sua primeira história no segundo ano de tratamento, a partir da escolha de uma das gravuras do CAT. Ela contou a seguinte história: “Era uma vez uma galinha que estava com seus pintinhos fazendo comida. Por isso que ela inventou engravidar. A galinha estava engravidada de quatro pintos. Só que já tinha seis. Ela era sapeca, dizia o que não era para dizer – nomes feios. E dos seis pintinhos só um não estava com o guardanapo e dois estavam com fome. Essa é a nossa história de hoje”.

Aparentemente havia ainda confusão em relação às quantidades e à sequência de ideias. Porém, estar ‘engravidada’ aponta para novas possibilidades; há movimentos brotando. Dizer o que não era para dizer denota algum segredo de algo que não se podia conhecer. Estar com guardanapo e dizer nomes feios remetem à regra de etiqueta. Um sem guardanapo e dois com fome – fala de três, de uma possível triangulação. Além disso, pode ser ela quem estava sem guardanapo; aquela que é diferente dos seus dois irmãos saudáveis.

A história leva-nos a alguns questionamentos, inclusive sobre o fato de ter escolhido a gravura sobre alimentação. O que a alimentação e o novo têm a ver com o aprender? Para Fernández (2001), aprender é como alimentar-se. As raízes do aprender estão na significação inconsciente dos próprios processos de alimentação. O início de uma aprendizagem representa reviver um processo semelhante aos primeiros contatos com o mamar da fase oral que, para ela, fora difícil em função das frequentes hospitalizações. O bebê, quando mama, por mais passivo que pareça, realiza um trabalho de apropriação e transformação do leite em seu próprio corpo. Na aprendizagem, a informação que se recebe do professor precisa deixar de ser igual àquela que o professor oferece para que passe a fazer parte do seu eu, como um processo de internalização e interiorização.

Em algumas brincadeiras, Vivian dramatizava situações envolvendo um conflito edípico de se arrumar e sair com o pai para uma diversão. A mãe, nessas ocasiões, ficava de fora. Em sua fala, “o pai tinha olhos só para ela”. Parece que nessas ocasiões a paciente desejava ultrapassar ou negar etapas. A brincadeira de namorar ou de se casar parece indicar a possibilidade de ter vencido a barreira do aprender a ler e escrever. Às vezes dizia-se grávida de oito meses mostrando a barriga que já estava crescida. Na realidade, parecia confundir-se com a noção de tempo. Coincidentemente, porém, estando há oito meses em acompanhamento analítico, talvez se sentisse grávida de ideias e de possibilidades de vida.

Em várias sessões Vivian solicitava brincar de eu ser a ‘ceguinha’. Nessa brincadeira a minha mão tremia, as pernas ficavam fracas e, por vezes, a boca ficava repuxada por estar tendo uma convulsão. Vivian apresentava essas características da mão, das pernas e da convulsão. Sua visão global era prejudicada por não possuir uma visão periférica. Durante a brincadeira, enquanto eu assumia o papel de filha, ela, na maioria das vezes, era a mãe ou a professora. E, novamente, uma mãe exemplar, que ficava ao meu lado para me tranquilizar e lembrava-se de buscar todos os recursos para os momentos de crise – médico, ambulância, etc.

Quando a mão tremia, ela, como mãe, confortava-me dizendo que estava ali – “Mamãe te ama muito, fica tranquila, filha!” Mais uma vez me interrogo sobre o que é neurológico e o que é psicossomático quando uma mão treme. Quando eu ficava no estado de cega, ela segurava a minha mão para eu poder escrever melhor. Parece que, nessa brincadeira, ela experimentava o que é escrever para mim, como se a minha mão servisse de espelho para ela tentar fazer as letras. Com o passar do tempo, as brincadeiras de eu estar cega evoluíram do completamente sem enxergar para o enxergar um pouco, até não estar mais cega. Então me pedia: “Vamos brincar de mamãe e filhinha?”

Para a psicanálise, o que significa não poder ver? O visual é um aspecto constante e constitutivo das pulsões sexuais, onde o desejo de saber associa-se ao de dominar, de ver e de sublimar. Para Freud, apud Kupfer (1997), a fantasia da cena primária, uma das três fantasias universais, “é objeto de uma visão pela qual o sujeito imagina (põe em imagens) a sua origem” (FREUD apud KUPFER, 1997, p.83).

O não enxergar pode remeter à outra situação em que não há nada para ser visto porque não há o que olhar, a pessoa está cega. Talvez uma dor que Vivian não quisesse ver ou até uma percepção endopsíquica. Para Freud, apud Nasio (1995), “O conceito de percepção endopsíquica é o conceito de percepção visual endopsíquica, na qual não há ninguém olhando. Seria como se, dentro de nós, algo olhasse algo; não é que nós olhemos para algo, mas algo no analista olha para algo. (...) há uma relação autoperceptiva de um inconsciente que olha para o inconsciente...” (FREUD, apud NASIO, 1995, p.113).

Frente a essa variedade de brincadeiras propostas por Vivian, durante o atendimento aos pais, a mãe queixava-se de que a menina, em casa, apesar dos diversos brinquedos e bonecas, não brincava sozinha. O único momento em que brincava sozinha era quando ficava próxima ao espelho. Embora no consultório demonstrasse criatividade quanto às brincadeiras, acreditamos que havia um eu ainda pouco constituído e que o movimento de ficar separada e diferenciada do eu e não-eu estivesse ainda em processo.

Para Winnicott (1990), a capacidade de ficar só tem a ver com a maturidade emocional. Essa capacidade se constitui gradualmente. O ambiente auxiliar do eu é introjetado e, na personalidade da criança, surge a capacidade de estar só. Assim, há sempre alguém presente, um equivalente à mãe ou a quem estava identificada com todas as necessidades do bebê no início. Vivian não pôde contar com essa continuidade de um eu auxiliar em razão de suas contínuas hospitalizações. Para Winnicott (1990), “à medida que o tempo passa, o indivíduo introjeta o eu auxiliar da mãe e, dessa maneira, se torna capaz de ficar só sem apoio frequente da mãe ou de um símbolo da mãe” (WINNICOTT, 1990, p.34).

Considero significativo observar como Winnicott (1990) caracteriza o ‘eu estou só’ em diferentes momentos da constituição do eu. O primeiro sinal é o uso do eu na fala, o que indica uma unidade, uma organização e o núcleo do eu. Quando isso não está constituído, a criança refere-se a si mesma como outra pessoa – Maria quer, em vez de eu quero. Outra etapa é quando usa a expressão ‘eu sou’. Isso é possível onde há um ambiente protetor e uma mãe identificada com as necessidades da criança. Na última etapa, com o uso das palavras ‘eu estou só’, a criança precisa perceber a existência contínua de sua mãe. Isso requer uma percepção consciente. Em relação a essa terceira etapa, Winnicott (1990) enfatiza a necessidade de “uma mãe disponível cuja consistência torna possível para a criança estar só e ter prazer em estar só, por períodos limitados” (WINNICOTT, 1990, p.35). No caso de Vivian, as intervenções hospitalares e as repercussões do que, no início, era neurológico devem ter prejudicado a organização dessa última etapa.

 

Considerações finais

Percebe-se que entre Vivian e a analista havia uma relação de confiança. Vivian sentia que podia mostrar suas necessidades e seus conflitos.

Brincar, jogar, criar, desenhar, modelar, dramatizar e escrever é forma lúdica de entrar em contato com conteúdos inconscientes que, na fala direta, para uma criança, são difíceis de nominar. Essas representações lúdicas permitiram a Vivian expressar seus mais profundos conflitos e ansiedades. Como vimos, Vivian pôde reviver no brincar angústias de hospitalização, conflitos ao entrar em contato com a leitura e escrita, e outras situações que precisou experimentar. Para isso utilizou a analista como um espelho, a mão que não tremia e outras situações descritas.

As interpretações precisaram ser muito sutis, porque Vivian, muitas vezes, recusava-se a aceitar qualquer vinculação entre as situações encenadas e vivências suas.

De maneira geral, percebemos que poder representar e reviver angústias, em diferentes situações, permitiu que Vivian entendesse o que, por vezes, parecia tão confuso, sem nexo ou sem direção. Para ilustrar, tomemos o exemplo do desenho da casa ou da figura humana. A casa, inicialmente, era totalmente fragmentada. No desenho da figura humana, após duas semanas de férias, o rosto apareceu representado com olhos, nariz e boca fora do círculo. Aqui percebemos quanto a separação era angustiante para Vivian. Na escrita, durante o seu primeiro ano no ensino fundamental, ela conseguiu escrever a maior parte das palavras em nível silábico alfabético. Contudo, havia oscilações em suas conquistas de acordo com seu estado emocional.

Ao examinar alguns referenciais teóricos, percebemos que há diferentes pontos de vista quanto ao atendimento psicanalítico de crianças. Alguns questionam a análise com crianças pela própria constituição do aparelho psíquico. Bleichmar, apud Zorning (2000), divide a clínica com crianças em período anterior e posterior ‘à instauração do recalcamento originário’ e questiona como falar de sintoma antes dessa instauração.

Melanie Klein (1997) defende um aparelho psíquico constituído desde muito cedo. Desde o nascimento existiria um eu capaz de experimentar angústias utilizando-se de mecanismos de defesa e organizando relações de objeto primitivas na fantasia e na realidade. O objetivo da análise de criança, para Klein (1997), é “capacitar a criança a se adaptar à realidade [possibilitando] uma diminuição de suas dificuldades educacionais à medida que elas se tornam capazes de tolerar as frustrações inerentes à realidade” (KLEIN (1997, p.32).

Winnicott (1990) estuda a inter-relação da vivência mãe-bebê considerando a influência do ambiente no ser psíquico. Ele chama a atenção para os primeiros cuidados considerando-os fundamentais. Quando há a falência desses cuidados no ambiente, os processos de maturação e o crescimento afetivo ficam impedidos. Para Winnicott, a técnica psicanalítica precisa oportunizar ao paciente um ambiente novo, adaptado a todas as suas necessidades, onde os sentimentos de amor e ódio possam ser experimentados e o analista não morra, mas sobreviva e sustente os mais diversos sentimentos externalizados pela criança.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Av. Assis Brasil, 3532/1012
91010-003 – Porto Alegre/RS
E-mail: mariamelania@fapa.com.br

RECEBIDO EM: 02/03/2012
APROVADO EM: 16/04/2012

 

 

Sobre a Autora

Maria Melania Wagner F. Pokorski
Psicanalista. Associada do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Psicopedagoga. Mestre em Educação. Professora de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade Porto-Alegrense.