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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.37 Belo Horizonte jul. 2012

 

 

O crime no divã: fundamentos diagnósticos em passionais violentos1

 

Crime on the couch: diagnostic basis on violent passionate personalities

 

 

Marília Etienne Arreguy

Universidade Federal Fluminense
Associação Internacional de Interações da Psicanálise
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo realçar os principais critérios diagnósticos para a compreensão da passionalidade violenta com base na psiquiatria clássica, especificamente na psicopatologia fundamental, e no saber psicanalítico. Recorre-se a formulações conceituais de Clérambault e de Freud, fundantes de um campo diagnóstico das paixões violentas, para incrementá-las com a visão de psicanalistas contemporâneos. Outro recurso utilizado é a descrição de um caso clínico-criminal estudado por Daniel Lagache, em que as interpenetrações da paranoia com o ciúme e a violência atuada na relação amorosa fazem pensar numa espécie híbrida de passionalidade, definida pelo seu avesso como pseudopassional. Como mote para a compreensão dos conceitos apresentados, faz-se também alusão a alguns aspectos fenomenológicos da passagem ao ato nas paixões trágicas através de ilustrações literárias já consolidadas na narrativa universal de Machado de Assis, com Dom Casmurro, e de Shakespeare, com Otelo.

Palavras-chave: Crimes passionais, Psicopatologia, Psicanálise, Literatura.


ABSTRACT

This paper emphasizes the main diagnosis criteria to the understanding of violent passion as defined by classical psychiatry, mainly through fundamental psychopathology and psychoanalytical knowledge. We turn to Clérambault and Freud’s conceptual formulations, which gave basis to the diagnosis field of violent passions, and then increase these with contemporary psychoanalytical views. Another approach is through the description of a clinical and criminal case studied by Daniel Lagache, where the webbing between paranoia and jealousy, together with violence during the love act, makes one think about an hybrid kind of passion, defined by its opposite as pseudopassion. As a motto to the understanding of these concepts, some phenomenological aspects of the acting out on the tragedy of passion through literary examples well known on the works of Machado de Assis, as Don Casmurro, and Shakespeare’s Othello.

Keywords: Passionate crimes, Psychopathology, Psychoanalysis, Literature.


 

 

Há uma série de ambiguidades em julgamentos de crimes passionais, especialmente por conta da atribuição cultural de uma falsa normalidade ao agressor, já que apresenta uma preservação do raciocínio lógico ao longo do tempo em contraposição ao paroxismo temporário que circunscreve o ato homicida. Além disso, o delírio de ciúme por vezes aparenta alguma verossimilhança com a realidade, justamente por ter respaldo no imaginário cultural a respeito da exigência de exclusividade e fidelidade nas relações amorosas, haja vista o propagado temor coletivo em relação à vergonha e desonra de ser traído(a). No campo jurídico, a violência passional chegou a ser considerada normal (Ferri, 1934), por tratar de crimes que aconteciam geralmente uma única vez, quando o sujeito assassinava em revide a um adultério. Assim, criminosos passionais comumente obtinham indulgência em seus julgamentos (RINALDI, 2004; ARREGUY, 2011). Essas distorções históricas foram em parte corrigidas desde os avanços propiciados pelo movimento feminista, em que o julgamento de Doca Street, datado de 1980, foi um marco e, mais recentemente, graças às novas conquistas alcançadas com a promulgação da Lei Maria da Penha (11.340/2006). Houve então no Brasil ao longo do século XX uma transposição da complacência com os passionais para o recrudescimento das penas, sem que se discutissem mais a fundo as condições psicopatológicas que fomentam esses atos.

É importante, pois, resgatar estudos psicopatológicos oriundos da psiquiatria clássica, muitos deles com inspiração psicanalítica, que demonstraram que os crimes passionais se associam aos quadros clínicos como a erotomania e o delírio ou paranoia de ciúme, incluídos nas chamadas psicoses passionais. Contudo, não é possível delimitar estritamente um “tipo passional”. Sujeitos que cometem esses crimes podem ter diagnósticos ligados tanto à psicose, à paranoia, quanto às neuroses graves e até manifestações de uma dita “perversão narcísica” (EIGUER, 2003). Existe desse modo certa permeabilidade entre essas manifestações clínicas, apesar de ter havido na literatura jurídica a tentativa de se fazer diagnósticos estritos a respeito das paixões violentas, sobretudo classificando-as como expressão inequívoca da perversão (RABINOWICZ, 1931; DE GREEFF, 1973). Essa tendência vinha mais de uma tentativa de eliminar a impunidade desses “crimes de exceção” (ARREGUY, 2011), do que de uma compreensão aprofundada da psicopatologia do ato passional violento.

Procurarei então retomar os postulados de Clérambault (1999), de Freud (1996; 1932) e de Lagache (1977; 1979; 1986) a fim de delinear algumas raízes inconscientes em crimes passionais.

Os estudos sobre a erotomania e o delírio de ciúme fundamentaram alguns parâmetros para se compreender a criminalidade na esfera amorosa. Clérambault (1999) foi pioneiro ao incluir a erotomania e o ciúme como componentes dos “delírios passionais”; hipótese corroborada por Lagache (1977). Com base em autores como Sérieux e Capgras [Les folies raisonnantes – 1909], Dide [Les idéalistes passionnés – 1913] e Ribot [La logique des sentiments – 1907] e no próprio Clérambault (1999), Lagache distingue a presença do delírio de interpretação nas manifestações paranoides do delírio de reivindicação ou “querelante” nas passionais.

Na definição das psicoses passionais, aponta que o delírio passional se iniciaria por um choque ideoafetivo, ao contrário do delírio paranoico que teria um surgimento difuso e impreciso (LAGACHE, 1977, p.138). Orgulho, despeito, ciúme, sentimento de desonra, cólera e desespero seriam os componentes afetivos mais comuns nos passionais, podendo levar à passagem ao ato violento em face de uma relação passional duradoura (no sentido de ser fixada e rígida) e desproporcional. Outra característica marcante é a “ideia fixa” em relação ao objeto, obsessivamente recorrente nas ideações e delírios passionais (ibid.).

Clérambault (1999) balizou a atitude passional delirante no erotômano pelo fato de atribuir ao outro, objeto de sua paixão, um enamoramento súbito por ele mesmo, sem que houvesse nenhuma contrapartida factual para essa suposição. Definiu essa atitude como um “postulado fundamental”. Do ponto de vista descritivo, os erotômanos ficam aderidos a uma dada figura, às vezes alguém que nem conhecem. Pode ser uma pessoa famosa ou que viram apenas uma vez, afirmando terem percebido através de um simples olhar ou de um gesto ingênuo que aquela pessoa os amava. Lagache (1977) provê uma síntese das principais características subjetivas na erotomania:

Desse postulado fundamental derivam um certo número de temas: o objeto não pode ter alegria sem o pretendente; o objeto é livre, seu casamento não vale. A esses temas vistos como evidentes se acrescentam os seguintes temas derivados: vigilância contínua do objeto, trabalhos de aproximação da parte do objeto, simpatia quase universal que suscita o romance em curso (LAGACHE, 1977, p.138, tradução da autora)

Nesse tipo de afecção, é esperado que o sujeito não aceite a recusa do objeto em amá-lo, muitas vezes, gerando reações agressivas inconformadas.

Antes de Clérambault (1999), Freud (1996) já havia falado da erotomania e de outros quadros patológicos associados a manifestações passionais e à paranoia, ao conceituar sobre o caso Schreber. Ele construiu quatro fórmulas de uma linguagem inconsciente elucidativa dos conflitos psíquicos envolvidos no delírio, nomeadamente, na paranoia persecutória, na paranoia de ciúme, na megalomania e na erotomania. Para Freud (1996), o elemento gerador do delírio dependeria de contradições na gramática inconsciente responsáveis por tamponar a ferida narcísica e a bissexualidade recalcada.

Na erotomania haveria uma inversão do sujeito da ação, de modo a projetar o próprio desejo amoroso no objeto; processo sintetizado na seguinte fórmula: “Eu noto que ela me ama. Eu não o amo – eu a amo porque ELA ME AMA” (FREUD, 1996, p.71). Os delírios de perseguição na paranoia seriam sintetizados de outra maneira: “um homem ama outro homem”; esse sentimento é recalcado e, ao retornar à consciência, a própria ação, através da transposição do verbo em seu antônimo, é substituída de modo a tornar-se tolerável para a consciência, resultando na fórmula: “Eu não o amo. Eu o odeio” (ibid.). De modo projetivo, a proposição inconsciente se transformaria por sua vez em: “Ele me odeia, portanto, ele me persegue” (ibid.)

No delírio de ciúme, a equação inconsciente passaria também por uma espécie de inversão: “Não sou eu quem ama o homem [rival] – ela o ama.” (FREUD, 1996, p.72), projetando o desejo homossexual recalcado no outro, desejo este travestido de ciúme, em gradações que podem variar da normalidade ao delírio (FREUD, 1932). Na projeção do ciúme, o sujeito é capaz de captar os mais singelos sinais do desejo de infidelidade da companheira – algo que seria rapidamente descartado em manifestações de um ciúme normal – embora a projeção não necessariamente implique na aparição de um nível delirante, como acontece na paranoia de ciúme (FREUD, 1932).

Por fim, na megalomania, a proposição fundadora do sintoma assumiria uma faceta totalizante: “Não amo de modo algum – não amo ninguém [...] Eu só amo a mim mesmo.” (FREUD, 1996). Aí haveria uma supervalorização de si próprio como objeto amoroso, narcísico e “hiperinvestido”, recusando todo e qualquer tipo de dependência ou subordinação ao outro.

Enquanto na paranoia persecutória haveria uma inversão do afeto representado pelo verbo (eu o amo substituído por eu o odeio, portanto ele me odeia e me persegue), na erotomania o sujeito que ama é quem será substituído. Ao erotômano só resta ser amado. Nas palavras de Freud: “essas afeições começam invariavelmente não por qualquer percepção interna de amar, mas por uma percepção externa de ser amado” (FREUD, 1996, p. 71). O mais importante nesse quadro é a potência com que o traço narcísico, em vias de se reafirmar, pode levar a uma conduta criminosa caso o objeto de amor não corresponda à fantasia delirante na demanda de reciprocidade. O erotômano chega a culpar o sujeito, fonte de seu delírio, por não assumir a paixão fantasmática que, de fato, não existe. É comum construir sua fantasia com pessoas famosas, totalmente inacessíveis, afirmando que percebeu “um olhar”, “uma palavra” ou “um gesto” que revelava o intenso amor do outro por si mesmo. Não tolera, enfim, a discrepância entre o desejo do outro e a expectativa onipotente de ser amado.

Fazendo um paralelo com formulações de Racamier (1990) acerca da paranoia, pode-se pensar que a erotomania também esteja associada à projeção da experiência de passividade inconsciente. Ora, o amor narcísico (Freud, 2004) tem como fim o fato de ser amado. Porém, como amar nem sempre condiz com a retribuição do objeto de amor, o sujeito da ação “amar” seria relegado ao outro na medida em que a fantasia de ser amado seria o resultado final de uma ação defensiva bem-sucedida para o sujeito. Na erotomania existe uma reedição da passividade vivida na experiência de satisfação primária com a mãe (FREUD, 1996), em que o sujeito é preservado inconscientemente do risco implicado na ação de amar, dado um suposto investimento materno massivo que impediria a diferenciação do eu. Objeto perdido por excelência, o afastamento inevitável do objeto de amor produz uma “ferida narcísica” exacerbada evitada a todo custo pelo erotônomo, assim ocorreria uma “estruturação” falha do eu, e suas relações objetais tenderiam a malograr. Na erotomania a demanda amorosa é projetada como se proviesse de uma paixão avassaladora do próprio objeto, vítima de um investimento massivo e querelante de um sujeito passivo, destinado exclusivamente a ser amado. A loucura erotômana atinge o apogeu quando o sujeito recebe as negativas do outro, então, a única saída percebida passa a ser destruí-lo. Um exemplo do fenômeno passional violento na erotomania é o filme Atração Fatal (1987, EUA), guardadas as devidas reservas. No entanto, a erotomania só aconteceria em alguns poucos criminosos passionais.

Levando em conta a dinâmica psíquica de pessoas que matam ou agridem por ter sido abandonadas ou traídas em casos mais numerosos e comuns, esse ato costuma ser percebido instantaneamente como “justificável”, pois o sujeito afirma ter se sentido lesado pela(o) companheira(o) de outrora. Há a composição de fenômenos descritos como uma “sensação de injustiça sofrida” e o “complexo de inferioridade”, corroborados por De Greeff (1973) e por Lagache (1986) como parte patente da narrativa de criminosos passionais. O psiquiatra forense Maurice Korn (2003) compilou alguns relatos de condenados, em que os sujeitos afirmam-se arrependidos do crime cometido, e dizem com remorso não saber direito o que os moveu.

Mas, mesmo que reação passional violenta surja de uma infidelidade consumada em uma relação real e duradoura, ela se funda nos fantasmas do sujeito, fomentados por um ciúme crescente que impede o luto de objeto e a separação. O ato impulsivo de assassinar por excesso de amor conota a ação num rompante de cólera e deve ser visto como uma condição destrutiva multifatorial dependente das circunstâncias do ato, da relação e da história subjetiva.

Edith Jacobson (1985) estabelece um vínculo entre a necessidade de traição e a passagem ao ato em certos pacientes paranoides. A “provocação” de um terceiro se imiscui na relação dual e leva à emergência de conflitos arcaicos vividos na esfera familiar primitiva, em que um dos pais ou mesmo ambos teriam o funesto costume de desqualificar o filho. A criança, colocada numa posição de inferioridade, daria vazão para suas pulsões destrutivas através de agressões motoras, na tentativa de afirmar sua força, domínio e onipotência narcísica negada pelos pais. O sujeito passional adulto encarnaria repetitivamente esse lugar inferiorizado sempre em vias de revidar qualquer “provocação” de modo impulsivo passando diretamente ao ato violento. Num contexto de ciúme exacerbado típico da paranoia, haveria então uma necessidade inconsciente de ser traído(a) (Jacobson, 1985), dada a busca compulsiva por relações trianguladas, em que um terceiro sempre estaria à espreita. A passagem ao ato homicida naquilo que chamei outrora de crimes no triângulo amoroso (ARREGUY, 2011) pode ser então compreendida a partir da presença de uma potencialidade passional (AULAGNIER, 1979), também passível de atualizar um potencial psicótico (AULAGNIER, 1975), em que as influências do meio cultural costumam ser facilitar a irrupção da violência em casais.

A diferença entre a paranoia de ciúme e a psicose passional do tipo erotômana estaria na possibilidade ou não de “triangulação” da estrutura psíquica, como bem mostra Melanie Klein (1991) ao definir os mecanismos da inveja e do ciúme. Nas psicoses passionais os aspectos narcísicos exclusivamente diádicos seriam predominantes. Na paranoia, haveria uma interiorização do terceiro, embora este deva ser eliminado. Segundo Aulagnier (1975), na paranoia, a função paterna é internalizada pela criança, porém de modo depreciativo, fixando afetos de rivalidade e hostilidade salientados pela mãe. A ambivalência afetiva é intensificada na medida em que os pais estabelecem uma relação de guerra íntima, em que existe relação sexual, contudo a simbolização dessa relação é desqualificada. O coito é concebido pela criança como uma forma de violência, donde se desenvolveriam fantasias paranoides em que o sujeito se sentiria traído pela mãe, mas seria impedido de identificar-se positivamente ao pai, na medida em que ela o denigre perante o filho. Na paranoia os fantasmas da sexualidade e das origens seriam fundidos com a angústia de morte, pois o sexo seria concebido pela criança de forma sádica (FREUD, 1995) em que o pai se manteria na posição paradoxal de perseguidor-perseguido (AULAGNIER, 1975). Ademais, a criança seria incitada a odiar o pai uma vez que a imagem paterna é maculada pela mãe, identificando-se negativamente a ele, principalmente quando a conspurcação materna se funda na realidade, ou seja, quando o pai de fato agride a mãe diante da criança.

Essa relação querelante, composta de agressão, disputa e difamação, seria repetida pelo sujeito com seus futuros objetos amorosos. A presença real ou imaginária de um rival odiado seria então condição essencial para integrar o triângulo amoroso no modelo paranoico. No campo literário, o clássico romance Otelo de Shakespeare representa os efeitos da imaginação delirante ligada à suspeita de traição e à passagem ao ato homicida, ilustrando o padrão do homem que mata a mulher supostamente adúltera.

Lagache (1986), em seu tratado sobre o ciúme, La jalousie amoureuse, explorou detalhadamente a hipótese da existência de um ciúme homicida (jalousie meurtrier). Segundo Lagache (1986), no protótipo do crime passional em casais heterossexuais a mulher é, na maioria das vezes, a vítima. Já quando a mulher comete o crime, em geral o alvo prioritário do ataque é a rival, e não o marido ou amante traidor. Desse modo, haveria um emparelhamento entre a atuação criminal de homens e mulheres, pois ambos, preferencialmente, atacariam um terceiro do sexo feminino, seja a amada infiel, seja a rival da mulher traída. Essa constatação faz supor que a mulher representa com mais intensidade o objeto a ser eliminado, já que a relação primitiva com a mãe reconduz situações de abandono ou rejeição inconscientes vivenciadas de forma demasiadamente castradora na infância de sujeitos que se tornam criminosos passionais. A quebra na identificação materna primária com alto teor narcísico de idealização, sexualização e violência seria, portanto, intolerável. A mulher no triângulo amoroso violento remeteria à figura de uma mãe tirânica percebida inconscientemente como objeto amado, mas traidor por excelência. Embora a resolução edipiana seja diferente em cada sexo, em ambos, a mãe encarnaria o objeto perdido para o pai, ou para uma função terceira (BALIER, 2005) que o valha, seja o trabalho, os irmãos, um ideal, ou tudo aquilo que se interpõe na relação exclusividade entre mãe e bebê.

Nos crimes passionais, há de todo modo questões atreladas a um terceiro termo, real ou fantasiado, que tem o poder de incitar a dúvida e a insegurança em relação ao amor de objeto. A função de incitação do ciúme por um terceiro foi ironizada por Machado de Assis no romance Dom Casmurro. Machado recorre ao estilo intertextual quando usa a expressão “Uma ponta de Iago” para descrever a atitude de José Dias, espécie de agregado fuxiqueiro que estimula “a primeira mordida de ciúme” em Bento Santiago, ao atribuir “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” a Capitu. José Dias afirmou ainda que Capitu vivia interessada por qualquer “peralta” que passasse pela rua. Essa fala abriu a mais viva ferida de ciúme em Bentinho, reatualizando a fala anterior, numa construção traumática que remete à definição freudiana do trauma constituído a posteriori. Otelo, de Shakespeare, também entra em quadro delirante a partir de uma incitação externa do ciúme, produzida pela intriga de Iago. Esse personagem representa a “terceira pessoa” que ocupa a função maledicente de instigar o ciúme e a subsequente construção vingativa. A diferença é que Bento se fixa numa dúvida passional, da qual não consegue se desvencilhar, ao contrário de Otelo que mata por aderir à certeza da traição. Assim, aquilo que o outro diz – no contexto literário: Iago ou José Dias – pode eliciar uma ação violenta, dependendo da susceptibilidade do agente, ou ainda, de sua fragilidade narcísica e das condições psíquicas que possui para refrear o desejo homicida. Em Dom Casmurro, o protagonista desiste de assassinar seu filho, que desconfia ser bastardo, ao planejar dar-lhe veneno, justamente por sua predisposição melancólica à dúvida. Bento consegue se conter e vai ruminar sua dor através da escrita, tentado “unir as pontas da vida”, da velhice à adolescência, através da elaboração narrativa em primeira pessoa. Então, ele os afasta, mãe e filho, e sofre com a perda. Otelo, ao contrário, transita para o ato criminal, apegando-se a uma certeza fundada numa verdade delirante.

Esses romances mostram a combinação entre fatores psíquicos e sociais em que a diferença que estabelece a condição do crime depende em grande parte do contexto, já que o outro enquanto um terceiro maledicente influencia no crime. Configuram tragédias amorosas compostas de solidão, idealização, projeção, agressividade, rivalidade e, sobretudo, de passagens ao ato como tentativa de assegurar a existência subjetiva.

Enfocando o papel da cultura como terceiro termo internalizado enquanto ideal a ser seguido com a exigência de um gozo moral sádico, o psicanalista brasileiro, Porto-Carrero (1934) assinalou a existência de crimes passionais em que o supereu coletivo teria o papel de impelir, direta ou indiretamente, o supereu individual a cometer um crime. Esse autor define o “delito passional por influência indireta do meio” da seguinte maneira: (...) engloba os indivíduos que, por Super-Ego [sic] vacilante, sofrem a sugestão difusa do ambiente e transformam o seu Super-Ego, à feição do Super-Ego coletivo. Assim, o indivíduo civilizado da cidade, que levaria aos tribunais, em qualquer capital, a quem lhe assacara (sic) injúrias impressas e assim ficaria satisfeito na sua honra e bem visto pelos seus concidadãos – esse mesmo indivíduo, transportado a regiões sertanejas onde a injúria se lava com sangue, ver-se-ia obrigado a matar o insultador; até porque os habitantes da região se ririam dele, se acaso levasse a questão aos tribunais. Assim, os crimes passionais podem estar apoiados na lógica da honra, através da atribuição da desgraça ritual configurada pejorativamente pelo “estigma do corno” (ARREGUY, 2007). A intriga advinda de um terceiro teria o poder de fazer um “curto-circuito” no equilíbrio psíquico precário do sujeito com tendências passionais (AULAGNIER, 1979; Amaral, 2000). Mesmo contando com a influência indireta do meio, por injunções superegoicas coletivas sarcásticas e gozadoras, a responsabilidade subjetiva é inalienável. A perspectiva de que todo crime comporta uma forma de gozo amplia a teoria do “criminoso por sentimento de culpa”, proposta por Freud (1996), e explorada por autores de diferentes períodos e grupos psicanalíticos, como Reik (1973), Lacan (1966) e Bergler (1969). De um modo ou de outro, a ação criminal faz pensar numa tendência sádica, mas, a necessidade de autopunição pela culpa inconsciente os faria associar o gozo sádico de modo secundário a um gozo masoquista primário, este mais diretamente atinente ao embate subjetivo com a Lei. Bergler (1969) afirma que a punição falha em prevenir e eliminar o crime, pois é justamente esse constrangimento externo que os criminosos buscam. O “criminoso por sentimento de culpa” é um sujeito que deseja inconscientemente ser punido, dado o ódio inconsciente voltado contra o próprio eu. A agressividade de fundo masoquista (BERGLER, 1969) seria, portanto, uma forma predisponente em casos passionais típicos, em que há uma maturação prolongada e conflituosa, diferindo da concepção de um crime frio e calculado, como seria o crime conjugal “por dinheiro”. Mijolla-Mellor (1995) diferenciou os crimes passionais dos “crimes conjugais”, como se segue:

O crime conjugal não se confunde com o crime passional no sentido que se tem o costume de dar ao termo, pois se o homicida mata, não é por amor decepcionado transformado em ódio, mas a fim de se desembaraçar de um companheiro castrador e desinvestido que lhe barra o caminho para levar a cabo uma outra empreitada amorosa (MIJOLLA-MELLOR,1995, p.59, tradução da autora)

Esses crimes conjugais estão relacionados ao interesse financeiro na eliminação do(a) companheiro (a), por vezes, combinada previamente com o(a) amante. Costumam ser casos em que o marido é morto pelo amante para ficar com a mulher e, ambos, desfrutarem da herança. Nos crimes conjugais os traços perversos seriam pregnantes, envolvendo uma perspectiva de lucro, ou seja, certo ganho financeiro com o assassinato do terceiro, mais incômodo do que odiado. O expert psiquiatra Scherrer (1980) periciou caso exemplar em que o amante mata o marido e fica com a esposa herdeira. Ela passa a viver com assassino de seu marido e a sustentá-lo com o dinheiro recebido da herança logo após o fato do amante homicida ter cumprido pena.

No intuito de aprofundamento do diagnóstico diferencial, há também casos dados como “pseudopassionais” (LAGACHE, 1979), em que o assassinato é premeditado e estaria relacionado à paranoia típica e à ausência de ciúme. O surgimento da agressividade depende de uma disputa factual pelo objeto de amor na idade adulta, conformando uma espécie de “acerto de contas” tardio, a posteriori. Um exemplo de “pseudopassional” descrito por Lagache (1979) é o caso Fuget, que apresentarei resumidamente. Logo quando nasceu, seus pais estavam se divorciando; Fuget recebeu o nome paterno, porém aos seis anos foi renegado pelo pai e sofreu um processo de contestação de paternidade. Foi criado pela mãe e pelos avós maternos, que não falavam do pai para ele. No decorrer da vida, Fuget constituiu um histórico de agressões em sua “ficha criminal”. Separou de seu primeiro casamento, que durou três anos, com uma cena de violência, por incompatibilidade de humor e por brigas envolvendo dinheiro, deixando sua filha com a ex-mulher. Foi condenado por abandonar sua primeira família sem pensão alimentícia. Casou-se novamente, buscando amantes após uns oito anos de casado. Então, a violência “pseudopassional” surgiu na relação com uma de suas amantes.

Fuget tentou assassinar Martin, marido de sua amante, com três tiros após este tê-la agredido. Até aí poderia ser considerado um passional típico que teria cometido o crime por honra, incitado pela intriga da esposa ofendida. Entretanto, Fuget havia comprado a arma com certa antecedência, parecendo ter aguardado a oportunidade “correta” para eliminar o rival, uma vez que o casal encontrava-se em franco conflito. Pode-se levantar a dúvida acerca da presença ou não do fator passional, pois houve a provocação de Martin que bateu publicamente na esposa, amante de Fuget, dando a ele a prerrogativa para passar ao ato criminal. A tentativa de assassinato que cometeu contra Martin reproduz uma situação que parece estar ligada aos fantasmas decorrentes de suas frustrações infantis. É como se ele quisesse resgatar a imagem da “mulher-mãe”, ao proteger a amante contra um “marido-pai” tirânico. Ora, Fuget tentou eliminar o rival e não o objeto de amor, pois não tinha ciúme da amante, que designava apenas como “amiga”.

Esse caso pseudopassional guarda relações notórias com a paranoia típica (MIJOLLA-MELLOR, 2007). Fuget era autodidata, consciente de seus atos e, retroativamente, projetou seu ódio no marido representante do pai, reatualizando o sofrimento em relação à rejeição paterna, já que o marido legítimo agrediu a esposa, amante de Fuget. Os tiros contra Martin conotam assim uma tentativa de recobrar o ódio do pai que abandonara e humilhara a ele mesmo e a sua própria mãe. O autor do crime execra qualquer relação positiva com o pai, mas se comporta de alguma maneira como ele, de modo identificado, pois o próprio Fuget também abandonara sua família (LAGACHE, 1979, p.65). Lagache descreve que Fuget apresentava conflitos com a autoridade no trabalho, desencadeando querelas com colegas, competindo e buscando posições de destaque. Suas reações violentas tinham uma função liberatória e justiceira. Ele teria atacado Martin premeditadamente, embora de certo modo, para além de se vingar, quisesse livrar a amante do conflito com um marido tirânico.

Sem a menor pretensão de esgotar o tema do diagnóstico diferencial de criminosos passionais, concluiríamos com a seguinte constatação: afora os erotômanos, em que a dualidade narcísica seria predominante, um fator comum nesses crimes é a impossibilidade de superar a triangulação da relação amorosa, depreciada pelo outro e encarnada pelo sujeito, através de passagens ao ato consideradas justificáveis, dada a incitação e indulgência cultural ainda muitas vezes presente nesses crimes.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua do Russel, 496/510 – Glória
22210-010 – Rio de Janeiro/RJ
E-mail: mariliaetienne@id.uff.br

RECEBIDO EM: 15/02/2012
APROVADO EM: 15/04/2012

 

 

Sobre a Autora

Marília Etienne Arreguy
Professora Adjunta II – Psicologia, Educação e Humanidades na Universidade Federal Fluminense – UFF. Doutora em Saúde Coletiva pelo IMS-UERJ e em Pesquisas em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris Diderot – UP7. Associada à Associação Internacional de Interações da Psicanálise e Associada ao Fórum do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.

 

 

1Este texto é um excerto retrabalhado da tese “Os crimes no triângulo amoroso” defendida pela autora em 2008, no Instituto de Medicina Social da UERJ. Foi apresentado no Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, “A Psicopatia da vida cotidiana” em 2010.