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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.37 Belo Horizonte jul. 2012

 

 

Vulnerabilidade das pessoas em cumprimento da pena à luz da psicologia

 

Vulnerability of persons serving a sentence into the light of psychology

 

 

Stetina Trani de Meneses DacorsoI, II, III; Lilian Meneses DacorsoIV

I Círculo Brasileiro de Psicanálise
II Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora
III Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos
IV Instituto Brasileiro de Psicanálise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama - Juiz de Fora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo procura trazer à luz questões que permitam a discussão das condições psicológicas de pessoas que cumprem pena em casas de detenção. O sistema prisional sempre é objeto de discussão. A proposta das autoras é oferecer elementos à luz da Psicanálise de forma a possibilitar que a discussão possa ser mais efetiva e aprofundada quando o foco for a preocupação com as condições psicológicas dos detentos.

Palavras-chave: Sistema prisional, Vulnerabilidade psíquica, Castigo, Educação, Trabalho.


ABSTRACT

This paper seeks to throw light on the issue of Psychological conditions meet by people at the house of detetion. The prison system is always object to discusssion. The authors’ objective is to offer elements from a psychoanalytical point of view, in order to enable a discussion that may be more detailed and effective, specially when the focus is a concern with the psychological conditions of prisoner.

Keywords: Prison system, Psychic vulnerability, Punishment, Education, Work.


 

 

A sociedade é sempre o produto de conflitos, de paradoxos, ela é cheia de contradições, fruto da invenção social, da negociação e da elucidação.
Eugene Henriquez

 

Esclarecimentos

Este artigo, em sua maior parte, é a reprodução de uma palestra realizada em agosto de 2011. Fomos convidadas para apresentar o tema: Vulnerabilidade das pessoas em cumprimento de pena à luz da Psicologia, convite este feito a duas psicanalistas. O tema se incluía num conjunto de apresentações do 1º Seminário de Capacitação para Conselheiros da Comunidade de Juiz de Fora e Região.

O assunto é delicado para nós psicanalistas. Envolve discussões sobre Lei, transgressão e cultura, interiorização da Lei, punição, culpa e muitas outras questões. Decidimos publicá-lo pelo debate que provocou quando apresentado e acreditamos que, assim, deixamos em aberto o espaço para debates.

A mídia vincula notícias sobre mudanças no Código Penal, mudanças na estrutura das casas de detenção e outras tantas decisões a cada crime hediondo e/ou fuga e/ou violência nestes espaços presidiários.

Sigmund Freud, no texto “Análise Terminável e Interminável” (FREUD, 1979), define que existem três profissões impossíveis: política, educação e análise. As leis são realizadas para um coletivo, a educação deve atender a necessidades de mercado sendo também para um todo e a análise lida com o sofrimento provocado em cada um por sua exigência pulsional em conflito com as exigências de amor e da cultura. Os seres humanos reagem mal e de forma violenta a qualquer movimento que implique em limitação, impedimento ou punição à satisfação de seus desejos particulares.

Esta palestra foi realizada para um público de 250 pessoas de todos os níveis sociais, incluindo advogados, diretores de casa de detenção, agentes presidiários e pessoas da comunidade que fornecem alguma assistência aos presídios, estagiários de psicologia, direito, assistência social.

 

Eu, você, Nós, a Lei e o sofrer...

Iniciemos pela compreensão da constituição da subjetividade de um ser humano na relação com seu meio ambiente. Quando nascemos o fazemos inseridos numa família que já possui suas regras, todas as crianças necessitam de um mínimo de regras para sua sobrevivência: usar o troninho; falar para poder solicitar e se comunicar, horários para dormir e comer. Estas e muitas outras que mudam de acordo com o meio familiar: o que é certo e errado; o que pode e não pode; como funciona o sistema de castigos e premiações; quais são as exigências inquestionáveis e quais podem chegar a ser discutidas. Como afirmamos anteriormente, vai variar de grupo familiar para grupo familiar.

Depois de alguns anos de vida, todos nós já possuímos alguma independência e ampliamos nossos horizontes: escolinha, clubes, casa de coleguinhas; dando pulos de décadas: faculdade, barzinhos, viagens, clubes, hotéis; a questão tão preocupante dos dias atuais que é a direção no transito e tantas outras que afetam as famílias em sua preocupação com os adolescentes. Podemos deduzir que aquilo que se aprendeu em casa será estendido ao coletivo. As regras da casa são menores que as do coletivo, é óbvio. Porém, na medida em que se aprendeu que existem regras que devem ser obedecidas para a convivência grupal, este sentido de regras para melhor viver é ampliado para um todo maior.

Naturalmente, vocês podem estar se perguntando como encontramos tantas pessoas que burlam, transgridem, enfim, cometem atos considerados hediondos pelo restante das pessoas, sendo necessária a entrada em cena do Código Jurídico, das Leis de um país, da comunidade. Isto ocorre porque não basta ter sido educado, existe também o livre arbítrio e as patologias psíquicas de determinadas pessoas que assim se constituem. Por esta razão, podemos afirmar que o sujeito delinquente existe e atua nos espaços democráticos.

Toda cultura, todo momento sócio-histórico-cultural possuiu e possui seu sistema de regras e leis. À medida que o mundo e a cultura mudam, procura-se adequar na medida do possível as leis a este novo modus vivendi.

Michel Foucault, filósofo e epistemólogo francês, fez um histórico do sistema de punição e castigos desde tempos remotos em sua obra Vigiar e Punir (FOUCAULT, 1977). Vamos sintetizar muitas análises e momentos históricos para podermos chegar ao nosso foco de hoje. Mas é importante termos uma visão histórica da questão que analisamos. No nosso caso particular, optamos por pinçar alguns temas neste assunto tão amplo e complexo: corpo, castigo, isolamento, suplícios e educação. Reconhecemos que existem outros tão importantes quanto estes, mas nos estenderíamos em demasia.

Podemos iniciar com um histórico rápido da punição feita aos transgressores. Uma das primeiras formas de punição conhecida em nossa história é o suplício. Punição que mais parecia um teatro, fazendo com que o acusado ficasse exposto em praça pública e sofresse torturas equivalentes ao crime cometido. Quanto maior o crime, maior a dor que o acusado devia sentir. O povo assistia em clima de euforia, gritando ao carrasco que infligisse mais dor (FOUCAULT, 1977). Aos poucos a cena muda. Passaram a cobrir o rosto do acusado como se isto fosse menos humilhante. O espetáculo de teatro ganha menos peso, o detento passa numa carroça por toda a cidade para que todos vissem como era penoso ir contra as regras. Os reformadores, revoltados com estas cenas que nada contribuíam para a diminuição dos crimes, lutavam por uma forma diferente de punição, algo que não expusesse tanto o condenado e contribuísse para o processo de re-educação.

Começaram a surgir as casas de detenção, que tinham como objetivo re-educar, isto é, moldar o sujeito que melhor conviesse à sociedade. A prisão surge para proteger a comunidade de perigos intencionais, o bem-estar das pessoas internadas não estava em questão. A prisão foi desde o início uma forma de modificação dos indivíduos, de condicionamento que funciona através da privação da liberdade. É uma forma de se obter um saber clínico sobre os condenados, estudá-los, avaliá-los, entrar em seu íntimo para saber como funciona sua mente, de que são feitos estes sujeitos (FOUCAULT, 1977).

Foucault em Vigiar e Punir (1977) analisa que durante a época clássica o corpo foi descoberto como objeto e alvo de poder, corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil e cujas forças se multiplicam. O autor cita o livro O homem-máquina, de La Mettrie, que usa em uma parte de sua obra o que Descartes descreveu e filósofos e médicos continuaram. Em outra parte o livro é técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Este livro é uma redução materialista da alma e um adestramento do corpo. Estes métodos é que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade. São estes métodos que Foucault vai chamar de “disciplinas”. Os processos disciplinares já existiam há muito tempo: nos conventos, exércitos, nas oficinas. As “disciplinas” se tornaram, no decorrer do século XVII e XVIII, formulas gerais de dominação. Ao encarcerar, ao retirar do convívio social, ao tornar dócil, vemos a reprodução de uma sociedade maior: quartel restrito, escola sem indulgência, uma oficina sombria (GOFFMAN, 1974).

Foucault (1977) vai analisar que a sociedade disciplinar possui uma singularidade que reside na existência do desvio diante da norma. Para “normalizar” e “normatizar” o sujeito moderno foram desenvolvidos mecanismos e dispositivos de vigilância, capazes de interiorizar a culpa e causar no indivíduo remorsos pelos seus atos. Frisamos que esta culpa interiorizada no sujeito pode ser trabalhada sob vários paradigmas: religioso, moral, psíquico, amoroso, psicanalítico etc. Em decorrência do objetivo do tema, optamos pela leitura foucaultiana de disciplinas e normatização com a articulação ao social.

Foucault (1975) vai citar o Panóptico, um mecanismo arquiquetônico penitencial – considerado ideal – desenhado pelo filosofo e jurista Jeremy Bentham em 1785, cujo objetivo era controlar sem ser visto e também ser menos dispendioso em termos financeiros já que podia utilizar um número bem menor de funcionários. Servia para domínio da distribuição dos corpos: criança aprendendo a escrever; prisioneiro a ser corrigido; um louco e sua loucura. O panoptismo é a observação integral por parte do poder disciplinador da vida do sujeito. Vigiar o tempo inteiro sem que se veja o observador. O mais importante do que vigiar o tempo inteiro, era que o mesmo se soubesse vigiado. O objetivo não era a punição, mas que todos se sentissem mergulhados num campo de visibilidade. Assim cada um toma por sua conta as limitações. Foucault acrescenta que o Panóptico era uma grande ficção, porque se fazia a ronda em horários variados, se punham algumas pessoas para gritar de forma a que todos tivessem a certeza que alguém burlou e estava sendo punido severamente no mesmo corpo dantes vigiado. O efeito dessa Grande Ficção é que é importante.

O poder é visível e inverificável. É visível porque o detento vê a torre que o vigia, é inverificável porque ele nunca deve saber se está sendo observado, mas tem a certeza de que sempre pode sê-lo. A arquitetura é feita de tal forma que se possa controlar o interior, olhar, vigiar e dominar. Quem sabe que está submetido a um campo de visibilidade retoma por sua conta as limitações do poder, as faz funcionar espontaneamente sobre si mesmo. Inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis, torna-se o princípio de sua sujeição. Este é o modelo Panóptico (FOUCAULT, 1977).

Nasce, assim, uma política das coerções, uma anatomia política e mecânica do poder: domínio sobre o corpo do outro para que opere como se quer. Fabricam-se corpos exercitados e dóceis. As disciplinas organizam as celas, lugares, fileiras, criam espaços arquitetônicos, funcionais e hierárquicos. Realizam fixação e permitem circulação. Marcam lugares, indicam valores, garantem obediência e melhor economia de tempo e gestos. Regem disposição de móveis; prédios; salas; colégios; quartéis; disciplina dos espaços; fila; controle de horários.

“Arte do bom adestramento” se relaciona com a correta disciplina, já o dizia Kalhausen no início do século XVII (FOUCAULT, 1977). Assim, temos as punições por desvios de qualquer ordem, tempo, sexualidade, corpo, maneira de ser. As punições foram copiadas do modelo judiciário: multas, açoites, masmorra. E várias outras formas.

Vamos fazer um parêntese, e falemos um pouco do CORPO. Aparentemente o corpo é de domínio pessoal, é um bem que nos pertence. Ora, mas o corpo produz dor. Aqui temos duas questões muito sérias: corpo e dor. E se acrescentarmos mais uma: considerarmos o corpo como um envelope? Mas do quê? Da alma, do espírito, da inteligência... Enfim, qualquer coisa que não seja tão material e que ao mesmo tempo faça parte do ser humano e esteja ligado irremediavelmente a este envelope-pele-corpo (ANZIEU, 1989). A dor desde tempos remotos tem sido considerada um bom mote pra educar, fazer ceder, alcançar uma pureza de alma, uma elevação do espírito, um domínio sobre si mesmo, uma calmaria das paixões corpóreas, e podemos continuar ao infinito. Assim, agindo sobre o corpo alcançamos este bem mais precioso que está dentro... O corpo é uma arma de controle de populações. Basta que olhemos o mundo à nossa volta para percebermos como este corpo é assediado, seduzido, manipulado, mutilado...

Retomando os pontos que levantamos até agora, fomos da educação das crianças até o social e falamos rapidamente de leis, transgressões e pinçamos o corpo no nosso raciocínio.

Ampliemos um pouco o nosso leque de raciocínio. Houve um tempo mítico – que não temos como precisar e cada corpo teórico tem sua explicação e constructo – enfim, houve este tempo, quando o número de pessoas aumentou, seja uma horda, vila, família, clã, comunidade... não importa. O número aumentou e não era mais possível que tudo funcionasse livremente. A primeira delas foi a proibição do Incesto. Com esta proibição se criam as regras de relação de parentesco, propriedades e a exogamia. Para que as pessoas possam sobreviver juntas é necessário leis e códigos. E aliado, um sistema de punição para quem não obedecesse. Aqui o sagrado, e/ou divino, sempre teve um peso muito importante no sentido de fazer os seres humanos terem medo e obedecer. O importante é frisar o sistema de castigo, aqui entra a DOR. Existe um ditado popular que diz: sem dor, sacrifício e/ou sofrimento não tem efeito e/ou valor... O sofrimento enaltece, purifica, valoriza algo, enobrece. Quando o divino/sagrado tinha uma primazia nesta ordem social, a Fé das pessoas provocava o castigo porque elas não duvidavam. Conhecendo as sanções, elas aconteciam. Por exemplo: não pode andar onde o pajé (representante e contato íntimo do sagrado) acabou de pisar, se o fizer vai morrer, ou perder as pernas, ou nunca mais andar (FREUD, 1979). Bastava alguém dizer que o sujeito estava pisando em terreno proibido e o castigo acontecia sem intervenção das pessoas.

Com o crescimento das sociedades, e quando os vencedores dos conflitos de guerra perceberam que era melhor manter vivos os vencidos para fazê-los de escravos, fez-se necessário sofisticar o sistema de controle de prisioneiros e domesticá-los. Porque a vingança poderia ocorrer a qualquer momento. Não basta que o corpo ceda, é necessário que o espírito também fique domesticado. Os suplícios e castigos com as várias formas que o ser humano inventou ao longo da humanidade até chegar às penas de prisão, é uma mutação técnica! É a passagem de uma arte de punir a outra (FOUCAULT, 1977).

Encontramos as disciplinas de Foucault. Adestramento das massas, dos corpos, das mentes. Surge todo um processo de avaliação: sagrado/não sagrado; normal/anormal; saúde/doença; certo/errado. E sempre presente a questão: qual a melhor forma de melhorar esta “anomalia”, seja ela de que ordem for?

Neste ponto vamos voltar nosso olhar para a infância do ser humano. Todos nós nascemos dependentes e frágeis. Precisamos que o outro cuide de nós para podermos continuar vivos, literalmente. E antes que se levante a dúvida se estou me referindo às famílias razoavelmente organizadas, deixe-me esclarecer que me refiro a qualquer ambiente onde um ser vai ser minimamente cuidado para sobreviver. A nossa dependência física e emocional nos faz demandar a atenção daqueles que percebemos serem fundamentais às nossas necessidades. Seja sendo inteligente, educado, esperto, servil, obediente, desobediente, bom, mal, saudável, doente. Todos conhecem aqueles alunos que têm dificuldade de estudar – por vários motivos – e não podendo ser o primeiro da sala, será o mais bagunceiro, o “puxa-saco” da professora. Pode-se chamar a atenção de várias formas: o mais violento; o que mais mata; o que mais se droga; o mais esperto...

Trazemos da infância a marca da necessidade de cuidado, proteção de alguém superior a nós: pai, mãe, professora, líder, chefe. A cadeia de pessoas às quais devemos certa obediência e ansiamos pela admiração/amor é enorme. E também trazemos a marca de saber o quanto é doído termos um desejo, uma necessidade, uma vontade que alguém impede de satisfazer. E acatamos por nossa dependência.

As crianças sentem quando os pais sempre tão carinhosos proíbem uma brincadeira, comportamento ou fala. E elas sentem muito. No início todas as crianças ficam com medo de perder os pais, depois de perder seu amor e depois “percebem” que os pais ficam chateados, mas permanecem ali. Não estou incluindo aqui os pais que ultrapassam os limites seja lá em que direção... Quando os progenitores veem esta percepção de seus filhos, os castigos começam a ficar mais sofisticados: sem mesada, sem shopping, sem presentes, sem saída e em alguns casos ficar preso no quarto por um bom tempo, e em outros a surra...

O desprazer, a frustração, a dor psíquica e em muitos casos a dor física.

Não é só uma questão de provocar dor e depois a subjugação do outro... Há também o dado de que o corpo realiza aquilo que se processa dentro. É o corpo que atua os desejos errados construídos dentro, faz-se necessário moldar o espírito, o caráter, a alma, a vontade, os desejos, para que o dentro comande o corpo de forma correta, de acordo com o paradigma de controle que se esteja usando.

Como já dissemos, aqui entram as guerras, as torturas, inquisições e muitas outras coisas que se pode acrescentar enquanto “mazelas e sofrimentos corporais” para se alcançar e domesticar o dentro. Ações de todos os tipos e com inúmeras finalidades são efetivadas sobre o corpo do outro. Articulemos tudo que analisamos até o momento com o que consideramos ser uma contribuição para a diminuição de violência nos presídios, uma menor vulnerabilidade psíquica dos detentos e, talvez, uma diminuição de reincidência.

 

Considerações finais

No fim do século XVII, quando a punição se tornou parte velada do processo penal, o corpo começou a ser utilizado como instrumento de privação, de obrigações e de interdições. É sempre do corpo que se tratava, de suas forças, de suas utilidades, docilidades, submissões. A alma era também utilizada para a correção, o castigo deveria atuar sobre o coração, o intelecto e a vontade (MEDEIROS, 1996). Tudo se torna julgado: as paixões, os instintos, as anomalias, os efeitos do meio ambiente, a hereditariedade. Julga-se o que fizeram, mas também o que são. Um crime é cometido porque traz vantagens; para o castigo ter efeito basta que o mal que cause ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime. A lembrança da dor pode evitar a reincidência, é a certeza de ser punido que desvia o homem do crime (SYKES, 1969).

O suplicio se inseriu na pratica judicial porque é revelador da verdade e agente de poder. O castigo vem em consequência de uma desobediência de regras. A solidão que também é usada como forma de punição é vista como instrumento positivo de uma reforma pela reflexão que suscita e pelo remorso que não pode deixar de vir (MEDEIROS, 1996).

Não está em discussão se as leis são justas ou injustas. Se as pessoas merecem ou não o tipo de julgamento. Se os motivos são aceitáveis ou não. Se houve avaliação de um perito sobre o psiquismo do condenado, no que se refere às patologias. Todos estes pontos são importantes e merecem outra pesquisa. O foco em análise é a vulnerabilidade de pessoas no sistema de punição, que é o encarceramento.

O encarceramento retira o ser humano do convívio com outros do coletivo e o coloca isolado e na maioria das vezes com pessoas que cometeram transgressões piores que a dele. Os pensadores de várias áreas, desde tempos memoráveis, consideram o presídio uma escola de transgressões. Ali estão os transgressores, os que vão tentar impor naquele restrito espaço as suas leis, os mais fortes dominam os mais fracos e os “bons alunos” aprendem rápido, até para poderem sobreviver. E o sistema de controle e cuidados daquele espaço nem sempre é eficiente no sentido de organização e cuidados locais.

O processo de admissão do detento é uma despedida e o começo de um processo que pode ser marcado pela nudez. Despedida de um mundo de liberdade de escolha e decisões. Começo de um mundo que não é permitido falar, apenas quando perguntado. A nudez provém do esvaziamento do sujeito de suas identidades (SYKES, 1969). Ao entrar para a Instituição carcerária perde os suportes de sua identidade pessoal e social (MEDEIROS, 1996).

O isolamento, a ociosidade, a ausência de objetivos tornam a mente mais comprometida. Menos capaz de pensar e evoluir. Não é nosso objetivo discutir sobre a punição do encarceramento. É o que temos em nossa sociedade! Mas a questão é como o ser humano pode tirar algum proveito deste, digamos, “castigo”. COMO? Aqui entramos num terreno delicado, porque não são todos que são beneficiados pela possibilidade de estudo, ou um tipo qualquer de ocupação, enfim, alguma atividade onde o tempo não fique ocioso.

Toda produção implica no uso de um potencial humano que se expressa através: das artes de todos os tipos; produção de um artefato qualquer e de qualquer ordem; do ensino... O sujeito encarcerado não utiliza o potencial, que por acaso possua, o seu tempo ocioso o fará aprender aquilo que circula no ambiente: transgressores e formas de transgressão.

Se não existe, aliado ao processo de reclusão, algo que leve o sujeito punido a um processo de construção, as chances de ressocialização ficam praticamente impossíveis e árduas, porque é um processo solitário.

A ociosidade constante torna atraente QUALQUER motivação e/ou solicitação do meio. Na nossa perspectiva a ociosidade deveria deixar de existir.

Novamente repito que não é possível focar a questão da detenção com um único olhar. Temos a constituição psíquica do punido; o crime/transgressão cometido; o preconceito da sociedade em relação ao ex-presidiário; a dinâmica do espaço onde ele cumpre pena; companheiros de cela e prisão; a idade; possibilidades de aprendizagem de um oficio que permita a sobrevivência pós-cárcere. Senão ficamos considerando uma questão tão delicada como esta de forma muito superficial.

A PUNIÇÃO, em todos os tempos, traz embutida em si a possibilidade de REEDUCAR!

Se no ambiente de detenção não há espaço para reeducar com outros valores, se a re-educação é feita com outros transgressores-punidos, e o ambiente é de ociosidade com o exercício dos mesmos atos que levaram ao encarceramento, acreditamos em grande porcentagem de reincidência.

Freud, em “O Mal-Estar na Civilização” (1979), se refere ao trabalho como uma técnica única na vida que prende o indivíduo firmemente à realidade. Fornece um lugar seguro na realidade e comunidade humana. Desloca grandes quantidades de componentes libidinais, narcísicos, agressivos e eróticos, inclusive para os relacionamentos humanos a ele vinculados (FREUD, 1979).

Naturalmente o trabalho escolhido livremente vai constituir fonte de prazer e satisfação especial. O que não é o caso no contexto que estamos a pensar, mas podemos utilizar a representação psíquica de um obrar nestas condições.

Sabemos que citamos vários pontos que necessitam investigação. A intenção é possibilitar que possamos pensar com cuidado e profundidade. O assunto é delicado e difícil. E tornamos a repetir, com vários fatores em jogo. Não basta dizermos o que seria ideal. Porém insistimos na leitura de um sujeito produtivo, já que o objetivo é punir para reeducar.

Se deixarmos ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo não é sua continuação necessária, nutrimos nele a esperança de impunidade. Nada torna mais frágil o instrumento das leis que a esperança de impunidade, a eficácia das penas deve ser apoiada sobre a vaidade que estava na raiz do crime (SYKES, 1969, p.56).

 

Referências

ANZIEU, D. Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989.         [ Links ]

CORBIN, A, COURTINE, J-J, VEGARELL, G. A história do corpo, 3. As mutações do olhar. O século XX. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.         [ Links ]

FOUCAULT, M. Vigiar e punir. A história da violência nas prisões. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 1977.         [ Links ]

FREUD, S. Totem e tabu. In FREUD, S. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1979, v.XIII.         [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na civilização. In FREUD, S. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1979, v.XXI.         [ Links ]

FREUD, S. Análise terminável e interminável. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1979, v.XXIII.         [ Links ]

GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.         [ Links ]

MEDEIROS, N. Corpo e prisão. Sexualidade matada ou negada? Belo Horizonte, 1996. Obra mimeografada e cedida.         [ Links ]

SYKES, G.M. Crime e sociedade. Rio de Janeiro: Bloch, 1969.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Rua Padre Nobrega 35/201 – Paineiras
36016-140 – Juiz de Fora/MG
E-mail: stetina-dacorso@ig.com.br

Lilian Meneses Dacorso
Rua Padre Nóbrega 35/201 – Paineiras
36016-140 – Juiz de Fora/MG
E-mail: ldacorso@ig.com.br

RECEBIDO EM: 22/03/2012
APROVADO EM: 16/04/2012

 

 

Sobre as Autoras

Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Letras-Literatura Brasileira CES-JF. Mestre em Psicologia AWU-USA. Membro Efetivo e Psicanalista do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção RJ. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise 2010-12. Professora titular do Curso de Psicologia-Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Membro Efetivo do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBP-RJ).

Lilian Meneses Dacorso
Psicóloga. Psicanalista da SOBRAP-JF. Psicologia Jurídica Ciclo-Ceap-BH.