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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.37 Belo Horizonte July 2012

 

RESENHAS

 

Resenha do livro “Dimensões do despertar na psicanálise e na cultura”

 

Denise Maurano, Heloneida Neri, Marco Antonio Coutinho Jorge (orgs.)
Rio de Janeiro, Contra Capa, 2011.

 

 

Rafael Ribeiro Mansur Barbosa

 

O que é o aparelho psíquico para a psicanálise senão um aparelho de defesa? Tanto a fantasia fundamental de um neurótico quanto a construção delirante de um psicótico visam proteger o sujeito da crueza, o não-senso, do Real. No entanto, essa proteção não sai de graça. O preço que se paga por ela pode ser comparado a um sono embriagante, no qual o sujeito se encontra aprisionado em um automatismo de repetições que o arrastam em alienações imobilizadoras. Como, então, pode o sujeito se proteger das emergências do Real, sem que, para isto, tenha que pagar o preço do adormecimento?

Criar condições de possibilidade para o despertar, ainda que apenas por alguns momentos, é uma das mais importantes funções de um trabalho de análise, e é a tarefa primordial da arte, da literatura e de várias outras manifestações da criação humana. Nesse sentido, o despertar é correlato de fim de análise e consequência inerente à travessia da fantasia.

O despertar em suas mais diversas dimensões constituiu o tema abordado no I Colóquio Internacional do Corpo Freudiano, realizado na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2007. Os treze trabalhos ali apresentados, entremeados por três conferências proferidas por Alain Didier-Weill, foram compilados pelos psicanalistas Denise Maurano, Heloneida Neri e Marco Antonio Coutinho Jorge e estão disponíveis em um livro publicado pela editora Contra Capa – Dimensões do Despertar na Psicanálise e na Cultura.

As três conferências de Alain-Didier Weill funcionam quase que como a “espinha dorsal” do livro. Na primeira, o psicanalista francês, que foi analisando e supervisionando de Lacan durante mais de uma década, nos traz várias questões relevantes, das quais se destaca a responsabilidade do analista que é a de saber introduzir a escansão siderante, o equivalente de um chiste, para levar ao despertar. Do mesmo modo, a responsabilidade do analisando com seu próprio despertar é introduzida tal qual lhe foi indagado pelo próprio Lacan: como, num tratamento analítico, indicar um caminho no qual o analisando possa, estruturalmente, renunciar à denegação?

Em seu segundo pronunciamento, Alain Didier-Weill faz uma abordagem da música. Se a psicanálise permite ouvir significantes inconscientes, a música permite que se escute a articulação que há entre os significantes puros que são as notas musicais, sendo esta articulação denominada ritmo. Mas há uma hipótese necessária para que, da música, se possa ouvir um ritmo. Essa hipótese é a de que um terceiro ouvido em nós o ouve e, ao ouvi-lo, ele ouviria uma pulsação que é o que gera o tempo, que não existe em si mesmo.

O tema da música também é abordado no livro por Jean-Michel Vivès, que, ao contrário de Didier-Weill – que faz alusão a um terceiro ouvido e, portanto, a um mais-de-ouvir –, aponta para a importância estruturante que há em um menos-de-ouvir. Para Vivès, é fundamental que na constituição do sujeito haja aquilo que ele denomina de um “ponto surdo”, ponto no qual o Outro não é escutado. É somente nesse silêncio do Outro que o sujeito pode se constituir enquanto tal.

No terceiro encontro, Didier-Weill analisa a influência dos filósofos gregos pré-socráticos sobre a obra de Freud e Lacan, para indicar as consequências de Freud ter se filiado a Empédocles e Lacan ao logos de Heráclito. Dentre essas consequências destaca-se o fato de Freud ter tido predominantemente uma concepção dualista da pulsão, ao passo que em Lacan é estabelecida uma continuidade entre as pulsões. Este monismo acha-se encarnado em sua obra de várias formas como, por exemplo, na Banda de Moebius, figura topológica que Lacan utiliza para ilustrar a estrutura mesma do sujeito do inconsciente.

O despertar da sexualidade é o tema trazido por Denise Maurano, inspirada na peça O Despertar da Primavera, escrita por Frank Wedekind em 1891, e à qual Lacan dedicou um breve escrito em 1974. É digno de nota que esta peça já havia sido objeto de uma longa discussão em 1907 na Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, tendo suscitado inúmeros comentários por parte de Freud. Para a autora, o despertar da primavera equivale ao despertar do sonho, ao se deslocar do desejo de dormir que se afina com o “não querer saber” do recalcamento. Em sua peça, Wedekind ilustra, sem saber, o desejo de despertar como despertar do desejo enquanto desejo do Outro, o que implica uma desconstrução e não ocorre sem riscos – na peça um adolescente comete suicídio. A conclusão é de que o processo psicanalítico apresenta-se como uma estratégia pela qual o sujeito é convocado a dar um passo para além do Outro. Um despertar que, contudo, traz turbulência e insegurança, já que é no Outro que a subjetividade se ancora.

Dando sequência a um trabalho anterior, Marco Antonio Coutinho Jorge aborda o conjunto da obra freudiana como uma proposta para desconstruir os sentidos dados, abrir portas e viajar no desconhecido, sendo assim, essencialmente, uma obra sobre o despertar. Nesse sentido, o rápido desinteresse de Freud pela hipnose talvez tenha a ver com o fato de ele ter descoberto quanto o sujeito, desde sempre e sem sabê-lo, está hipnotizado. O método analítico, ao acionar a associação livre, supõe a possibilidade de o sujeito ter acesso aos significantes a partir dos quais ele se constituiu e com os quais fixou sua fantasia fundamental. Fantasia esta que é construída de modo a proteger o sujeito do desejo do Outro, mas que tem, por outro lado, um caráter alienante, hipnotizante – já que, subsequentemente, rouba desse mesmo sujeito o que quer que ele experimente que não se adapte a esse molde fantasístico.

A professora de literatura portuguesa e psicanalista Nadiá Paulo Ferreira lança um olhar psicanalítico sobre a poesia de Fernando Pessoa. Segundo Nadiá, o recalcado retorna como estranhamento de si mesmo na obra ortônima, e como pluralidade na obra heterônima. O poeta português, ao saber da existência em seu ser de algo que permanece indomável e que insiste em atormentá-lo, encontra solução para esse turbilhão subjetivo na invenção de heterônimos. A dilaceração subjetiva, provocada pelo desabrochar desses múltiplos eus, leva à necessidade de inventar um mestre. O ato de inventar um mestre, entretanto, não é apaziguador, já que faz com que Fernando Pessoa esbarre com o real impossível da castração. Nesse sentido, Pessoa inventa um mestre não para vir em suplência ao Nome-do-Pai, interditor do acesso à Verdade, mas sim para tornar sem efeito sua função, que é introduzir a Lei, inaugurar o desejo e limitar o gozo.

Despertar, silêncio e fim de análise são o tema de Laéria Fontenele. Em sua prática como analista, Freud foi obrigado a reconhecer que a leitura literal do saber inconsciente não era suficiente para levar um trabalho analítico a seu termo. Assim, os neuróticos se mantêm fixados em suas posições sintomáticas a despeito de conhecerem suas razões. O passo adiante dado por Freud foi a constatação de que algo trabalha em silêncio na repetição – a pulsão de morte. Foi apenas com o ensino de Lacan que se tornou possível elaborar teoricamente como em uma análise é possível ir além do que Freud chamou de “rochedo da castração”, que se refere, em última instância, ao repúdio ao feminino. A “construção da fantasia” é aquilo com o que o sujeito pode contar para afastar-se do que lhe é mais íntimo, e, por isso mesmo, estranhamente familiar.

A elaboração de Lacan o levou a demonstrar que o final do tratamento analítico conduz à subjetivação da morte. Dessa forma, Lacan atribui maior responsabilidade ao analista pelo final de uma análise do que Freud o fez. O final de análise está associado ao chamado a um significante novo, e, enquanto experiência do despertar, produz um esvaziamento de gozo por evidenciar os limites da lógica fálica; por isso, reposiciona o sujeito em relação ao seu sintoma, confrontando-o com o silêncio do nonsense. Essa experiência, no entanto, exige a criação de uma nova forma de dizer, ao mesmo tempo em que o silêncio da estrutura é impossível de ser integralmente dito; falta pelo menos um significante, o que coloca um limite à transmissão da experiência do despertar, já que ela requer uma forma de expressão para além do código. Na psicose, Lacan encontra o logro integral dessa experiência na obra de James Joyce que, ao alcançar a foraclusão do sentido, é salvo de sua psicose. Na neurose, por outro lado, muito embora o final de análise compreenda o desengajamento do gozo-do-sentido, não produz a foraclusão do sentido, mas sim o seu limite. O exemplo paradigmático que Laéria Fontenele nos traz é a obra de Guimarães Rosa, cujas três margens de criação ilustram que os tempos contraditórios da fantasia necessitam de artifícios para sua travessia. Esta resulta, nas palavras de Lacan, em elevar a impotência à impossibilidade lógica, posto que pelo impossível se mede o real.

Com um estilo de escrita quase poético, Tania Rivera lança mão de um caso clínico para retomar o profícuo diálogo entre arte e psicanálise, ao abordar o despertar na transferência e na teoria. A transferência se dá como uma repetição do passado no presente, mas o psicanalista crê que da pura repetição compulsiva, circular, algo determina que um pequeno desvio de rota se produza abrindo um novo caminho. Tania vem nos lembrar que esse descentramento do sujeito que a psicanálise teoriza e promove, a produção artística o efetua, em seu próprio campo, e, mais agudamente ainda, a partir da virada do século XX, no mesmo momento em que surge a psicanálise.

Dimensões do Despertar na Psicanálise e na Cultura traz ainda vários outros textos de grande interesse, como o de Giancarlo Ricci sobre o despertar e a escuta. Neste, podemos pinçar a frase com a qual encerro essa resenha, altamente representativa do que se pode concluir na leitura do livro: “O despertar não é, pois, uma passagem de um estado a outro; trata-se antes de um rearranjo estrutural”.