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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.37 Belo Horizonte jul. 2012

 

 

Em torno da Ding-nidade ética de Alberto Giacometti, na “forma de ver” de Paulo Proença

 

 

Renata Mattos

 

O mundo me espanta cada dia que passa,
mais e mais. Ele tornou-se mais vasto,
mais maravilhoso, mais imponderável,
mais belo.

Alberto Giacometti

 

A arte não é outra coisa que uma forma de ver.
Alberto Giacometti

 

Há algo, nas profundezas do gosto, que move a estética, a ética, a vida em sua vertente de criação. Um limite sutil entre o belo e o real, o sujeito e o vazio, o desejo e a pulsão de morte. É com esses fios que Paulo Proença tece uma reflexão instigante, poética, crítica, analítica e filosófica num livro que se faz ensaio sobre a arte do escultor e pintor suíço Alberto Giacometti – artista que se espantava e se maravilhava com a diferença mínima e, portanto, absoluta de cada coisa, cada cena, cada pessoa, cada experiência vivida, por mais banal que pudesse aparentar. A mínima diferença. Radical. Singularizadora. O traço único, unário, que faz o insondável real de cada coisa ganhar sua força. Daí, Paulo percorre escritos e imagens giacomettianas, nunca invasivo, escutando – analista advertido que é – o desejo e o que o desejo indica: real pulsante, impossível que ganha forma, evidenciando enigmaticamente sua dignidade sempre em causa por não ser passível de ser de todo representada. A verdade da falha, do que escapa, do que põe em movimento o desejo do sujeito. “Tudo me ultrapassa”, diz Giacometti (1990, citado por Proença, 2010, p.26) numa frase ímpar que muito bem poderia sintetizar sua estética. Nisso, há ética. E uma ética particular, que não se restringe apenas ao “artístico”, posto que toca o mais primordial do humano, e que, em suas confluências e divergências com a psicanálise, aponta para o que há de mais pungente e vivificante na experiência clínica: o saber-fazer com o que nos escapa.

Em torno de Alberto Giacometti – Arte, ética e psicanálise, publicado em 2010 pela Companhia de Freud, é um retrato comovente do trabalho de um artista que caminhava no “fio perigoso das coisas”, como poderia assim definir o cineasta Michelangelo Antonioni, e de um psicanalista que não cede ao desejo de acompanhá-lo, igualmente equilibrista, num exercício “a olhos vistos” de recolher migalhas e transformá-las em letras, objetos, em algo a “dar a ver” e a ler. Se o labor de Giacometti partia de encontros com “pedaços do real”, tal qual a assertiva lacaniana já no final de seu ensino, na década de 1970, para fazer saltar aos olhos a dignidade absoluta da Coisa presentificada em cada um, coisa ou gente, material e imaterial, Paulo resgata nesse artista a capacidade de se surpreender com a vida e com a incapacidade irrestrita de representá-la pelo ato artístico, seja o da escultura, o da pintura, ou pelo ato de escrita de inscrever aquilo que escapa até mesmo à arte. Nos “Escritos” de Giacometti, do qual Paulo se serve com fartos e belíssimos extratos, o analista vai se deparar, com uma clareza por vezes excessiva e vertiginosa, com o modo pelo qual o artista se deixa ser tocado pelas idiossincrasias do vivido, pelas singularidades quase imperceptíveis que cada objeto revela a cada momento.

Giacometti não fecha os olhos a essas revelações cotidianas, não deixando escapar que isso que chamamos de realidade é uma construção nunca de todo finda, que cabe à realidade psíquica lhe dar contorno, congruência, e, mesmo, possibilidade de fruição. Ora beirando a angústia, ora o entusiasmo e o maravilhamento, Giacometti avança e cria. Seguindo esses movimentos demasiadamente próximos do real, Paulo Proença dança entre o desvelar e a reflexão que mais enigmas propõe, contando com interlocutores caros à própria estética giacomettiana, Heidegger, Jean Genet, Freud e seu Michelangelo, Lacan, e, ainda, outros contrapontos estilísticos que vão dando o tom da música que tal livro cria, E. E. Cummings, Ferreira Gullar, Picasso, Walter Benjamin, Baudelaire, Matisse, Duchamp, Drummond, Prévert... Todos igualmente dançando em torno da coisidade da Coisa, no espaço do olhar, que ali se cria como espacialidade do próprio sujeito do inconsciente, parlêtre.

Mais que isso, coisidade que se impõe como função desejante, organizando, por um lado, a linguagem e a relação do sujeito para com ela, e, por outro, colocando renovadamente rupturas face à aparência das coisas, fazendo eclodir o caráter real daquilo que nos cerca, do que vivemos e do que somos – caráter precário em si mesmo, que remete ao que Giacometti (1990, citado por Proença, 2010, p. 34) conseguia pôr em palavras como “o perigo de desaparição das coisas”. O que o leva a afirmar que “Não se vê jamais as coisas, vê-se sempre através de uma tela” (Idem). Tal assertiva é de uma proximidade tal com a lógica freudiana da fantasia, revisitada por Lacan a partir do conceito de objeto a, em especial do olhar como objeto a que podemos, mais uma vez, encontrar na voz do artista uma verdade sobre o sujeito que antecipa o psicanalista. O sujeito, diz Lacan, é uma resposta ao real, ele lida com peças escolhidas da realidade, vivendo-as, assim, como concluiria Proença com Giacometti, sob uma certa “forma de ver”.

Atento a essa forma de ver giacomettiana, na tensão entre o olhar e o que nos olha, entre o que Giacometti vê, aquilo que lhe impacta e o que ele cria, dando a ver o “jamais visto”, Paulo Proença, escritor flâneur, aceita o desafio implícito da psicanálise de reinventá-la a cada vez, a cada caso, a cada reflexão, perguntando-se, a partir do enigmático campo escópico, o que é a ética do sujeito. Ética “rasgada” por um vazio que faz pulsar o desejo. Desejo que, face ao desencaixe dos objetos e das coisas, posto que há uma Coisa que é para sempre perdida, exige alguma criação possível. “Ninguém mais do que o artista sabe o que é esse desacordo, o desencaixe, e mais do que isso, o não-encaixe das coisas no mundo em sua desarrumação no tempo e no espaço – na impossibilidade da relação sexual feita obra”, nos elucida Proença (2010, p. 202). E, se pensarmos clinicamente, o que seria essa criação senão a recriação da própria vida, do próprio mundo, através da ótica do sujeito que pode, assim, compartilhar o que vê e ser tocado por aquilo que o olha?

Há algo, nas profundezas do gosto, que Giacometti, com sua obra, denuncia e que Paulo Proença, com seu corajoso livro, não nos deixa – a nós, analistas ou não – perder de vista:

Na verdade, seguindo Giacometti em seus passos, a partir da aparente simplicidade de seus procedimentos, não precisamos ir tão longe para percebermos os fundamentos do que procurou apresentar, uma vez que a-fundam no que já é achado (...) no dia a dia de cada um de nós. Por exemplo – como as flores sobre a mesa na exposição de Braque observada por Giacometti –, uma cesta de frutas na cozinha é o suficiente para causar uma certa aflição em quem a observa com acuidade. A experiência do tempo é algo que podemos utilizar como sugestão àqueles que querem testemunhar uma subversão do próprio objeto empírico sobre si mesmo no devir. Pelo amarelo da banana que repousa sobre a maçã e as peras, salta aos olhos o espetáculo das manchas surgindo e construindo os desenhos e marcas “daquela” banana. Uma banana nos olha e nem sabemos disso (PROENÇA, 2010, p.204).

É dessa verdade vertiginosa – necessariamente esquecida – que se faz arte, ética, vida e psicanálise.

 

Referências

Proença, P. Em torno de Alberto Giacometti – Arte, ética e psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010.         [ Links ]