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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.38 Belo Horizonte dez. 2012

 

 

Reinvenção do sujeito e demanda judicial por reconhecimento de direitos

 

Reinventing the subject and judicial demand for recognition of rights

 

 

Adriana Rodrigues AntunesI; Maria Consuêlo PassosII

I Tesouro Estadual do Estado de Pernambuco
II Universidade Católica de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho, apresentado no XIX Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, na seção “Temas Livres”, utiliza-se dos conceitos winnicottianos de experiência cultural e criatividade, propondo aproximar a psicanálise do direito. Examina-se a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça reconhecendo o direito de uma filha a receber de seu pai indenização por abandono afetivo. Argumenta-se que a propositura da ação, por parte da filha, ocorre no espaço transicional constituído pela ordem jurídica, exemplificando a ação do sujeito na cultura e o uso de símbolos culturais. A demanda por tutela judicial de um direito pressupõe a ressignificação, pelo sujeito, da dor psíquica e do dano. Assim, os afetos e emoções deixam de ser vividos, exclusivamente, no âmbito privado e são redescritos de modo a integrarem uma demanda por reconhecimento público de um direito.

Palavras-chave: Transicionalidade, Demanda judicial, Reinvenção do sujeito.


ABSTRACT

This work was presented at the XIX Congress of the Círculo Brasileiro de Psicanálise and uses Winnicott’s concepts of cultural experience and creativity, proposing to bring psychoanalytical concepts closer to legal ones. It examines the decision of the Brazilian Supreme Court of Justice recognizing a daughter’s right to receive repair for her father's emotional distance. It is argued that filling the lawsuit, by the daughter, is in a transitional space established by law, exemplifying the subject’s action in culture and use of cultural symbols. The demand for legal protection of a right presupposes a redefinition by the subject of psychic pain and injury. Thus, the affections and emotions no longer lived exclusively in the private sphere and are redefined in order to integrate demand for a public recognition of a legal right.

Keywords: Transitionality, Lawsuit, Reinvention of the subject.


 

 

No último dia 2 de maio, os meios de comunicação de todo o país estamparam a notícia de que o Superior Tribunal de Justiça havia reconhecido o abandono afetivo de uma filha por parte de seu pai, fixando, em consequência, o valor de R$ 200.000,00 a ser pago por ele como indenização pelo dano moral.

A ação foi ajuizada, no ano de 2000, por uma professora paulista de 38 anos, Luciane Nunes de Oliveira Souza, contra seu pai, empresário dono de uma rede de postos e de uma distribuidora de combustível. Ela alegou abandono material e afetivo durante a infância e adolescência. Luciane Souza nasceu de um relacionamento extraconjugal do pai, teve a paternidade reconhecida judicialmente, e entre 1974 e 1995, quando completou 18 anos, o pai pagou pensão alimentícia de dois salários mínimos. O STJ entendeu que houve uma ausência de contato do pai com a filha, em descompasso com o tratamento dispensado aos outros filhos. O argumento central da decisão relatada pela Ministra Nancy Andrighi foi o de que “amar é faculdade, cuidar é dever” (STJ, DJe 10/05/2012, REsp 1159242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi).

A decisão, comemorada por muitos, pareceu esquisita a tantos outros. De qualquer modo, esta foi a primeira vez que um Tribunal Superior acolheu a tese da responsabilidade civil por abandono afetivo, embora a hipótese de um filho receber uma indenização por ter sofrido abandono afetivo já venha sendo discutida há algum tempo no âmbito do direito.

Não tardaram a surgir opiniões na imprensa. Entre elas, a da jornalista Eliane Brum (2012) que, na revista Época, questionou se “é possível obrigar um pai a ser pai?” Além disso, a jornalista prossegue em seu argumento afirmando que “a ‘filha abandonada’ encarna a época dos adultos infantilizados – e dos cidadãos-filhos diante do Estado-pai”.

A contraposição de opiniões ressalta alguns termos: amar, cuidar, abandono, faculdade, dever, obrigação, Estado. E isso parece produzir um quadro cujas imagens e traços não são imediatamente reconhecíveis. Afinal, o que é ser pai? A resposta a essa pergunta deve ser buscada no campo do direito ou da psicanálise? E o que o direito ou o Estado teriam a tratar sobre amor, cuidado ou abandono?

Para refletir sobre essas questões, proponho a seguinte hipótese, buscando aproximar a psicanálise do direito a partir do uso de conceitos winnicottianos: a demanda por tutela judicial de um direito pressupõe a ressignificação, pelo sujeito, da dor psíquica e do dano. Assim, os afetos e emoções deixam de ser vividos, exclusivamente, no âmbito privado e são redescritos de modo a integrarem uma demanda por reconhecimento público de um direito.

Nessa hipótese, a interdisciplinaridade constrói-se em torno da crença na dignidade da pessoa humana. Do lado da psicanálise, Winnicott (1975) afirmou que “é através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida” (WINNICOTT, 1975, p.95), enunciando uma crença fundamental a respeito da pessoa humana, crença na vitalidade criativa do ser humano. De forma semelhante, o direito contemporâneo exprime uma crença sobre o ser humano por meio da formulação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Dito isso, organizarei a apresentação abordando, primeiro, que uso se pode fazer do conceito winnicottiano de transicionalidade para pensar o sujeito que ingressa com uma demanda judicial e que implicações isso traz para se pensar sobre a subjetividade; segundo, o que o direito tem a dizer sobre a pessoa humana, os danos à pessoa humana e, em especial, a responsabilidade civil por abandono afetivo.

 

1. Transicionalidade e experimentação: entre o interno e o externo, entre a emoção e a ação

O conceito winnicottiano de transicionalidade oferece um recorte para se compreender a ação do sujeito na cultura. Embora isso possa ser estendido a muitas formas de atividade cultural, meu intento, aqui, é argumentar que, nas sociedades democráticas de direito, a ordem jurídica pode ser pensada como constituindo um espaço transicional no qual os sujeitos usam símbolos culturais, as normas jurídicas, e constroem sua experiência. Desse modo, na ação em que o sujeito reclama uma indenização do pai pelo abandono afetivo, pode-se observar que o uso das normas jurídicas relativas ao dever de cuidado e à responsabilidade promove uma ligação entre o interno – a dor psíquica – e o externo – a ordem jurídica, dimensão da ordem cultural.

Para fundamentar essa ideia, vamos acompanhar como Winnicott formula o conceito de transicionalidade. Primeiramente, Winnicott (1975) indaga sobre o lugar “em que permanecemos a maior parte do tempo enquanto experimentamos a vida” (WINNICOTT, 1975, p.145) e propõe a existência de uma terceira maneira de viver, além da realidade psíquica pessoal interna e da realidade externa ou compartilhada. Ao pensar numa terceira maneira de viver, ou terceira área, Winnicott (1975) afirma que “a integração entre a originalidade e a aceitação da tradição como base da inventividade” constitui “mais um exemplo, e um exemplo emocionante, da ação recíproca entre separação e união” (WINNICOTT, 1975, p.138). Nesse sentido, ele igualmente afirma existir um “paradoxo que precisa ser aceito, tolerado e não solucionado” (WINNICOTT, 1975, p.79).

Tal paradoxo expressa-se na ideia de que o bebê adota um objeto do mundo externo – objeto transicional – como sendo sua primeira posse. Todavia, o objeto já estava ali, à espera de ser criado e tornar-se um objeto catexizado. Assim, nunca poderíamos desafiar o bebê a responder à pergunta: “você o criou ou o encontrou?” (WINNICOTT, 1975, p.125).

O bebê, então, por meio do objeto transicional, é incitado a mover-se da relação de objeto para o uso do objeto. E, assim, o objeto transicional “é o que percebemos dessa jornada de progresso no sentido da experimentação” (WINNICOTT, 1975, p.19).

A transicionalidade, portanto, para Winnicott, define um modo de pensar o sujeito e a cultura, o sujeito na cultura. Esse modo traz a marca da experimentação. Para dizer de forma bastante breve, o uso, pela criança, de um objeto transicional configura o primeiro uso de um símbolo e a primeira experiência da brincadeira (WINNICOTT, 1975). Aqui, a criatividade vai constituir-se como um fazer, como a capacidade de criar o mundo (ABRAM, 2000, p.89). E assim “o brincar conduz naturalmente à experiência cultural e, na verdade, constitui seu fundamento” (WINNICOTT, 1975, p.147).

A partir de Winnicott, conforme sugere a psicanalista Beatriz Mizrahi (2010), é possível lançar um olhar sobre a subjetividade que não esteja fundado na suposição de que a entrada do indivíduo na cultura passaria necessariamente por seu confronto com a falta e as coerções sociais. O conceito de transicionalidade, ao remeter à experimentação, apresenta-se, na análise proposta por essa autora, “como contraponto na medida em que questiona tanto a inevitabilidade dos processos de regulação da vida para o estabelecimento da sociabilidade humana quanto o desamparo como aspecto central do processo de subjetivação” (MIZRAHI, 2010, p.13). Assim, pode-se “pensar a cultura como um encontro de experiências transicionais” (MIZRAHI, 2010, p.101).

Desse modo, Beatriz Mizrahi (2010) afirma que a concepção de cultura de Winnicott está “potencialmente situada naquela área transicional que não confronta o indivíduo com regulações, mas lhe oferece, prioritariamente, espaços consistentes de acolhimento” (Mizrahi (2010, p.31).

A noção de espaço transicional mostra, então, uma potencialidade crítica:

Compreendendo o significado da transicionalidade, buscamos, ao contrário, aquelas condições reais capazes de permitir a cada um uma existência diferenciada, mas, ao mesmo tempo, também claramente amparada. Dessa forma, chegamos a vislumbrar um tipo de encontro humano capaz de desviar-se de certas estratégias de poder que hoje, mais do que nunca, responsabilizam o sujeito isolado por seu próprio destino (MIZRAHI, 2010, p.103).

Assim descrito, o modelo winnicottiano possibilita formular a hipótese de que um sujeito, ao demandar o reconhecimento de um direito, usa a ordem jurídica como espaço de acolhimento. Mais do que isso, e no tocante ao caso aqui considerado, a filha, ao fundamentar sua demanda no abandono afetivo sofrido, está recusando uma posição de desamparo e experimentando, por meio da ação judicial, uma forma diferente de enunciar sua emoção e sofrimento.

Essa articulação entre transicionalidade e ordem jurídica ainda permite um desdobramento teórico, identificando pontos que vão distanciar o modelo de Winnicott do modelo freudiano no que diz respeito à compreensão da subjetividade.

Tal como considera Jurandir Freire Costa (2000), na teoria freudiana pode-se distinguir o peso dado à ideia de pai e à ideia de recalque, peso esse decorrente das noções de sexualidade e morte e da imagem do psiquismo criada por Freud. Essa imagem é a de “uma esburacada grade linguístico-simbólica montada sobre um caldeirão de pulsões de vida e morte, sempre prestes a explodir” (COSTA, 2000, p.10). Nesse sentido, a instância paterna e o recalque seriam o esteio da grade, e o pai, a palavra do pai ou o poder do pai seriam condição sine qua non da paz neurótica. Em outros termos, isso equivaleria a afirmar, tortuosamente, que “tudo que está de acordo com o modelo ideal do bom funcionamento psíquico criado pela psicanálise é efeito da função paterna” (COSTA, 2000, p.14).

Então, Jurandir Costa (2000) questiona “quem é o pai do qual tanto falamos em psicanálise?”. E, em complemento, afirma que a função abstrata “só era plausível, do ponto de vista teórico, por estar ancorada no poder concreto, imediato, psicologicamente eficaz do pai de família” (COSTA, 2000, p.11). Em consequência, tem-se que, na leitura de origem freudiana, ressalta-se a interdição, sendo a função do poder reprimir os excessos pulsionais.

Na leitura de origem winnicottiana, o foco desloca-se para a expansão da criatividade. Aí, “o poder se revela na capacidade do ambiente de tolerar, sem revide, o ímpeto das pulsões” (COSTA, 2000, p.18). Disso decorre que “a relação da pulsão com a instância que limita seu fluxo é de instigação recíproca. Uma incita a outra a se tornar mais forte e expansiva, dando andamento ao movimento criativo” (COSTA, 2000, p.21).

Nesse contexto, redimensiona-se a função da cultura e a do pai (COSTA, 2000, p.23). A primeira deixa de ser concebida como exterior ao “substrato” sujeito e tampouco é o outro da pulsão, sendo, antes, integrante da subjetividade (COSTA, 2000, p.24). E a função paterna deixa de ostentar o caráter de Outro “imaginado como estando sempre lá, enquanto os ‘outros’ ontologicamente supérfluos procuram se submeter à lei, na esperança de decifrar seus mistérios e vencer o tempo que tudo apaga” (COSTA, 2000, p.25). Assim, a verdadeira ameaça estaria no desinvestimento da cultura, em seu abandono como espaço privilegiado da expressão subjetiva.

Por fim,

a lei, nessa cultura, não é a emanação de ‘um outro’ além do tempo e dos espaços culturais; é o conjunto de regras contingentes e experimentais, feitas e refeitas pelos interessados em alcançarem metas com que sonharam ou poderão vir a sonhar. A cultura é o espaço transicional dos irmãos que se reconhecem como artífices do próprio destino (COSTA, 2000, p.26).

Voltando, mais uma vez, para o tema aqui analisado, podemos afirmar que o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir o caso concreto, enunciou uma norma para o mesmo, revelando que a lei é contingente e experimental.

 

2. Direito

Ao tratar da ordem jurídica, é necessário afastarmos uma associação recorrentemente feita entre direito e formalismo. Nesse sentido, a aplicação da lei aparenta ser, para os mais desavisados, exercício automático e formal de encontrar a norma que melhor se adeque ao fato.

É verdade que a codificação do direito, no final do século XIX, ocorreu sob os influxos do positivismo. Assim, constituiu-se um modelo de subsunção do fato à norma, por meio do qual não se reconhecia um papel criativo aos juízes e tribunais (BARROSO, 2010). Esse modelo, portanto, pressupunha uma correspondência unívoca entre a norma jurídica e o fato. Se ele se mostrou útil para a sociedade ocidental até as primeiras décadas do século XX, ele não mais responde às demandas da sociedade contemporânea.

Todavia, a maior complexidade da vida moderna trouxe uma pluralidade de projetos existenciais e de visões de mundo que vêm desafiando as sistematizações abrangentes e as soluções unívocas para os problemas (BARROSO, 2010). De um tempo para cá, a vida tornou-se mais complexa, plural, interessante e, por vezes, esquisita.

Hoje, para compreendermos o direito, temos de aceitar que os casos postos à apreciação do juiz são, muitas vezes, “casos difíceis”, para os quais não existe solução pré-pronta no ordenamento jurídico (BARROSO, 2010). E os casos são difíceis porque há desacordos sociais ou morais a respeito de determinadas matérias; porque pode haver colisão de valores e direitos; ou pela própria ambiguidade da linguagem. Para tais casos, é necessário construir argumentativamente uma solução.

Desse modo, é imperativo distinguir a norma da aplicação da norma. Norma é linguagem e linguagem não tem referente fixo. Entre a norma e sua aplicação, portanto, há a interpretação. Sobretudo, a linguagem e a norma, e os usos que fazemos delas, promovem inclusões e exclusões.

Conforme afirmou o constitucionalista Luís Roberto Barroso, em conferência proferida no XII Congresso de Direito do Estado, Salvador, Bahia, em 26/5/12, “as palavras nunca são banais. E os riscos são imensos quando se vive da palavra e da interpretação”.

Para fazer face a esse quadro, o direito contemporâneo passou a conferir centralidade à Constituição e, do ponto de vista filosófico, pauta-se pelo pós-positivismo. Isso implica colocar a Constituição como centro do ordenamento e afirmar que toda interpretação da norma jurídica deve estar referenciada e fundamentada na Constituição. No direito, isso representa uma revolução copernicana, pelo fato de a Constituição trazer, entre suas disposições, valores e princípios que, uma vez observados, aproximam direito e ética (BARROSO, 2010).

No Brasil, o princípio fundamental da ordem jurídica inaugurada com a Constituição de 1988, norteador de toda interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais, é o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal).

Esse princípio pode ser compreendido a partir de três eixos, que configuram seu conteúdo jurídico. Tais eixos são o valor intrínseco da pessoa humana, a autonomia da vontade e o valor comunitário. Eles podem ser compreendidos, em termos bastante gerais, como sendo o postulado antiutilitarista segundo o qual toda pessoa deve ser tratada como um fim em si mesma; o direito de as pessoas formularem suas valorações morais e seus projetos existenciais; e a possibilidade de o Estado e a sociedade poderem limitar legitimamente a autonomia individual das pessoas, seja para proteger direito de terceiros, proteger as pessoas delas mesmas ou proteger determinados valores sociais (BARROSO, 2010).

O princípio da dignidade da pessoa humana vem, pois, traçar novos contornos para o direito e, em especial, para o direito de família. Nesse sentido, ele possibilita, por exemplo, que as relações afetivas constituídas fora do modelo do casamento entre homem e mulher sejam reconhecidas como famílias. E, mais que isso, norteia as relações dentro de qualquer tipo de família, com o objetivo de promover outros princípios como os da solidariedade, igualdade, liberdade, afetividade, convivência familiar e melhor interesse da criança (LÔBO, 2010).

Tomados em conjunto, esses princípios desmantelam os pressupostos da família patriarcal e apontam para o dever de cuidado existente entre os membros da família.

Assim, o cuidado passou a configurar uma categoria jurídica, retirando a relação de filiação do campo particular e intangível dos sentimentos, da arbitrariedade e precariedade e remetendo-a ao campo da obrigação e responsabilidade.

A ordem jurídica não confere ao genitor, portanto, a liberdade de optar entre constituir, ou não, uma relação de cuidado com o filho. É irrelevante, do ponto de vista de produção de efeitos jurídicos, que o genitor nutra sentimentos de afeição pelo filho, pois, reconhecido o vínculo biológico ou socioafetivo, nasce o dever de cuidado (LÔBO, 2008).

Trazendo a discussão, agora, para o reconhecimento do abandono afetivo pelo STJ, podemos identificar como essas concepções estão aí presentes.

O voto da ministra relatora (STJ, DJe 10/05/2012, REsp 1159242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi) traz os seguintes fundamentos (devendo-se esclarecer que as citações a seguir são retiradas do texto desse voto): Primeiro, a responsabilidade como obrigação do agente de ressarcir o dano quando sua ação atingir componentes pessoais, morais ou patrimoniais da esfera jurídica de outrem. Segundo, o fato de que, embora as relações familiares sejam entremeadas de fatores de alto grau de subjetividade, elementos intangíveis como afetividade, amor e mágoa, “é possível se visualizar, na relação entre pais e filhos, liame objetivo e subjacente, calcado no vínculo biológico ou mesmo autoimposto – casos de adoção –, para os quais há preconização constitucional e legal de obrigações mínimas” (ANDRIGHI, STJ, 2012).

Seguindo a argumentação exposta no voto, verifica-se que a ministra considerou que, sendo o elo entre pais e filhos fruto de ato volitivo, “emerge, para aqueles que concorreram com o nascimento ou adoção, a responsabilidade decorrente de suas ações e escolhas, vale dizer, a criação da prole” (ANDRIGHI, STJ, 2012). Afirma-se, desse modo, o vínculo legal, e não apenas afetivo, que une pais e filhos.

Assim, sendo o dever de cuidado uma obrigação inescapável dos pais em relação aos filhos, restaria indagar “sobre a viabilidade técnica de se responsabilizar, civilmente, aqueles que descumprem essa incumbência” (IDEM).

Para que ocorra a responsabilização, portanto, é necessário descrever o alcance do dever de cuidado, o que está nele compreendido. Considera, então, a ministra que “o ser humano precisa, além do básico para a sua manutenção – alimento, abrigo e saúde –, também de outros elementos, normalmente imateriais, igualmente necessários para uma adequada formação – educação, lazer, regras de conduta, etc” (IDEM).

Em seguida, a ministra, fazendo uso da interdisciplinaridade, cita Winnicott, trecho do livro A Criança e o seu Mundo, no qual esse autor destaca a boa assistência dos pais como ingrediente essencial para a capacidade de relacionar-se da criança. Isso lhe permite afirmar que “não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar” (IDEM). Em suma, ela conclui que “amar é faculdade, cuidar é dever” (IDEM).

Nesse caso, o descumprimento do dever restou demonstrado “desde o forçado reconhecimento da paternidade – apesar da evidente presunção de sua paternidade –, passando pela ausência quase que completa de contato com a filha e coroado com o evidente descompasso de tratamento outorgado aos filhos posteriores” (ANDRIGHI, STJ, 2012).

Assim, a ministra conclui pela existência do dano moral, arbitrando a indenização de R$ 200.000,00 a ser paga pelo pai.

 

3. Conclusões

O reconhecimento, pelo STJ, do abandono afetivo demonstra a emergência, no direito, de uma preocupação com a pessoa. Mais ainda, permite entrever o esforço interpretativo da norma jurídica no sentido de privilegiar o princípio da dignidade da pessoa humana. Isso vem reafirmar a lei, em nossa sociedade, como “o conjunto de regras contingentes e experimentais, feitas e refeitas pelos interessados em alcançarem metas com que sonharam ou poderão vir a sonhar” (COSTA, 2000, p. 26).

Além disso, a propositura da ação, por parte da filha, ocorre no espaço transicional constituído pela ordem jurídica, exemplificando a ação do sujeito na cultura e o uso de símbolos culturais. Há um sujeito que reclama a responsabilidade paterna porque existe uma ordem jurídica que incorpora o princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o sujeito ressignifica a dor psíquica e o dano. Os afetos e emoções deixam de ser vividos, exclusivamente, no âmbito privado e são redescritos de modo a integrarem uma demanda por reconhecimento público de um direito.

Outro aspecto é que o reconhecimento do abandono afetivo e a consequente indenização arbitrada ao pai sugerem um redimensionamento da função paterna como instrumento teórico. Isso porque, em vez de constituir o guardião da lei, o pai agora é demandado em seus deveres e responsabilidade. Nesse sentido, não existe mais o pai, compreendido numa universalidade equivocada, mas muitos pais, humanos e errantes.

Além disso, a função paterna, como instrumento teórico, ainda cabe ser questionada pelo seguinte fato: se o que não está de acordo com a lei do pai deve ser rechaçado, como pensar a possibilidade de os sujeitos proporem e produzirem inovações na ordem social e cultural? Se a subjetividade for tomada em referência à normatividade, o que fazer da vitalidade criativa dos sujeitos?

Por fim, é como se a psicanálise estivesse entre Grécia e Roma; entre a tragédia e a ação (no sentido jurídico); entre a inexorabilidade do destino e a ação como o direito de pedir em juízo o que nos é devido.

Os caminhos winnicottianos da transicionalidade, separação e união, originalidade e aceitação da tradição, partem, inicialmente, de um paradoxo. Mas esse paradoxo nos permite encontrar um lugar mais digno para viver e compreender que a cultura, antes de impor coerções ao sujeito, oferece possibilidades de narrativas. Algumas melhores, por promoverem mais inclusões que exclusões e acolherem uma diversidade maior de projetos existenciais. De qualquer modo, é a palavra que nos transporta. A palavra, esse “saveiro pronto pra partir” (lembrando Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, em “Cais”).

 

Referências

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Endereço para correspondência
Adriana Rodrigues Antunes
Rua Piauí, 67/401 – Casa Forte
52061-040 – Recife/PE
E-mail: adra08@hotmail.com

Maria Consuêlo Passos
Rua Zeferino Galvão, 100/903 – Boa Viagem
51111-110 – Recife/PE
E-mail: mcpassos@uol.com.br

RECEBIDO EM: 21/08/2012
APROVADO EM: 22/10/2012

 

 

Sobre as Autoras

Adriana Rodrigues Antunes
Graduada em Ciências Sociais e em Direito pela UFP, Mestre em Sociologia pela UFP, Doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco, Auditora Fiscal do Tesouro Estadual do Estado de Pernambuco.

Maria Consuêlo Passos
Psicóloga, Psicanalista de casal e família, Mestre em Psicologia pela PUC-RIO, Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP, Docente-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco.