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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.38 Belo Horizonte dez. 2012

 

 

Feminilidade – caminho de subjetivação

 

Femininity – path of subjectivity

 

 

Angela Maria Menezes de Almeida

Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo tem como propósito instigar um processo de reflexão sobre a temática da feminilidade, tendo como foco a vertente da experiência constitutiva do sujeito em seu processo de subjetivação. A partir de um enfoque psicanalítico, busca-se refazer o percurso do arcabouço teórico freudiano, no que tange a esta questão, levantando tensões, impasses e ambiguidades, em seu pensamento. O texto pontua algumas perspectivas contemporâneas do tema enunciado. Procura também explicitar como tem sido posta a discussão teórica sobre esta questão crucial para a psicanálise. Uma pesquisa bibliográfica foi selecionada e utilizada por conter referências substantivas e qualitativas sobre a temática escolhida.

Palavras-chave: Constituição do sujeito, Desamparo, Lógica fálica, Feminilidade, Subjetivação.


ABSTRACT

The present paper has as its objective to explore an approach of thinking over the subject of femininity. It has as its core the subjects’ building experience on its subjectivation process. Starting from a psychoanalytical approach it tries to remake the path of the Freudian theoretical system over this issue. The present paper advances conflicts, deadlocks and ambiguities of the Freudian thought. Also punctuates some contemporary perspectives about the matter. It tries to enlighten how this essential question to psychoanalysis has been discussed. A bibliographical survey was chosen and used for its leading quantitative and qualitative references about the theme.

Keywords: Constitution of the subject, Helplessness, Phallic logic, Femininity, Subjectivation.


 

 

“... querer e capturar o acontecimento,
tornar-se o filho de seus próprios
acontecimentos e por aí renascer,
refazer para si mesmo um nascimento”.

G. Deleuze

 

Introdução

Este texto trata o tema da feminilidade sob a ótica psicanalítica, considerando o enunciado deste conceito como originário e fundamento da constituição do sujeito.

Faz-se pertinente, por suscitar um processo de reflexão e instigar a curiosidade científica, uma vez que sua abordagem, na obra freudiana, ficou em aberto constituindo-se, até os dias atuais, uma questão polêmica no campo da psicanálise.

Como metodologia, optou-se por uma pesquisa documental tendo como referência substantiva os caminhos trilhados por Sigmund Freud, no delineamento de sua obra psicanalítica, bem como a produção de teóricos da atualidade, entre eles, Joel Birman, Regina Néri e Silvia Alexim Nunes. O conjunto do material bibliográfico selecionado possibilitou o entendimento e a explicitação do conteúdo teórico produzido.

Na estrutura deste trabalho, o tema vai se desenvolvendo a partir da contextualização histórica sobre o caráter feminino e o ideal de feminilidade no final do século XIX e início do século XX; segue-se, com a produção freudiana sobre o feminino e a feminilidade, pautada na seleção de seis artigos de sua obra, onde impasses, tensões e ambiguidades de seus escritos vão se delineando; e, por último, aponta-se para algumas perspectivas contemporâneas do tema em questão. A título de conclusão, aceita-se o convite de Freud a buscar na poesia uma maneira de tentar decifrar o ser da feminilidade.

 

O universo feminino – um desafio para a psicanálise

Ao se perguntar como se constituíram e se fixaram os discursos sobre o caráter feminino e o ideal de feminilidade, na era moderna, tem-se clareza de que sua produção se deu a partir da posição masculina, dentro de um dado contexto histórico.

Em torno do século XVIII, identifica-se um conjunto de ideias – médicas, filosóficas e morais – que pretendiam delinear uma diferença de essência entre o masculino e o feminino. Acreditava-se que as distribuições sociais entre os diferentes sexos obedeciam às disposições naturais de cada um, que possuíam naturezas diferentes. Quase todos os grandes teóricos da época, entre eles, Rousseau, Hegel e Kant, estavam de acordo com essa leitura sobre a natureza diferencial entre masculino e feminino e com as consequências disso sobre a legitimidade de suas inserções sociais.

O final do século XIX e início do século XX, momento em que nasce a psicanálise, instiga a um olhar mais atento sobre a condição da mulher na sociedade ocidental. Uma questão se faz pertinente para essa compreensão: o que estava acontecendo com as mulheres no momento da passagem da tradição para a modernidade, quando foi criada a psicanálise?

A cultura europeia, destes idos, produzia um discurso que visava promover uma perfeita adequação entre as mulheres e o conjunto de atributos, funções, predicados e restrições denominado feminilidade. Assim, era definida a natureza das mulheres. As virtudes próprias da feminilidade pautavam-se no recato, na docilidade, na afetividade mais desenvolvida, na receptividade passiva em relação aos desejos e necessidades dos homens e, mais tarde, dos filhos. A figura da mulher estava construída em torno do atributo da maternidade, isto é, o erotismo propriamente feminino deveria passar pelo labirinto enigmático da maternidade. Por outro lado, num evidente paradoxo, uma ideia bastante corrente, naquele momento, apontava que a natureza feminina precisaria ser domada pela sociedade e pela educação para que as mulheres pudessem cumprir o destino ao qual estariam, naturalmente, designadas – serem esposas e mães. Dessa forma, aos pais, maridos e educadores, parecia mais conveniente que a mulher se mantivesse inocente sexualmente e maleável socialmente.

Os discursos veiculados, nesse período, entendidos de acordo com o sentido atribuído por Michel Foucault (1988) – produção de saberes que compõem o pensamento, ou seja, que compõem a episteme de uma época – construíram, pois, uma dupla imagem da mulher, conforme pontua Nunes apud Birman:

De um lado, fortaleceram a ideia do ser frágil, dependente, assexuado e passivo, do outro, desenharam-na como portadora de um excesso sexual ameaçador que punha em risco o modelo familiar burguês. No centro desse debate, surgiu a preocupação com a sexualidade feminina, pensada como ameaça à espécie e à ordem social, um tipo de força bruta, autônoma e próxima da animalidade, que podia explodir a qualquer hora, desvirtuando a passividade do caráter feminino. Era preciso, portanto, disciplinar a sexualidade feminina, a fim de minimizar os riscos de desregramento e maximizar sua potencialidade geradora, reprodutiva (NUNES APUD BIRMAN, 2002, p.39).

O erotismo feminino era, pois, concebido como essencialmente perigoso, pela ameaça de desordem que representava. Importante frisar que, durante o século XIX, foi tecida de forma meticulosa, pela tradição cristã, a oposição entre maternidade e desejo no ser da mulher. Seu erotismo foi esvaziado de virtudes e estigmatizado como pura negatividade. De acordo com a ética cristã, a relação sexual só seria permitida e reconhecida com fins reprodutivos, devendo ser silenciada qualquer dimensão do gozo no corpo feminino.

Ao aceitar, com passividade, ocupar a posição de mantenedoras da ordem e da harmonia do lar, as mulheres se inscreveram sob duas formas de alienação: primeiramente, afastando-se do espaço social, mantiveram-se distantes das disputas de poder que definiriam seus próprios destinos. Quanto a isto, Maria Rita Kehl afirma que “sem acesso ao poder político, as mulheres não teriam meios de garantir os outros direitos fundamentais para se tornar sujeitos de suas próprias histórias” (KEHL, 2008, p.66). Num segundo plano, subjetivo, houve a renúncia de se apropriarem de uma das formas universais do falo: a fala. Ao emudecerem, deixaram de participar do que Freud veio a chamar de “as grandes tarefas da cultura”, permanecendo, assim, socialmente invisíveis.

Neste conjunto de circunstâncias sociais, que teve como base o modo de vida e o ideário burguês, a mulher foi subjugada a uma posição de “feminilidade”, forjada pelo discurso masculino. Esta mesma “feminilidade”, entrando em crise, ainda no século XIX, produziu a histeria como modo dominante de expressão de um sofrimento psíquico. Diante da coerção a seu corpo, sua sexualidade e sua vida, de modo geral, as mulheres encontraram, nos sintomas histéricos, uma forma de dramatizar sua insatisfação e seu protesto.

Foi com essas mulheres, marcadas por uma sintomatologia de conversão, que Freud se deparou em seu consultório, e que o levou a lançar a pedra fundamental do método e do pensamento psicanalítico, em seus Estudos sobre a Histeria (1996, v.2). O confronto com o desejo dessas mulheres indicava uma sexualidade que punha em questão o pressuposto de uma essência feminina passiva.

Considerando a vertente científica, Freud foi um dos primeiros a perceber, ou melhor, a escutar a crise ainda inominada que suas pacientes vinham atravessando. A recusa das histéricas em aceitar esta “feminilidade” como modelo de subjetivação e de sexuação o levou a passar grande parte de sua existência imerso em pesquisas que lhe possibilitassem desvendar o mistério da constituição da feminilidade.

 

O olhar freudiano sobre o feminino e a feminilidade

Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e mais coerentes (FREUD, 1996, v. 22, p. 134).

Por buscar, sempre com grande interesse, entender o que ou como se constitui o feminino, Freud passou grande parte de sua existência imerso em pesquisas que lhe possibilitassem desvendar este mistério.

Pelos dizeres da epígrafe já se tem uma ideia do quanto esta questão ficou obscura em sua obra. No entanto, embora suas explorações, nesse campo, apresentem um caráter inacabado, suas descobertas mostram-se de fundamental importância para novos postulados e construções, nessa área, defendidos por diversos autores, até os tempos atuais.

Com o propósito de organizar um arcabouço teórico, freudiano, quanto à temática do feminino, buscou-se, sob um olhar evolutivo histórico, refazer o percurso de estudos de Freud, no que concerne a esta questão.

Foram selecionados seis artigos, de sua obra, que traçam um período de três décadas de pesquisa, onde surge o tema do feminino. São eles: “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), “A dissolução do complexo de Édipo” (1924), “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925), “Sexualidade feminina” (1931), “Feminilidade” ( 1932) e “Análise terminável e interminável”(1937).

Freud constrói suas hipóteses sobre a sexualidade feminina ao longo de toda a sua obra, podendo-se destacar, deste percurso, dois momentos fundamentais: o primeiro, que vai de 1905 a 1920, aborda suas concepções iniciais sobre o desenvolvimento da sexualidade infantil, onde a sexualidade feminina é pensada a partir do modelo masculino – o monismo sexual; o segundo, a partir de 1924/1925, em que ele tenta atribuir à sexualidade das mulheres uma especificidade própria – o devir feminino.

 

O monismo sexual

Em 1905, com o texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, (FREUD, 1996, v.7) formula o conceito de pulsão como radicalmente diferente de instinto. Em seu discurso revolucionário enuncia um conjunto de proposições chocantes para a época: a existência da sexualidade infantil, caracterizada como autoerótica e perversa polimorfa, uma vez que a criança utiliza qualquer parte de seu corpo como objeto sexual; a finalidade da sexualidade não ser a procriação, mas o prazer; e a pulsão sexual inaugurando-se como pulsões parciais, podendo investir os mais diferentes objetos que lhe causem prazer sendo, pois, múltipla, variável, dissociada da genitalidade e da reprodução da espécie. Assim sendo, Freud diferencia-se das posições psiquiátricas da época por não considerar as aberrações sexuais como fruto da degenerescência ou da hereditariedade. Em sua concepção, as perversões não seriam consideradas como fenômenos anormais, mas constituintes da sexualidade humana.

O conceito de pulsão introduzido por Freud, a partir desse estudo, ao colocar a questão do prazer como o centro da problemática da sexualidade, desloca-a do domínio da biologia para o das representações psíquicas. Este conceito de pulsão sexual, parcial e polimorfa, já é um operador que permite formular a sexualidade humana fora do determinismo anatômico e a diferença sexual fora do registro da complementaridade. Se a pulsão sexual é parcial e polimorfa e não tem objeto determinado, ela já assinala uma sexualidade dissociada da genitalidade e que remete à impossibilidade de qualquer simetria ou completude.

Embora sua teoria sobre a sexualidade apresentasse aspectos bastante inovadores para o momento histórico, no que diz respeito à sexualidade feminina, ainda reforçava o pensamento dominante no início do século XX. Nesse momento, Freud ainda vinculava a construção de gêneros à diferença anatômica entre os sexos.

Nos “Três ensaios” Freud vai, ainda, enunciar duas formulações fundamentais para a compreensão da sexualidade humana: o postulado de uma bissexualidade, essencial para a compreensão das manifestações sexuais que podem ser observadas nos homens e nas mulheres; e a tese de uma libido única de essência masculina, em que afirma só haver um sexo, o masculino. Pode-se inferir que o conceito de bissexualidade enunciado por Freud em termos de uma disposição psíquica sexual, masculina e feminina, presente no ser humano, possibilita igualmente pensar a sexualidade como um processo de construção.

Nesse texto, Freud propõe as bases essenciais de sua concepção de feminilidade, ou seja, a existência, até a puberdade, de um monismo sexual nos dois sexos. Essa hipótese de um só e mesmo aparelho genital é a primeira das teorias sexuais freudianas e tem em sua concepção a importância da particularidade e do determinismo, para a feminilidade, de que o único órgão sexual reconhecido pela criança nos dois sexos é o órgão masculino, ou seja, o pênis no menino e seu correspondente, na menina, o clitóris. É interessante esclarecer que, apesar de nesse momento Freud pensar a sexualidade da mulher a partir do modelo do homem, ele não está pressupondo que não exista uma diferença de essências entre os dois sexos.

No entanto, no que concerne à sexualidade feminina, pode-se constatar alguns paradoxos nas formulações freudianas, no texto dos “Três ensaios”. Freud postula a sexualidade feminina em simetria com a masculina, ressaltando três aspectos: pela anatomia – zona erógena feminina, clitóris e masculina, pênis; pela pulsão – de essência ativa e masculina, presente em meninos e meninas através da masturbação; e por uma teoria infantil que sustenta que todos os seres humanos têm pênis, tendo a menina um pênis pequenino, o clitóris.

Num outro aspecto, Freud supõe uma essência passiva no feminino, afirmando que as pulsões parciais estariam presentes, desde sempre, de forma passiva na menina. Com esta concepção, ele concebe as pulsões e os comportamentos ativos das meninas como sinais de sua masculinidade. Considera o clitóris como a marca dessa masculinidade no corpo da mulher e atribui à libido, que seria uma energia sexual ativa, um caráter masculino.

Nesse caso, constata-se uma contradição em suas formulações concernentes às mulheres: ao mesmo tempo que consideradas masculinas por excelência, seriam também femininas por essência. É como se ele pensasse o sexo feminino como possuído por uma masculinidade que, de certa forma, lhe seria estranha.

Revela-se também um descompasso entre a formulação freudiana da pulsão que, ao apresentar uma plasticidade na sexualidade humana, romperia radicalmente com o determinismo biológico, e suas concepções sobre a diferença sexual entre o masculino e o feminino, fortemente impregnadas de teses essencialistas.

Pode-se observar que as formulações de Freud sobre a sexualidade feminina ora o colocam em sintonia com o pensamento dominante em sua época, ora abrem novas perspectivas para pensar a mulher.

Destaca-se, ainda, nesse percurso de sua produção teórica sobre a sexualidade, até os anos 1920, a temática da existência de um complexo, durante o desenvolvimento infantil, que ele denominou de Édipo, tendo como modelo o mito grego. Freud destaca a importância desse complexo como o fenômeno central do período sexual da primeira infância.

De acordo com o seu postulado, a assunção da criança à posição masculina ou feminina ocorre ao final de uma série de investimentos libidinais e identificações com os adultos que cumprem o papel de casal parental junto às crianças. Ele destaca a importância, em Édipo, de um elemento simbólico que chamou, novamente, segundo uma referência clássica, de falo. No entanto, esclarece que, embora o órgão masculino seja uma das formas assumidas pelo falo, este não se reduz ao pênis.

Conforme essa concepção, a saída do Édipo masculino se dá pela renúncia do menino à mãe, como primeiro objeto de desejo, devido ao temor da castração. Ao identificar-se com o pai, que ocupa a função de agente interditor entre a mãe e ele, o menino adquire a possibilidade de exercer sua virilidade com outras mulheres, respeitando, assim, o tabu do incesto.

Mas é o Édipo feminino que constitui motivo de embaraço para Freud. Ele logo percebe que o percurso da menina em direção à sexualidade adulta não é simétrico como o do garoto. A mudança do objeto de desejo (a mãe é também o primeiro objeto de desejo da menina) para o pai e a própria saída da situação edípica são questões problemáticas. Ao final, Freud destaca o ressentimento da menina em relação à mãe por não encontrar do lado dela um elemento simbólico que possa lhe garantir o acesso à feminilidade.

Nesse ponto, um impasse se faz presente: enquanto a masculinidade obedeceria à ordem da transmissão, a feminilidade diria respeito à invenção, a cargo de cada mulher.

 

O devir feminino

Em 1924, com o artigo “A dissolução do complexo de Édipo”, Freud (1996, v.19) dá ênfase, pela primeira vez, ao caminho diferente tomado pelo desenvolvimento da sexualidade em meninos e meninas. Para o menino, o declínio do complexo de Édipo, ou seja, a destruição da organização fálica infantil, dar-se-á sob a ação da ameaça de castração, em que ele vive um conflito entre seus libidinosos desejos dirigidos à mãe e o interesse narcísico dirigido a seu próprio pênis, prevalecendo este último. A princípio, o menino não dá crédito à ameaça recebida. Só mais adiante, quando pela primeira vez observa os genitais femininos, é que sua descrença cai por terra. Assim sendo, no menino, o complexo de castração o faz abandonar os desejos edipianos.

Na menina, o complexo de castração despertado pela visão do pênis nos meninos a levará a um sentimento de inferioridade e a querer compensar sua falta pela inveja do pênis. Neste caso, o complexo de castração a faz voltar-se para o pai para tentar substituir a falta do pênis: o desejo de ter um filho do pai, como substituto do pênis é, portanto, o promotor do Édipo feminino. Na medida em que esse desejo jamais se realiza, o complexo de Édipo na menina é gradativamente abandonado.

Freud conclui este artigo afirmando que “os dois desejos – possuir um pênis e um filho – permanecem fortemente catexizados no inconsciente e ajudam a preparar a criatura do sexo feminino para seu papel posterior” (FREUD, 1996, v. 19, p.198).

A temática das consequências psíquicas das diferenças anatômicas entre os sexos é mais bem delineada por Freud no ano seguinte (1925), no trabalho intitulado “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1996, v. 19). Esse texto contém uma completa reavaliação de suas opiniões sobre o desenvolvimento psicológico das mulheres. Nele estão também os germes de todo o seu trabalho posterior sobre o assunto.

A vida sexual das mulheres, até aquela época, encontrava-se mergulhada numa impenetrável obscuridade, o que levou Freud a muitas vezes presumir que a psicologia das mulheres podia ser tomada simplesmente como análoga à dos homens. No entanto, ele próprio sempre deixou assinalado o caráter inacabado ou mesmo de suposição de suas explorações a respeito desta questão e sua “urgente necessidade de confirmação”. Freud, assim se expressa:

Examinando as primeiras formas mentais assumidas pela vida sexual das crianças, habituamo-nos a tomar como tema de nossas investigações a criança do sexo masculino, o menino. Com as meninas, assim supúnhamos, as coisas deviam ser semelhantes, embora de um modo ou de outro elas tenham, não obstante, de ser diferentes. O ponto do desenvolvimento em que reside essa diferença não podia ser claramente determinado (FREUD, 1996, v.19, p.278).

Nesse artigo, Freud enfatiza a importância do complexo de Édipo e afirma que o modo pelo qual o menino ou a menina nele se introduz e o abandona terá seus efeitos no desenvolvimento de sua vida sexual.

Aponta a situação do complexo de Édipo como o primeiro estágio possível de ser identificado nos meninos, reafirmando que a atitude edipiana, nos mesmos, pertence à fase fálica e sua destruição é gerada pelo temor da castração. Com referência à pré-história desse complexo, acredita que o menino viva uma fase de afeto com o pai, identificando-se com este, não apresentando nenhum sentimento de rivalidade com relação à mãe. Ainda nesse estágio, surge, no menino, uma atividade masturbatória vinculada aos órgãos genitais cuja repressão coloca em ação o complexo de castração.

Nas meninas, o complexo de Édipo levanta uma questão a mais que nos meninos: sendo a mãe, originalmente, o objeto de investimento amoroso de ambos os sexos, o que leva os meninos a reterem esse objeto em seu complexo de Édipo? Como explicar que as meninas o abandonem, elegendo o pai como seu novo objeto de investimento amoroso?

Na busca de lançar luz sobre essa questão, Freud aguça suas observações sobre a pré-história da relação edipiana nas meninas, que ele afirma constituir-se de uma formação secundária. Durante a fase fálica, as meninas estão destinadas a fazer uma estupenda descoberta: o pênis de seu irmãozinho ou companheiro de brincadeiras é proporcionalmente muito maior que seu minúsculo clitóris. Isto as leva à inveja do pênis. Com uma frase Freud sintetiza este momento: “Ela o viu, sabe que não o tem e quer tê-lo” (FREUD, 1996, v.19, p.281).

Nesse ponto de seu trabalho, Freud afirma ter a oportunidade de corrigir uma premissa de anos atrás, em que acreditava que o interesse sexual das crianças era despertado pelo problema de saber de onde provinham os bebês. Aqui ele afirma que, pelo menos com as meninas, este por certo não é o caso.

Segundo este autor, a inveja do pênis, se não puder ser absorvida na formação reativa do complexo de masculinidade, pode acarretar várias consequências, entre elas, um sentimento de inferioridade na mulher, que pode persistir e, por deslocamento, tornar-se um traço característico de ciúme; um afastamento da relação afetuosa com a mãe, uma vez que a considera responsável por colocá-la no mundo de forma tão “insuficientemente aparelhada”; e um dos mais importantes efeitos da inveja do pênis, a abolição da masturbação clitoridiana (considerada uma atividade ligada à virilidade), constituindo precondição necessária para o desenvolvimento da feminilidade.

Freud, então, postula que o reconhecimento da diferença sexual obriga a menina a renunciar à masculinidade e dirigir-se à feminilidade, em função de seu “sentimento narcísico de humilhação ligado à inveja do pênis”.

Até aqui, o complexo de Édipo, na menina, não desempenhou qualquer papel. A partir desse momento, a libido da menina desliza da posição “pênis” para a posição “bebê”. Ela abandona o desejo de ter um pênis e passa a desejar um filho, tomando o pai como objeto de seu amor e a mãe como objeto de seu ciúme. A partir desse ponto, a menina estrutura-se para tornar-se uma mulher.

Para Freud, o complexo de Édipo na menina é uma formação secundária, preparada pelas operações precedentes do complexo de castração. Ele afirma existir um contraste fundamental entre os dois sexos, em relação aos complexos de Édipo e de castração. Assim, escreve:

Enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido através do complexo de castração (FREUD, 1996, v.19, p.285).

Essa contradição torna-se clara ao se entender que, nos dois casos, o complexo de castração inibe e limita a masculinidade e incentiva a feminilidade, sendo que a diferença entre o complexo de castração nos dois sexos deve-se às diferenças anatômicas. A menina, por já ser anatomicamente castrada, não teme a castração, enquanto o menino a teme, pois ela lhe aparece como uma ameaça.

Sobre os caminhos percorridos pelos dois sexos para a saída do Édipo, Freud, nesse texto, afirma que,

nos meninos, o complexo não é simplesmente reprimido; é literalmente feito em pedaços pelo choque da castração ameaçada. Suas catexias libidinais são abandonadas, dessexualizadas, e, em parte, sublimadas; seus objetos são incorporados ao ego, onde formam o núcleo do superego. Em casos normais, ou melhor, em casos ideais, o complexo de Édipo não existe mais, nem mesmo no inconsciente; o superego se tornou seu herdeiro (FREUD, 1996, v.19, p.285).

No entanto, em relação às meninas, ele afirma faltar o motivo para a demolição do complexo de Édipo, uma vez que a castração já cumpriu seu papel de forçar-lhes a entrada nele. Assim, entende que, nas meninas,

esse complexo foge ao destino que encontra nos meninos: ele pode ser lentamente abandonado ou lidado mediante a repressão, ou seus efeitos podem persistir com bastante ênfase na vida mental normal das mulheres (FREUD, 1996, v.19, p.286).

Em 1931, Freud produz um estudo com o título Sexualidade Feminina, onde faz um reenunciado das descobertas de 1925 e dá nova ênfase à intensidade e longa duração da ligação pré-edipiana da menina à mãe. Apresenta extenso exame do elemento ativo na atitude da menina para com a mãe e na feminilidade em geral.

Nesse texto, ele ressalta que a fase pré-edipiana na mulher é muito mais importante do que havia suposto e aponta que a universalidade do Édipo precisa ser repensada, levando-se em conta o princípio do Édipo negativo nas meninas (fase de ligação com a mãe, tendo o pai como rival). Afirma que a fase de ligação afetuosa pré-edipiana é decisiva para o futuro de uma mulher, uma vez que durante esta fase são feitos os preparativos para a aquisição das características com as quais mais tarde exercerá seu papel na função sexual e realizará suas apreciáveis tarefas sociais.

Como se processaria esse tornar-se mulher?

Ao contrário do menino, que na fase fálica se encontra em uma posição edípica, tendo como objeto de amor a mãe e como rival o pai, dando solução ao seu Édipo pelo complexo de castração, para a menina, é a castração que a conduzirá ao complexo edípico. Ela reconhece o fato de sua castração, e, com ele, também a superioridade do menino e sua própria inferioridade. Esse tornar-se mulher, enquanto resolução do Édipo feminino diante da castração, apresenta-se como uma operação complicada para a menina, que se rebela contra esse estado de coisas indesejáveis. Diante dessa situação conflitiva e de acordo com o modo pelo qual a menina significa sua castração, restam-lhe três saídas possíveis do complexo de Édipo: a inibição sexual, o complexo de masculinidade e a feminilidade normal, propriamente dita.

A primeira saída – a frigidez e a inibição – leva a menina, assustada pela comparação com os meninos e sentindo-se inferiorizada com o seu clitóris, a abdicar de sua masculinidade pela renúncia à atividade fálico-clitoridiana e pela instalação de uma inibição sexual que se estende a outros campos.

A segunda linha – o complexo de masculinidade – faz com que ela se agarre de forma desafiadora à sua masculinidade ameaçada, acreditando na possibilidade de obter um pênis, podendo resultar numa escolha de objeto homossexual manifesta.

E a terceira via – tornar-se mulher pela maternidade e pela passividade – possibilita-lhe encontrar o caminho da feminilidade definitiva pela substituição de seu desejo masculino de ter um pênis do pai por um desejo feminino de maternidade (ter um filho do pai) e pela substituição do gozo ativo masculino do clitóris pelo gozo passivo da vagina.

Portanto, nas mulheres, o complexo de Édipo constitui o resultado final de um desenvolvimento bastante demorado. Freud afirma que

ele não é destruído, mas criado pela influência da castração; foge às influências fortemente hostis que, no homem, tiveram efeito destrutivo sobre ele e, na verdade, com muita frequência, de modo algum é superado pela mulher (FREUD, 1996, v.21, p.238).

Entretanto, este modelo fálico-edípico para a sexualidade feminina configura-se num paradoxo ao indicar, por um lado, o feminino como construção psíquica e, neste sentido, desvinculado de uma ordem natural e, por outro, sustentar a maternidade como destino normal para as mulheres, sendo as demais alternativas consideradas desvios negativos e soluções patológicas.

Assim, no afã de fixar a mulher no lugar que ele supõe que lhe é predestinado, Freud aponta como única possibilidade normal para o sexo feminino uma trajetória bastante duvidosa. A ideia de maternidade como a única possibilidade de abrandar a inveja do pênis é, no mínimo, problemática, pois o bebê ficaria situado no lugar do falo, destituído de uma posição alteritária em relação à mãe, o que certamente traria problemas para o seu desenvolvimento posterior. É como se, contraditoriamente, para situar a mulher numa posição faltosa, Freud reforçasse o lugar onipotente da mãe.

Ainda nesse artigo Freud tenta obter resposta para as questões: ‘O que é que a menina exige da mãe? Qual é a natureza de seus objetivos sexuais durante a época da ligação exclusiva à mãe?’

Diz serem os objetivos sexuais da menina, em relação à mãe, tanto ativos quanto passivos e determinados pelas fases libidinais através das quais a criança passa. Identifica atividade/passividade com masculinidade e feminilidade, observando que as primeiras vivências sexuais da criança são passivas em relação à mãe, que amamenta e cuida dessa criança. Enquanto uma parte de sua libido continua presa a essas experiências, desfrutando das satisfações a elas relacionadas, outra parte tende a manifestar-se de modo ativo. Lembra que a mãe se torna o primeiro sedutor na vida da criança, por executar nela os cuidados corporais. Afirma, também, que a criança tende a repetir suas experiências passivas, sob a forma ativa, no brinquedo ou, então, transforma a mãe em objeto e comporta-se para com ela como sujeito ativo. Observa, ainda, que a atividade sexual bastante surpreendente de meninas em relação à mãe manifesta-se cronologicamente em inclinações orais, sádicas e, por fim, até fálicas, dirigidas no sentido desta.

Por fim, lembra-nos que existe apenas uma libido, sejam os objetos ativos ou passivos. E, como conclusão definida sobre a sexualidade feminina, assim expõe:

Descobrimos em ação nessa fase as mesmas forças libidinais que na criança do sexo masculino, e pudemos convencer-nos de que, durante algum tempo, essas forças seguem o mesmo curso e têm o mesmo desfecho em ambos (FREUD, 1996, v.21, p.247).

O último artigo de Freud sobre a temática do feminino, cujo título é Feminilidade, de 1932, faz parte da XXXIII Conferência, proferida em 1933. Nesse texto, expõe o problema da bissexualidade (descrita por ele na primeira edição de seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” – 1905) ao considerar que, anatomicamente, um indivíduo não é totalmente macho nem totalmente fêmea, somente os produtos sexuais são distintos: “O produto sexual masculino, o espermatozoide, e seu veículo são masculinos; o óvulo e o organismo que o abriga são femininos” (FREUD, 1996, v.22, p.114).

Freud chama a atenção para o fato de que partes do aparelho sexual masculino também aparecem no corpo da mulher e vice-versa, afirmando que a proporção de componentes masculinos e femininos que se misturam num indivíduo está sujeita a flutuações muito amplas.

Considera um grave erro confundir feminilidade com passividade e masculinidade com atividade. Pede cautela para não se subestimar a influência dos costumes sociais que forçam as mulheres a reprimir seus impulsos agressivos, favorecendo o desenvolvimento de impulsos masoquistas, considerados essencialmente femininos. Em relação a essa tendência, lança a questão: “Se os senhores encontram masoquismo em homens, que lhes resta senão dizer que tais homens mostram traços femininos muito evidentes?” (FREUD, 1996, v.22, p.127).

Esse autor afirma ser a psicologia incapaz de solucionar o enigma da feminilidade e diz que a psicanálise se empenha em indagar como é que a mulher se forma, isto é, como a mulher se desenvolve desde a criança dotada de disposição bissexual?

Neste ponto do texto, passa a discorrer sobre os caminhos da constituição da feminilidade, já abordados nos artigos anteriores: “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, (1925) e “Sexualidade feminina”, (1931), apresentando, na última parte deste artigo, um material novo que trata da mulher na fase adulta.

Importante precisar, no texto freudiano, o significado dos conceitos relativos a feminino, sexualidade feminina e feminilidade. O termo feminino refere-se à posição dita feminina na dialética fálica, na qual o feminino se articula à castração e à passividade em oposição ao masculino que é referido ao fálico e à atividade. A sexualidade feminina designa o destino da sexualidade da mulher dentro dessa referência fálica. E a feminilidade assinalaria uma inscrição do erotismo nos homens e nas mulheres não mais regulada à lógica fálica.

Freud aponta como um dos elementos precursores, concernentes ao enigma feminino, a dissolução apenas parcial do complexo edípico na mulher e o consequente prejuízo daí advindo, para a formação de seu superego.

Pode-se constatar que, nesse momento de sua produção teórica, ele faz uma abordagem da feminilidade para além da diferença entre os sexos. Seu percurso em relação à sexualidade feminina leva-o a destacar o complexo de castração como condição de distinção entre os sexos, mostrando um vínculo entre o processo de sexuação feminina e a cultura. Coloca a mulher como um vir a ser, ou seja, considera a formação da feminilidade como um processo em devir.

No que diz respeito às peculiaridades psíquicas da feminilidade madura, Freud acrescenta alguns esclarecimentos, entre os quais acentua que o desenvolvimento da feminilidade permanece exposto a perturbações motivadas pelos fenômenos residuais do período masculino inicial, ocorrendo frequentemente regressões às fixações das fases pré-edipianas. Afirma nem sempre ser fácil distinguir o que se deveria atribuir à influência da função sexual e o que atribuir à educação social, mas, ainda assim, imputa à feminilidade maior quantidade de narcisismo, que também afeta a escolha objetal da mulher, de modo que, para ela, ser amada é uma necessidade mais forte que amar. Considera que a inveja do pênis tem, em parte, como efeito a vaidade física das mulheres, vista como uma necessidade de valorizar seus encantos, como uma tardia compensação por sua original inferioridade sexual. Acredita, ainda, que a vergonha, considerada uma característica feminina por excelência, traz como finalidade a ocultação da deficiência genital. Contudo, Freud alega não pretender atribuir a tais asserções senão uma validade média.

Sigmund Freud termina sua obra sobre a sexualidade feminina com uma confissão sobre o inacabado:

Isto é tudo o que tinha a dizer-lhes a respeito da feminilidade. Certamente está incompleto e fragmentário, e nem sempre parece agradável. Mas não se esqueçam de que estive apenas descrevendo as mulheres na medida em que sua natureza é determinada por sua função sexual (FREUD, 1996, v.22, p.134).

Finalmente, é no texto “Análise terminável e interminável”, de 1937, que podemos vislumbrar a dimensão conceitual do que Freud vem designar como feminilidade, entendida como uma característica comum a homens e mulheres e sua aceitação equivalente à aceitação da castração.

Freud sustenta que, tanto na análise terapêutica quanto na análise de caráter, surgem dois temas relevantes que causam enormes dificuldades ao trabalho do analista: a inveja do pênis, um anseio definido pela mulher para possuir um órgão genital masculino e, no homem, uma luta contra a atitude passiva ou feminina em relação a outro homem.

Afirma haver uma correspondência entre esses dois temas, algo comum a ambos os sexos, mas que estes foram forçados pela diferença entre eles a apresentar formas diferentes de expressão.

Apesar de ter nominado essa característica psíquica dos seres humanos, comum aos sexos, de complexo de castração, acha que a descrição correta deveria ser “repúdio da feminilidade”, uma vez que trata da tentativa do sujeito masculino ou feminino de agarrar-se à referência fálica, como numa posição de defesa.

Ao descobrir-se castrado, o sujeito, homem ou mulher, se reencontraria com uma feminilidade primária que, se de um lado o remete a uma experiência de angústia, face à sua fragilidade e incompletude, de outro lhe abre novas possibilidades sublimatórias.

Ao situar a feminilidade como uma característica comum a homens e mulheres, Freud acaba por chamar a atenção para o fato de que o que era considerado pela tradição ocidental como atributo das mulheres seria na verdade uma vicissitude da condição humana.

O texto freudiano coloca-se, pois, como uma obra aberta que se encerra em uma tensão entre o impasse do feminino, referido à lógica fálica, e o passe da feminilidade, formulado por ele, em 1937, indicando um erotismo não mais falocêntrico, mas que deixa à mostra um eixo de subjetivação, erotização e sublimação e inaugura novas possibilidades de inscrição do sujeito, homem e mulher, na cultura, como singularidade e diferença. Assim, Freud se expressa:

Dois temas vêm a ter preeminência especial e fornecem ao analista quantidade inusitada de trabalho. Estão ligados à distinção existente entre os sexos; um deles é tão característico dos homens quanto o outro o é das mulheres. (...) Os dois temas correspondentes são, na mulher, a inveja do pênis – um esforço positivo por possuir um órgão genital masculino – e, no homem, a luta contra sua atitude passiva ou feminina para com outro homem. O que é comum nos dois temas foi distinguido pela nomenclatura psicanalítica, (...) como sendo uma atitude para com o complexo de castração (FREUD, 1996, v.23, p.268-269).

Seria, pois, com a feminilidade que os dois sexos se confrontariam para elaborar a castração. A feminilidade remetendo a uma condição constitutiva do sujeito, anterior à organização fálica, ou seja, anterior à inscrição da diferença sexual feminino/castrado ou masculino/fálico. Assim sendo, para Freud, a feminilidade passa a ser um conceito para além da diferença entre os sexos, uma experiência de perda dos emblemas fálicos e de falência narcísica, determinante para os indivíduos se situarem, enquanto sujeitos sexuados, em nossa cultura. Com essa nova visão, o feminino passa a ser pensado como base da constituição do sujeito, saindo de uma posição hierarquicamente inferior ao masculino e adquirindo um valor positivo impensável até então.

 

Perspectivas contemporâneas da feminilidade

Ao se procurar entender como se configura a feminilidade nos tempos atuais, faz-se mister buscar enunciar o solo fundante de sua proposição, a fim de se apreender a especificidade do que vem sendo identificado como feminilidade no contexto contemporâneo. Para tal, torna-se importante lançar um olhar mais cuidadoso sobre o que Freud nos legou com seus estudos.

A noção de feminilidade, ao fim das elaborações freudianas, deu à psicanálise a possibilidade de pensar os destinos do feminino como marcados pela singularidade. A singularidade e a riqueza da produção desse pensador é a de se constituir, ela mesma, em uma tensão discursiva entre o determinismo universal da lógica fálica e a feminilidade como enunciação singular. Ao final de sua obra, Freud expressou o conceito de feminilidade como o originário do sexual, o eixo fundamental do erotismo, ou seja, ele conferiu à feminilidade a centralidade da experiência erótica. A partir desse momento, a feminilidade inscreve-se como sendo a origem e o fundamento do sexual, a sua condição de possibilidade, de onde poderia advir o ser homem e o ser mulher.

Trata-se, pois, de um outro registro da sexualidade, caracterizado pela ausência da referência ao falo. Até então, as figuras do masculino e do feminino, na psicanálise, tinham, no falo, o seu operador teórico fundamental. A sexualidade feminina era sempre pensada a partir da sexualidade masculina, que se configurava como paradigma universal da subjetividade humana. A feminilidade, pois, como registro sexual teria como seu critério definidor a inexistência do falo como eixo de construção do sujeito.

Um outro conceito que também se articula ao registro da feminilidade, conforme o legado de Freud, é o de desamparo. Feminilidade e desamparo seriam duas faces da mesma moeda, aquilo que afetaria o sujeito, de tal forma, que não deixaria a este qualquer defesa possível.

De acordo com Birman, vários traços sobre a sexualidade estariam condensados na figura da feminilidade, quais sejam: prematuridade, incompletude, insuficiência, polimorfismo, inexistência de objeto fixo da pulsão, entre outros. Este autor assim sintetiza esta questão:

Enfim, a feminilidade e o desamparo originário do sujeito são os conceitos que unificam todos esses atributos sobre o erotismo, meticulosamente traçados no discurso freudiano, na tentativa sempre recomeçada de decifrar o emaranhado polissêmico da sexualidade (BIRMAN, 1999, p.53).

Assim sendo, longe da completude fálica e da onipotência narcísica, o sujeito encontraria na feminilidade a sua forma crucial de ser, uma vez que a fragilidade e a incompletude são as formas primordiais do ser humano. Justamente por isso o sujeito seria desejante. Se, por um lado, o que moveria o erotismo no ser seria a certeza da incompletude, por outro, a esperança da completude, a ser oferecida pelo gozo, seria o foco a alcançar. Dessa forma, poder-se-ia inferir que o erotismo humano se fundaria no desamparo do sujeito e na feminilidade.

Para que a feminilidade possa se instituir como eixo de fundação do sujeito, necessário é que se possam perder as certezas do phallus na sua falácia grandiloquente. Esta é a condição do erotismo, para que se possa ser femininamente mulher e femininamente homem (BIRMAN, 1999, p.104).

Desse modo, a experiência de desamparo dos homens e mulheres diante da perda dos referenciais fálico-narcísicos abriria para homens e mulheres novas possibilidades de subjetivação.

Não existiria, pois, qualquer falácia na feminilidade. Ela ultrapassaria as marcas da falicidade tanto na figura do homem quanto na da mulher. Se por um lado, para se alçar efetivamente ao erotismo, como forma de ser e de autenticidade, seria preciso coragem para se despojar dos referenciais fálicos, em contrapartida, seria justamente isto que lançaria o sujeito no que há de imponderável na experiência do desamparo, causando-lhe o horror desta condição.

Joel Birman, pensador contemporâneo, assim dimensiona essa questão:

Seria a fragilidade humana, revelada pelo desamparo originário, que impediria frequentemente as pessoas de realizarem uma ruptura decisiva e efetiva com as insígnias da falicidade. Essa é, contudo, a única possibilidade que lhes resta para se encontrarem criativamente com as suas falhas e fendas incontornáveis, para desistirem definitivamente do pesadelo letal da completude e da suficiência (BIRMAN, 1999, p.129).

Tem-se, pois, que no mundo contemporâneo, a condição humana seria reconhecida pela imperfeição e pela finitude. Por essas marcas fundamentais é que o feminino, agora, seria fundante de nossa subjetividade. No registro psíquico, a feminilidade seria, assim, o que nos inscreveria como seres marcados pela finitude e incompletude, ou seja, seres ‘humanos, demasiadamente, humanos’, conforme o aforismo nietzschiano (NIETZSCHE, 2006).

Assumir, portanto, os limites do humano circunscrito ao território da não perfeição e da não completude seria a assunção da feminilidade pelo sujeito, enquanto ‘sublime ação’ (BIRMAN, 2001), ou seja, seria a consideração efetiva pela psicanálise de que a condição humana não poderia fugir às dimensões erótica e intensiva das pulsões, uma vez que isso é que nos faria verdadeiramente humanos.

A feminilidade enquanto sublime ação indicaria as potencialidades humanas para a erogeneidade e para a experiência da criação, na qual se reconheceria implicitamente que a subjetividade seria, pois, imperfeita, incompleta, inconclusa e finita. Enquanto potência de devir e de vir-a-ser, o sujeito seria, enfim, sempre algo tosco e rude, marcado que seria pela pouco nobre carnalidade e fadado ao permanente e insistente recomeço de sua existência (BIRMAN, 2001, p.242-243).

A psicanálise postula que para o desamparo do sujeito não existe cura possível, pois frente a ele é preciso ao sujeito inventar para si novos destinos para tornar a sua existência possível e prazerosa. A feminilidade é, pois, uma face da experiência do desamparo, oposta ao masoquismo, na medida em que, ao indicar a perda dos emblemas fálicos a ambos os sexos, permite-lhes novas possibilidades de erotismo e sublimação.

Na busca de um caminho para propiciar este alcance, Birman, 1996, cunha a expressão “feminilização da existência”, ao indicar a possibilidade que a experiência analítica tem de “tornar possível para o sujeito um discurso singular sobre o mundo, uma leitura fragmentar sobre as coisas e a perda definitiva da crença nos enunciados universais (BIRMAN, 1996, p.19).

Regina Neri, psicanalista e autora de livros nesta área, corrobora com o pensamento birmaniano ao reafirmar a psicanálise como “discurso privilegiado para escutar, na clínica e na cultura, a inscrição de novos processos de singularidade subjetiva e erótica (em BIRMAN, 2002, p.14).

Segundo esta autora, o paradigma da feminilidade, hoje, apresenta-se como um discurso de subversão,

ao formular um eixo de subjetivação e erotização não mais referido ao paradigma masculino considerado universal, e ao enunciar um sujeito da mobilidade pulsional em permanente tentativa de inscrição de sua singularidade estésica numa singularidade ética e estética (NERI, 2002, p.34).

O grande desafio colocado ao sujeito – homem ou mulher – em um processo de análise estaria em conseguir permanecer e suportar a dor provocada pela posição de desamparo e de feminilidade. É nesse ponto limite entre sua pulsão de vida e de morte que o sujeito estaria propício a constituir efetivas possibilidades de sublimação e de criação, ou seja, aqui estaria a abertura de um canal para a construção da singularidade do ser. A sublimação é entendida, nesse contexto, como transformação da pulsão de morte em pulsão sexual, de maneira que o erotismo e o trabalho de criação se tornem possíveis.

Outra autora no campo da psicanálise, Silvia Alexim Nunes (2000) também afirma que a feminilidade, ao deslocar a questão da sexualidade humana do paradigma da diferença sexual para um outro, centrado na ideia de singularidade, coloca-se como uma experiência constitutiva do sujeito. Os dois sexos compartilham uma mesma feminilidade com a qual vão ter, necessariamente, que se deparar em seu processo de subjetivação, e sua aceitação equivale à aceitação da castração. Nessa ótica, a feminilidade mostra-se, então, como uma potência produtiva que pode desencadear diferentes caminhos e infinitas possibilidades sublimatórias para os indivíduos.

Diante desta constatação, Nunes convoca os analistas da modernidade a um processo de implicação nos novos rumos que a psicanálise pode alcançar em relação a essa temática:

... a noção de feminilidade pode ajudar tanto a compreender as formas contemporâneas de subjetivação quanto a criar espaços para a diversidade, a alteridade e a singularidade, tarefa da qual nós analistas não devemos nos furtar (NUNES, 2002, p.57).

A construção artesanal da singularidade seria, pois, a condição sine qua non do ofício de psicanalisar, uma vez que a subjetividade do sujeito no mundo contemporâneo não se funda mais sob ideais totalizantes e universalisantes. Isto implica, também, reconhecer o desamparo como fundamental à própria experiência da escuta analítica para que o analista possa estar aberto ao novo, reconhecendo pluralidades no discurso do analisando e abrindo-lhe espaço para a produção desejante.

 

Considerações finais

Em um momento de sua obra, Freud expõe que, talvez, a poesia e a arte pudessem decifrar melhor o ser da feminilidade do que os discursos da ciência e da psicanálise.

Embora suas pesquisas tenham se encerrado numa tensão entre a lógica fálica e a via da feminilidade, isto não lhe retira o mérito de estar inscrito numa história de transformação da metafísica dos sexos, na sociedade ocidental.

Hoje, conforme postulado de novos teóricos, a feminilidade como solo originário da subjetividade, ao indicar a perda dos emblemas fálicos, abriria para o sujeito, homem ou mulher, novas possibilidades de erotismo e sublimação, até então desconhecidas por ele e que lhe permitiria o desfrute de uma experiência de criação.

Nos versos da canção de Gilberto Gil, ‘Super-Homem – a canção’, a expressão desta característica dos novos tempos:

Um dia
Vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter.
Que nada
Minha porção mulher, que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É que me faz viver.
Quem dera
Pudesse todo homem compreender, oh, mãe, quem dera
Ser o verão, o apogeu da primavera
E só por ela ser.
Quem sabe
O Super Homem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Av. Nossa Senhora de Copacabana, 861/403 – Copacabana
22070-010 – Rio de Janeiro/RJ
E-mail: amma49@ig.com.br

RECEBIDO EM: 04/09/2012
APROVADO EM: 22/10/2012

 

 

Sobre a Autora

Angela Maria Menezes de Almeida
Pedagoga. Especialista em Metodologia do Ensino Superior e em Pedagogia Empresarial. Mestre em Educação pela UNIVERSO-RJ. Psicanalista e Membro Efetivo do CBP-RJ.