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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.38 Belo Horizonte dez. 2012

 

 

O mal-estar nas relações de trabalho

 

Discontents in Work Relations

 

 

Eliana Rodrigues Pereira Mendes

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Para Freud, o que se pode esperar de uma análise concluída seria uma certa vitória contra o impedimento ao amor e ao trabalho, que são os pilares da Civilização. Freud usa o termo trabalho tanto para atividades realizadas pelo homem, quanto em outras realizadas no homem. O conceito de trabalho vai além do que é delimitado pela Economia. A importância do trabalho é tal que ele chega a se constituir em índice de saúde mental para os seres humanos e como categoria fundamental para se pensar a vida e as produções culturais, através da História. Hoje, a falta de trabalho é fonte de mal-estar social. Vivemos numa sociedade de risco, com possibilidade de adoecimento e morte pelo trabalho. A competitividade leva à desconfiança e ameaça frente aos pares, sendo o assédio moral cada vez mais constante. A psicanálise pode intervir nessa situação abrindo-se à psicanálise em extensão e alargando seu domínio de ação, dando espaço para a palavra, nas suas dimensões ética e política.

Palavras-chave: Trabalho, Mal-estar social, Assédio moral, Competitividade, Psicanálise em extensão.


ABSTRACT

According to Freud, what we can expect from a finished analysis is the victory against the impediment of loving and working, wich are the pillars of Civilization. Freud uses the word Work not only for activities made by men, but also to activities made upon men. The concept of Work goes beyond the one limited by Economics. The importance of Work is so that it is considered as an index of mental health for human beings and to use to think about life and cultural productions, along History. Today, the lack of Work is the origin of social discontents. We live in a risky society that makes possible to get ill and to die because of Work. Competitiveness leads to distrust and threat face to peers, moral harassment being each time more frequent. Psychoanalysis can interfere in this situation through Psychoanalysis in Extension, favouring the speech, in its ethical and political dimensions.

Keywords: Work, Social discontents, Moral harassment, Competitiveness, Psychoanalysis in extension.


 

 

Em mais de uma ocasião, Freud afirmou que o que se pode esperar de uma análise concluída seria uma certa vitória contra o impedimento, tanto nos homens quanto nas mulheres, ao amor e ao trabalho. Em seu grande texto O Mal-Estar na Civilização (FREUD, 1930), ele afirma:

Depois que o homem primevo descobriu que estava literalmente em suas mãos melhorar a sua sorte na Terra através do trabalho, não lhe pode ter sido indiferente que outro homem trabalhasse com ele ou contra ele. Esse outro homem adquiriu para ele o valor de um companheiro de trabalho, com quem era útil conviver. Em época anterior, em sua pré-história simiesca, o homem adotara o hábito de formar famílias, e provavelmente os membros de sua família foram os seus primeiros auxiliares. Pode-se supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido um momento em que a necessidade de satisfação genital não apareceu mais como um hóspede que surge repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar por longo tempo, mas que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente. Quando isso aconteceu, o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto de si, ou, em termos mais gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea, não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse deles, a permanecer com o macho mais forte (FREUD, 1930, p.119).

Assim, a vida comunitária tem um duplo fundamento: o poder do amor, que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual e a mulher em privar-se do seu filho, e a compulsão para o trabalho, criada pela necessidade de domar a natureza.

Eros e Ananké são, pois, fundamentais para a civilização.
Rastreando a importância que Freud concedeu ao trabalho, chegamos a Rodolpho Ruffino (2000), em seu artigo “Do Trabalho Psíquico ao Trabalho Social” (p.186-189), que faz parte do livro O Valor Simbólico do Trabalho. Ruffino diz que um dos registros possíveis do trabalho social é o de ser uma representação de uma civilização, onde constitui o tecido de sua realidade visível. Na civilização ocidental cristã, o trabalho, desde as sua origens até o período da Reforma Protestante (que vai considerá-lo de forma diferente), foi visto como um castigo, mal necessário, fardo imposto pelos infortúnios contingenciais, ocupação à margem da verdadeira vida, pena a ser imposta a prisioneiros, estrangeiros e os assim considerados “subumanos” pela ideologia vigente, ou exigência a ser tolerada pelos empobrecidos. Resíduos deste ponto de vista continuam a manifestar sua potência como retornos do recalcado nas constituições de nossas instituições, pensamentos e subjetividades. Isso se deve à crença da igreja romana de que o mundo, como criação divina, é perfeito e, portanto, o homem devia se dedicar à contemplação, deixando o fardo do trabalho para os que não conseguissem fazer isso, por um motivo ou outro. Já para o judaísmo, a divindade criou o mundo, mas deixou-o inacabado. A humanidade então é convocada para uma parceria, com a tarefa de aperfeiçoar o mundo, por sua conta e risco, através da história, pelo estudo e pelas obras. A frase bíblica de Isaias “as espadas se converterão em arados” metaforiza a paz, fazendo uso de um instrumento de trabalho. Freud, como judeu, embora não religioso, usa extensivamente o termo trabalho em sua obra, tanto em atividades realizadas pelo homem quanto em outras realizadas no homem. Essa noção de trabalho vem sempre acompanhada de humor, alegria e vitória sobre os impedimentos.

Lembro aqui a importância que se dá ao trabalho, a ponto de figurar como índice de saúde mental para os seres humanos e como categoria fundamental para se pensar a vida e as produções culturais através da História.

Portanto, o psicanalista tem de estar atento ao que se passa na cultura, pois as mudanças que acontecem no mundo do trabalho vão incidir diretamente em seus analisantes.

Alfredo Jerusalinsky, também no livro O Valor Simbólico do Trabalho, afirma que o conceito de “neutralidade” entre os analistas tem o efeito equivocado de afastá-los das questões sociais, que, no primeiro momento, parecem exigir uma tomada de posição política ou uma determinação ideológica na sua abordagem (JERUSALINSKY, 2000, p.11).

Ao invés de penetrar nos pontos críticos da articulação do sujeito com o Discurso Social, para desmontar as armadilhas tecidas pelo confronto imaginário entre o coletivo e o individual, o analista tende a se refugiar no que é chamado de “o individual da clínica psicanalítica”, ou seja, a psicanálise em sua forma mais ortodoxa. No entanto, esse desafio se volta sobre a Psicanálise, pois os efeitos psicopatológicos provocados pelos rompimentos nos sistemas de representação subjetiva, quando não constituem causa de sofrimento psíquico, retornam como tema na queixa dos pacientes. O apego excessivo apenas à modalidade da clínica individual traz três tipos de risco:

- o analista pode tornar-se surdo a um lado fundamental da transferência da qual é objeto;

- o analista renuncia a oferecer uma escuta e uma interpretação psicanalíticas à posição do sujeito histórico, ali mesmo onde a psicanálise pode contribuir com o lado da razão, contra qualquer obscurantismo, lembrando que o processo analítico é sempre um processo de desalienação;

- o analista não confronta a consistência da ferramenta analítica frente a áreas em que sua práxis tropeça em suas fronteiras, onde se torna inevitável o trabalho interdisciplinar.

Para nos situarmos frente a esse assunto, ainda que de modo sucinto, temos de retornar ao conceito do trabalho através dos tempos (JERUSALINSKY, 2000, p.223).

Na antiguidade, o conceito do trabalho remetia às tarefas desempenhadas pelos escravos. Através da época clássica, o trabalho aparece ligado às prestações de serviço aos senhores feudais. Modernamente, depois de um período de qualificação artesanal, vem a fase de uniformização sob o modo de organizações ou associações.

Imediatamente anterior à sociedade industrial, surgem as generalizações técnicas por ofícios, que vão dar lugar ao surgimento das fábricas e, por consequência, ao proletariado, isso é, aos trabalhadores como os conhecemos até nossos dias. Hoje já entra em questão a própria posição do trabalhador como produtor de riqueza e a partir daí, também se questiona o sistema de valor que, até pouco tempo atrás, regulava sua posição social.

O conceito de trabalho, no entanto, é bem mais abrangente do que o delimitado pelo campo da Economia. Além de referir às transformações materiais provocadas pela atividade deliberada dos homens, com a finalidade de adaptar a natureza às suas necessidades, o trabalho passa, por extensão, a se referir às transformações que, em todas as ordens, caracterizam os fenômenos que dependem de certa intencionalidade humana. É então que se vê que esse conceito é usado por Freud quando se refere ao trabalho do sonho, ao trabalho do luto e das perlaborações (working through), estendendo sua função ao “trabalho pulsional”, em que se alude à transformação que se opera desde a fonte (orgânica) até a representação do objeto (psíquica). Tanto o objeto material quanto o objeto psíquico remetem à sua representação mental, que se dá no campo da palavra. Isso possibilita o valor simbólico do trabalho de qualquer natureza. Por isso, as alterações dos sistemas de valor que o Outro social adota em seu discurso são capazes de provocar significativas transformações no sujeito psíquico e seus sintomas.

Nos dias atuais, não só a problemática do trabalho em si é considerada como fator de grande importância, como também é inquietante o fato de não haver trabalho para todos. A globalização neoliberal trouxe um incremento gigantesco do desemprego, sendo este visto como fonte de mal- estar psíquico e de periculosidade social.

O desemprego mostra a impossibilidade de se prometer um lugar social às pessoas cujo reconhecimento simbólico também entra em falência. “As instituições penais (prisões) e psiquiátricas (hospitais psiquiátricos) que funcionaram como instituições de cuidado da mão de obra inativa, até os anos 80 e 90 do século XX, também se mostram inadequadas” (BIRMAN, 2008).

O enorme aumento das populações de baixa renda, as flutuações migratórias de países altamente conflitados para países mais ricos trazem dificuldades crescentes para a ordem social. As prisões, em geral, funcionam como mero depósito de presos, sem proporcionar qualquer tipo de reeducação, e os hospitais também adotam medidas repressivas, controlando seus pacientes com medicação maciça. Todos esses dados demonstram conotações políticas expressivas, como a perda da dimensão soberana do poder político para o poder econômico, fato que produz desorganização nas instituições, em geral. Vivemos numa sociedade de risco, com possibilidade de adoecimento e morte pelo trabalho. O assédio moral decorrente dessa situação aparece cada vez mais. É um crime quase invisível, mas seus efeitos são devastadores. Quando alguém é demitido de uma organização, seja uma empresa, uma fábrica ou uma escola, isso vai acarretar, do ponto de vista subjetivo, o aparecimento de quadros psicossomáticos e quadros depressivos graves, que implicam em gastos sociais altíssimos. O assédio sexual, numa sociedade permissiva sexualmente, cede o lugar ao assédio moral generalizado. Pessoalmente, já tenho em tratamento dois clientes cuja principal queixa é o assédio moral no trabalho (um professor universitário e uma gerente de banco). A solidariedade, como um valor, é marcada pelo risco de sabotagem que advém dos próprios colegas de trabalho. O colega é um inimigo real ou potencial, num ambiente competitivo. Não há qualquer mediação vertical (por parte de uma chefia, por exemplo) que proteja os cidadãos. Tal fato decorre do declínio das autoridades, em geral, tão comum em nossos dias. O que se vê, então, é um processo perverso que destrói as pessoas moralmente.

Richard Sennet, em seu livro A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo, traça um perfil da condição dos trabalhadores na sociedade contemporânea. O caráter depende de uma sociedade onde os quadros de trabalho sejam mais consistentes. Os trabalhadores ficam sujeitos a uma falta de projeto, sem futuro definido. Ficam à deriva das flutuações do mercado de trabalho. As categorias organizadoras da subjetividade começam a ser corroídas e o sujeito se acha subvertido nesse processo. É um trabalhador nômade, sem coordenadas espaciais e temporais. Os processos de simbolização se ressentem com isso. Se a capacidade humana de antecipação temporal é importante, esse nomadismo causa uma grande desorganização. Em consequência dessa dificuldade de simbolização, as formas de patologia psíquica são traumáticas. Segundo Birman (2008), o mal-estar decorrente incide em três categorias básicas: perturbações no corpo, perturbações na ação e perturbações nos afetos. O corpo, na contemporaneidade, diante de todas as rupturas de valor que se vivencia, tornou-se o bem supremo dos sujeitos. Ele é o que nos resta. Por isso, as patologias atuais, tais como os sintomas psicossomáticos, a anorexia, a bulimia, demonstram a precariedade do processo de simbolização, o que acaba por explodir no corpo. Na ação vemos a agressividade, a violência e a criminalidade. Para se livrar das pulsões, para não ter que se destruir narcisicamente o sujeito faz atuações. A neurose de pânico e a fadiga crônica, assim como as compulsões à droga, à comida e ao consumo exagerado, estão nessa categoria. As compulsões são, na verdade, formas fracassadas de ação.

No que se refere aos afetos, o sujeito não tem mais o controle de si próprio, em relação às dificuldades que encontra. Sendo assim, experimenta a depressão como um vazio, ao invés da auto-agressão. Há, na verdade, um esvaziamento do campo do pensamento, acompanhado de pobreza de linguagem. Essa pobreza aparece não só por causa do predomínio das imagens, fenômeno específico do nosso tempo, mas também por causa das próprias transformações internas. Esses fatores favorecem o aparecimento de processos verbais metonímicos (como a linguagem da Internet, por exemplo, ou as pichações feitas por todo lugar).

O sujeito contemporâneo é cada vez mais marcado pela dor e menos pelo sofrimento.

A dor é experimentada no corpo, sendo que o sofrimento é a subjetivação da dor. No mundo marcado pela desconfiança do outro, os espaços de transferência e interlocução ficam diminuídos. O que existe então é o desalento. A depressão se demonstra muito mais pela melancolia, pelo vazio, do que pela angústia ou pelo conflito da interioridade. O que se vê hoje é um sujeito sem interioridade, entregue a uma vida desqualificada. O sofrimento, qualquer que seja ele, tem que ser evitado. Disso resulta o uso exagerado das medicações psicotrópicas, que, supostamente, acabam com o sofrimento.

De que modo a Psicanálise pode intervir nessa situação?

Em primeiro lugar temos de lembrar sempre que a Psicanálise é um instrumento de desalienação do sujeito. Ela pode abrir espaços de transferência e de interlocução. Mas, para isso ela tem de “se desapegar da ortodoxia” (Birman, 2008). Além da Psicanálise em Intensão (a análise individual clássica, na qual se busca a cura-tipo), hoje são comuns as abordagens que extrapolam esse modelo analítico, como a análise da psicose, a análise da criança, a análise dos psicossomáticos e dos borderlines. Não se pode deixar de considerar a importância da assim chamada Psicanálise em Extensão, que atua no campo social, em múltiplas situações e organizações (como nas empresas, nas escolas, nas comunidades e outras organizações), o que leva a uma reformulação do próprio espaço analítico. No mundo contemporâneo os psicanalistas se acham confrontados pelos recursos midiáticos, sendo chamados a participar de debates e reflexões sobre os acontecimentos, à luz da Psicanálise, para o esclarecimento do público. Lembro aqui a surpresa e satisfação que vivi, logo no princípio da guerra dos USA com o Iraque, ao ver uma psicanalista inglesa falar num canal de TV sobre o texto de Freud O Mal-Estar na Civilização. Por isso nós, psicanalistas, somos convocados a repensar nossas categorias da escuta psicanalítica, alargando nosso domínio de ação, ou de trabalho. À Psicanálise cabe abrir o espaço para a palavra, para o discurso ético e político.

 

Referências

BIRMAN, J. Notas pessoais tomadas pela autora da Conferência: Sujeito, trabalho e as organizações, proferida no encontro do mesmo nome na Fundação Dom Cabral, em conjunto com o CPMG, Belo Horizonte, 2008.         [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na civilização, v.21. In ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p.119.         [ Links ]

JERUSALINSKY, A. O valor simbólico do trabalho. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000, p.9 e 223.         [ Links ]

RUFFINO, R. Do trabalho psíquico ao trabalho social. In O valor simbólico do trabalho. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000, p.186-189.         [ Links ]

SENNET, R. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.10-177.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Araguari, 1541/7º andar – Santo Agostinho
30190-111 – Belo Horizonte/MG
Tel.: (31)3337-1583
E-mail: elianarpmendes@hotmail.com

RECEBIDO: 14/08/2012
APROVADO: 20/08/2012

 

 

Sobre a Autora

Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Psicanalista. Sócia efetiva do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Presidente dos biênios 1997-1999 e 20011-2013.