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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.38 Belo Horizonte dez. 2012

 

 

A linguagem constituinte do ser humano

 

The constitutive language of human beings

 

 

Maria Melania Wagner F. PokorskiI; II; Luís Antônio Franckowiak PokorskiI

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
II Faculdade Porto-Alegrense

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto aborda a linguagem como constituinte do sujeito. São apresentados os principais autores sobre o assunto na área da Psicanálise, bem como uma vinheta clínica de uma criança que não fala na escola. Ele também destaca os contos infantis e as narrativas como recursos terapêuticos e descreve a experiência analítica como uma oportunidade de a pessoa poder, através da linguagem, (re)significar sua história de vida. O texto contextualiza os laços como mais frágeis nas relações humanas, como isso pode afetar a clínica e as possíveis modificações nas subjetividades.

Palavras-chave: Psicanálise, Linguagem, Narrativas, Experiência analítica.


ABSTRACT

The text presents language as constitutive of the subject. Paramount researchers of the topic in the Psychoanalysis area, as well as a clinical case of a child who is unable to speak at school are presented and discussed. It also fairytales and narratives as a therapeutic resource, and describes analytical experience as an opportunity for people to restore (or bring) meaning to their own history. It contextualized bonds as more vulnerable in human relations and how it affects the clinic, as well as possible changes in subjectivity.

Keywords: Psychoanalysis, Language, Narratives, Analytical experience.


 

 

O ser humano se constitui a partir da linguagem. Em todas as culturas e em todos os momentos da evolução humana – sob diversas formas de manifestação – encontramos gestos que se ritualizam, consensualizam-se, comunicam-se e tornam-se símbolos. Em todos eles, o humano reconhece-se, apreende espaços e tempos, constrói memórias através de suas falas, histórias e dos relatos que cria. E é enquanto ser de linguagem, a qual supõe um processo de elaboração e esforço, que ele acaba por lançar-se na aventura de (o) ser. São exatamente esses os pressupostos da Filosofia da Linguagem, da Linguística e da Psicanálise.

A linguagem através da palavra é um elemento fundante do sujeito e do conhecimento. O valor da palavra aparece desde a Bíblia – no princípio era a Palavra, o Verbo. Para o psicólogo russo Vygotsky, o desenvolvimento do pensamento está ligado à palavra. Para Paulo Freire, educador brasileiro, é preciso que se diga a palavra a fim de que se possa mudar o mundo e a nós mesmos. Freud anuncia a cura pela fala. Segundo Dolto (1999), no momento em que algo é falado, rememorado e tratado, quem o proferiu jamais regredirá ao mal-estar que o afligia.

Para melhor organizarmos o texto, apresentaremos dois temas vinculados à linguagem. Na primeira parte investigaremos os principais autores pesquisadores do assunto na área da Psicanálise. Ilustraremos essa parte com uma vinheta clínica de uma criança que chegou a nós com características, segundo classificação psiquiátrica, de mutismo seletivo. A vinheta nos fez pesquisar as relações dessa dificuldade de uso da fala na escola com os primeiros anos de vida, e de que forma a linguagem dos contos de fada pode ser utilizada como recurso terapêutico. Na segunda parte vamos examinar a linguagem na experiência analítica. As considerações finais não serão conclusivas; muito pelo contrário. Apresentam-se algumas indagações concernentes a mudanças necessárias à clínica para que um novo olhar e uma nova escuta atendam a relações e tempos que se apresentam cada vez mais líquidos (Bauman, 2007) do que outrora, quando Freud atendia a pacientes neuróticos.

A linguagem é um meio pelo qual se comunica algo a outra pessoa. Essa comunicação pode ser expressa de várias formas. A mais utilizada é a linguagem verbal, ou seja, as palavras faladas ou escritas. A comunicação também se dá através da linguagem não verbal expressa em gestos, desenhos, músicas, pinturas, mímicas, silêncios, sonhos, etc.

As maiores contribuições na Psicanálise em relação à linguagem, segundo Zimerman (2001), devem-se a Freud, Bion e Lacan. Freud, em 1915, abordando o conceito de inconsciente, diferencia a representação-coisa da representação-palavra. Na representação-coisa, a linguagem sígnica manifesta-se por meio de sinais, que, por sua vez, expressam as emoções e sensações primitivas não nomináveis. Tome-se, por exemplo, o bebê que chora para manifestar o seu desprazer ao sentir fome ou algum outro desconforto corporal. A representação-palavra tem acesso ao pré-consciente e ao consciente, manifestando-se em palavras simbolizadoras. Nesse sentido, a criança, ao brincar de casinha, imita e verbaliza situações vividas pelas figuras parentais e, assim, pretende incorporar ou elaborar algo dessas cenas.

Bion ocupa-se do estudo sobre o pensamento e os distúrbios da linguagem observados em pacientes esquizofrênicos. Para Zimerman (2001), Bion descreve três maneiras pelas quais pacientes utilizam a linguagem: “1. como um modo de atuar. 2. como método de comunicação primitiva. 3.como uma forma de pensamento” (ZIMERMAN, 2001, p.252 – grifos do autor). Bion recomenda que o analista observe, no analisando, em que momentos ele comunica com linguagem simbólica ou quando apenas expressa palavras soltas, muitas vezes usando-as como se fossem coisas, por meio de identificação projetiva, enfiando-as no analista.

Lacan traz contribuições através dos conceitos de significado e significante, metáfora e metonímia, palavra-vazia e palavra-cheia de significado. Suas máximas são “o inconsciente é o discurso do outro” e “o inconsciente estrutura-se como uma linguagem” (ZIMERMAN, 2001, p.252).

As expressões palavra-vazia e palavra-cheia (plena) são merecedoras de diferenciação nas sessões analíticas. Para Zimerman (2004), a palavra cheia de significados é uma formação simbólica e corresponde aos fatores neurológico e emocional. O autor comenta que, para Melanie Klein, quando há falha no fator emocional, não atingindo a posição depressiva, as consequências na linguagem são não adquirir a dimensão do concreto e do abstrato, permanecendo-se apenas no nível da concretude e originando-se prejuízos na sintaxe, o que nos psicóticos aparece sob a forma de um discurso caótico ou uma salada de palavras mal organizadas.

Além de Freud, Bion e Lacan, outros psicanalistas dedicaram parte de seus estudos à linguagem. Destacam-se Winnicott, Dolto, André Green, Pontalis e McDougall, entre outros.

Para McDougall (1996), as origens do universo simbólico surgem quando o bebê consegue usar a palavra para substituir as formas mais primitivas (choro, resmungos) de comunicação corporal pronunciando então a palavra mamãe. Esta palavra contém a proteção e o calor da mãe por constituir-se uma representação mental dela. Porém, quando há algum fracasso nesse processo organizador e constitutivo psíquico, a criança pode comprometer sua capacidade de integrar como sendo seus, no que diz respeito a seu corpo, seus afetos e pensamentos.

McDougall (2001) observa que quando ocorrem fracassos concernentes ao afeto, pode resultar no que ela denomina de alexitimia, ou seja, quando o analisando não consegue descrever sua vivência afetiva, nem distinguir uma emoção da outra. Os afetos parecem-lhe confusos e, muitas vezes, indizíveis. Com relação ao pensamento, quando acontecem falhas, este se estrutura no operatório concreto. A comunicação é essencialmente pragmática e deslibidinizada, tanto com os outros quanto consigo mesmo. As doenças psicossomáticas podem ser consideradas um simbolismo arcaico infraverbal subjacente aos fenômenos somáticos.

Outra manifestação da linguagem é o sonho. Entretanto, para que o sujeito possa sonhar, McDougall (1996) diz que é necessário o bebê ter introjetado uma tela do seio materno, para que nela possa projetar. Essa relação mãe-bebê requer confiança e segurança. A mãe pode servir de proteção ao psiquismo do bebê, principalmente no período da representação-coisa, anterior à representação-palavra.

A linguagem se manifesta mesmo naquilo que não é dito. Freud, no caso Dora, menciona que “Nenhum mortal pode guardar um segredo. Se sua boca permanece em silêncio, falarão as pontas de seus dedos” (FREUD apud ZIMERMAN, 2004, p.155).

Guardar ou mostrar palavras na medida certa é uma dádiva que poucos conseguem atingir. Contudo, enquanto alguns têm facilidade no uso da linguagem verbal, fazendo da fala um jogo de palavras, outros vivenciam momentos angustiantes quando lhes é dada a palavra.

Passemos, então, à apresentação da vinheta de um caso clínico. Trata-se de uma menina de oito anos de idade, a quem chamaremos de Isabela. Quando chegou ao consultório, Isabela frequentava o terceiro ano do ensino fundamental em uma escola particular de Porto Alegre. A mãe apresentou a queixa de que a filha não falava na escola. A comunicação da menina com a professora era feita somente através de bilhetes escritos pela mãe.

Tal tipo de falha na comunicação é classificado pelo DSM IV de mutismo seletivo, uma vez que era somente na escola que Isabela não falava. Em outras situações e lugares, a paciente utilizava-se da linguagem verbal.

Ao escutar essa queixa da mãe, imaginamos e sentimos quão grande deveria ser a angústia e o sofrimento de Isabela ao passar cinco horas diárias na escola sem conseguir dizer coisa alguma.
Em seus primeiros meses/anos de vida, Isabela apresentou outras dificuldades. Além de asma, a paciente não mamou no seio e teve muita dificuldade de adaptação à creche, chorando muito e tendo começado a frequentá-la desde muito cedo. Desde que nasceu foi cuidada por babá. Teve três babás durante os primeiros anos. Em um turno ficava na creche e no outro com a babá. A mãe e o pai, como a maioria dos pais brasileiros, trabalham fora o dia inteiro. Em seus hábitos alimentares Isabela sempre foi bastante seletiva, não aceitando determinados alimentos.

No consultório Isabela chegou com a demanda de ser ajudada a falar na escola. Ela dizia: “quero uma doutora que me ajude a falar na escola”. Depois de sobrepujar parte de seus obstáculos, após alguns atendimentos trouxe um bilhete em um envelope verde endereçado a mim (Melania), em que relatava já conseguir ler em voz alta quando a professora lhe solicitava. Além da parte escrita, o bilhete continha ilustrações com desenhos de nós duas, lado a lado, de jogos, corações e uma boca representando beijos. Esse bilhete veio investido libidinalmente com o desejo de comunicar um bem-estar por ter superado parte de seu fantasma que a impossibilitava de se comunicar. Seu primeiro passo através da leitura, que trouxe algo permanente, registrado por alguém. Caminho este bem mais fácil do que expor as próprias ideias.

Do bilhete ficam inscritos o afeto e a confiança firmados entre a paciente e a analista. O deixar escrito é diferente de apenas dizer algo. O dito é sempre algo transitório, enquanto que, na escrita, o registro do conteúdo é permanente. Para Fernández (2012), “a escritura sobre o papel imprime aos traços executados um caráter de permanência, dando não só visibilidade ao gesto de quem o realizou, como também a permanência de si próprio em outra superfície” (FERNÁNDEZ, 2012, p.35).

Fernández (2012) destaca a importância da relação mãe-bebê no ato de mamar. Esse momento propicia ao bebê acariciar o rosto da mãe, que passa a ser a sua primeira escritura sobre a pele materna e que dará lugar ao desenho sobre o papel.

O tema da alimentação veio à tona após alguns atendimentos, quando Isabela e eu escrevíamos uma história. A história com o título Era uma vez conta sobre o Sapo que estava com fome e que recebeu uma sopa bem quentinha. A receita da sopa com todos os ingredientes está detalhadamente escrita nessa história. O conto continua e o Sapo reúne seus amigos (outros bichos) e inicia um concurso para o bolo mais delicioso. Esse conto que fala de alimentação remete aos cuidados primitivos de introjeção de alimentos bons; alude aos mecanismos do bebê de introjetar e projetar, nos quais engole o que é bom e cospe o que não lhe satisfaz.

Contemporaneamente, porém, alguns bebês não vivem ou não experienciam suficientemente esse processo de introjetar e projetar. As relações com o outro lhe são bastante variáveis desde cedo. Bauman (2004) menciona como o amor e o tempo estão mais líquidos, configurando um novo modelo nas relações com o outro caracterizado por uma maior fragilidade dos laços humanos. É sabido que alguns bebês são cuidados/atendidos por três ou mais pessoas diariamente nas creches. Dessa forma, o bebê experiencia situações precoces de privação na relação com o outro.

Winnicott (1990), ao examinar a capacidade de comunicação, diz que as relações objetais são um fenômeno complexo; envolvem um processo de maturação e um ambiente favorável para tal. As privações e as perdas vivenciadas necessitam de meses ou anos para que “possam ser absorvidas pelo indivíduo sem distorção dos processos essenciais que são básicos para as relações objetais” (WINNICOTT, 1990, p.164). As distorções nos processos essenciais, além do ambiente pouco favorável, podem advir somadas ao processo fantasmagórico, que organiza a subjetivação da criança.

No processo de desenvolvimento do bebê, no qual a linguagem tem uma função estruturante e fundante na formação do psiquismo e do sujeito, são necessárias a diferenciação do eu e não-eu e a capacidade de perceber o outro para, posteriormente, separar-se dele. Em outras palavras, é necessário que se tenha esse outro introjetado em si para que se possa ficar só e seguir adiante no seu processo de construção da identidade com as várias identificações que compõem o sujeito.

Com a linguagem a humanidade pôde produzir e perpetuar mitos, contos, fábulas, parábolas, poesias e histórias passadas de geração em geração. Cabe mencionar, dentro do tema das histórias de paixões humanas, o livro As mil e uma noites, em que Xerazade salva a sua vida ao contar, a cada noite, uma encantadora narrativa a Xeriar, frustrado em vários relacionamentos anteriores e que se propusera, diariamente, casar e matar a esposa a fim de não se desiludir.

Para Corso e Corso (apud Gutfreind, 2010), todos tivemos uma decepção amorosa com a nossa mãe ao descobrirmos que ela não tinha olhos apenas para nós, que outras pessoas eram-lhe importantes e, entre elas, estava o pai. A mãe, ao contar histórias e alimentar a criança com leite e afeto, transmite confiança, segurança, proteção, mas tudo isso se torna mais nutritivo, se, em seu discurso, a posição do pai ficar demarcada.

A linguagem dos contos infantis, seja em sua leitura, seja no ato de se contar, de escrever e de escutar, além de trabalhar com o imaginário, a fantasia, a variedade de cenas possíveis, bem como as alternativas para as situações de angústia, é considerada um recurso terapêutico e utilizada por muitas psicanalistas. Gutfreind realizou suas pesquisas de mestrado, doutorado e pós-doutorado na França trabalhando com crianças abrigadas e crianças que possuíam família. O pesquisador utilizava como tema a contação de histórias infantis. Ele destaca autores da Psicanálise que atribuem ao conto um potencial de entrar em contato com os mais profundos afetos. Freud, assim como psicanalistas contemporâneos, atribui ao conto uma função organizadora do psiquismo. Para Käes, “Nada do que a psicanálise descobriu do psiquismo humano está ausente do conto” (KÄEZ apud GUTFREIND, 2010, p.145).

Nos contos a criança vê representados os seus fantasmas de onipotência, dos quais, muitas vezes, ela não quer abrir mão, permanecendo na relação oposta à sua realidade. Melanie Klein, em seus estudos sobre a formação do símbolo, afirma “que poder simbolizar esse desejo de onipotência talvez seja a única forma de abrir mão dele” (KLEIN apud GUTFREIND, 2010, p.151),
A narrativa é, pois, a ferramenta essencial do processo analítico. Obviamente, a experiência e a vivência analíticas efetivam-se como uma realidade humana no horizonte da linguagem (sonhos, lapsos, atos falhos). A Psicanálise, dessa forma, ressalta o papel dos processos inconscientes na dinâmica do psiquismo humano, processos esses que, como inicialmente mencionou-se, estruturam-se na forma de linguagem.

Na análise, o paciente através das suas associações livres traz suas queixas, seus medos e suas vivências com as pessoas que fazem parte, de algum modo, de suas relações. Nesse percurso, o sujeito pode apropriar-se mais de sua fala e entender-se melhor a partir da compreensão da dinâmica de seus processos inconscientes. De narrativa em narrativa, o paciente vai revivendo e ressignificando a sua fala, ficando a sua história, de algum modo, mais bem tecida, pois a existência de cada um, de algum modo, é um grande texto, que se constitui e é tecido ao longo da vida. Apesar de estar sendo continuamente escrito, contudo, ainda é um texto a ser lido, uma narrativa que quer ser comunicada.

A Psicanálise tem uma relação necessária com a linguagem. Enquanto processo terapêutico, ela se funda na palavra. O inconsciente se expressa na fala à revelia da intenção da pessoa e muito além de seu conhecimento consciente. Todavia, é pela palavra que a cura se elabora. Somos como nos lembra Gutfreind (2010) tecidos de histórias, e por elas temos nosso segundo nascimento – o subjetivo.

 

Considerações finais

Linguagem é um tema abrangente e vasto. Ela está marcada (e marca) com a história e a cultura de cada povo e de cada sujeito. Aliás, como menciona Lebrun (2008), “é precisamente a passagem necessária pelo sistema de linguagem que faz de um indivíduo um sujeito e que lhe dá um inconsciente” (LEBRUN, 2008, p.50).

Os meios de comunicação se expandiram muito nos séculos XX e XXI. As tecnologias (re)passam as informações em questão de segundos para diferentes continentes. Na época de Freud, a principal forma de se comunicar com pessoas distantes era a carta. Muitas vezes a carta era guardada como um objeto transicional daquela pessoa que havia escrito, marcada com saudades e com os diferentes afetos.

Hoje a comunicação é feita através de e-mail, mensagens de texto, redes sociais, blogs, mini blogs, etc. Em todos esses meios, a permanência do registro é transitória; basta um toque de dedo e tudo desaparece.

Que diferença isso pode trazer à clínica psicanalítica? O número de encontros semanais ainda pode ser de quatro ou cinco sessões? Há disposição, tempo para se refletir sobre os sofrimentos quando existem medicamentos para quase todo tipo de dor, até para as dores da alma?

Percebe-se uma mudança na dinâmica da instituição familiar, tanto em sua organização quanto no cuidado dos filhos. Muitos filhos não se veem mais estimulados a trabalhar. Com essa recusa ao trabalho e, muitas vezes, ao estudo, o separar-se dos pais fica comprometido. Lebrun comenta o congresso de 1968, de Lacan, sobre as psicoses da criança, quando previa a “criança generalizada” (LEBRUN, 2008, p.28). Com essas mudanças podemos inferir modificações nas subjetividades.

Profissionais que trabalham com crianças observam, hoje em dia, um considerável número delas com características do espectro autista, que corresponde ao autismo e à psicose infantil. Alguns autistas ficam fechados para o mundo, ou seja, não há uma comunicação com o outro, uma vez que não se organizaram o eu e o não-eu (outro).

Os principais estudos sobre o espectro autista na França são de Laznik (2004), que analisa os três tempos do circuito pulsional. Nesses três momentos é necessário observar no primeiro tempo o bebê apoderando-se do ato de mamar; no segundo, a sua capacidade autoerótica, uma experiência alucinatória de satisfação; e no terceiro tempo o bebê assujeitar-se ao outro, em que quer “fisgar o gozo deste Outro materno” (LAZNIK, 2004, p.28). É esse terceiro tempo o mais comprometido nos autistas. No Brasil, as pesquisas sobre o espectro autista são coordenadas por Kupfer e Lerner (2008), que organizaram o IRDE – Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil, com o objetivo de acompanhar bebês e localizar prévia e precocemente transtornos futuros. A pesquisa denuncia “uma falta de enlaçamento entre as três dimensões que fazem uma pessoa; vamos chamar de pessoa, o corpo, a linguagem, a imagem” (KUPFER; LERNER, 2008, p.60 – grifo nosso). Os quatro eixos dos indicadores de desenvolvimento, observados do nascimento aos três anos de idade, são: “suposição de sujeito, estabelecimento da demanda, alternância presença-ausência e função paterna” (KUPFER; LERNER, 2008, p.15).

Como intervir? Qual a contribuição da Psicanálise para crianças com o espectro autista? Kupfer e Pinto (2010), com os seus colaboradores de pesquisa em diferentes estados brasileiros, descrevem formas de intervenção para trabalhar a relação mãe-bebê, como questões de crianças maiores envolvendo a escolarização (alfabetização, convívio em grupo, inclusão, etc.).

Finalizamos (re) afirmando a importância da linguagem com o poema Ser:

A palavra
me faz humano,
me faz falante,
ser pensante.

Alma:
verbo,
silêncios,
narrativas,
pausas.

Contextos:
com textos,
em prosa
e em verso,
sou tecido.

(Luís Antônio F. Pokorski)

 

Referências

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ZIMERMAN, D. Manual de técnica psicanalítica: uma re-visão. Porto Alegre: Artmed, 2004.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Assis Brasil, 3532/1012
91010-003 – Porto Alegre/RS
E-mail: mariamelania@fapa.com.brluismelania@yahoo.com.br

RECEBIDO: 17/09/2012
APROVADO: 22/09/2012

 

 

Sobre os Autores

Maria Melania Wagner F. Pokorski
Psicanalista. Associada e Coordenadora da Formação Permanente do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Psicopedagoga. Mestre em Educação. Professora da graduação e pós-graduação da Faculdade Porto-Alegrense.

Luís Antônio Franckowiak Pokorski
Filósofo. Professor. Membro em formação psicanalítica do Instituto de Estudos de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.