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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.38 Belo Horizonte dez. 2012

 

 

Autismo: uma questão de ciência ou de ideologia?1

 

The Autism: Question of science or ideology?

 

 

Ramón Menéndez

Association de Psychanalyse Jacques Lacan

Tradução: Elisa Rennó dos Mares Guia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As recentes decisões políticas sobre a questão do tratamento do autismo na França tendem a promover técnicas educativas e comportamentais. Tal posicionamento se opõe à psicanálise e defende o progresso e as ciências. O presente artigo descreve os aspectos ideológicos e políticos do trabalho de Eric Schopler, conhecido por ter desenvolvido o programa TEACCH2 que visa ao tratamento de crianças autistas. Este programa é, frequentemente, citado como modelo a ser seguido. Schopler enfatiza o trabalho com os pais, e não se preocupa muito com a dimensão subjetiva das crianças. Ele organiza uma rede de pais de crianças autistas e junto com eles pressiona o poder legislativo para que o autismo seja reconhecido como uma deficiência. Eles também reivindicam o desenvolvimento de sua técnica para a criação de um programa no Estado da Carolina do Norte (EUA). Os aspectos clínicos e científicos de seu trabalho parecem não apresentar um grande rigor.

Palavras-chave: Autismo, Psicanálise, TEACCH, Ciência, Ideologia.


ABSTRACT

The latest political decisions in France seem to turn into the direction of promoting educational and behavioural techniques in the treatment of autism. This is happening in opposition to psychoanalysis and in the name of the science. This paper seeks to describe the ideologies and political issues of the work of Eric Schopler, who became know thanks to the program T.E.A.C.C.H. for autistic children treatment, which himself created. This program is mentioned very often as model that must be followed. Schopler emphasises the work with the parents. Without caring enough about the subjective dimension of children, he organises a network of parents of autistics and puts pressure on the legislative for recognition of autism as a handicap and as well as the development of his technique to realize one governmental program in the North Caroline (USA). The clinical and scientific issues of his work are not very strict.

Keywords: Autism, Psychoanalysis, T.E.A.C.C.H., Science, Ideology.


 

 

I

Contrariamente ao que pensamos, a transposição do autismo em direção à categoria das doenças genéticas e à categoria de deficiência não corresponde aos critérios clínicos ou científicos. A ciência aplicada é, de maneira pouco ou bastante significativa, submetida às leis do mercado. Nesse sentido, ela não é neutra e os postulados que a sustentam provêm de uma posição ética. Apesar dos esforços feitos para nos fazer acreditar no contrário, existe sim uma ideologia do autismo.

Assistimos a uma deriva que consiste em dar ao poder legislativo o lugar que corresponde ao clínico ou ao científico. Este domínio político sobre as práticas da saúde não é nada mais do que um privilégio dos estados totalitários. Isto é feito de maneira insidiosa, não através de leis que provêm de um estado de exceção, e sim de um trabalho sutil que tende a substituir esta configuração por uma panóplia de leis, produto de um trabalho realizado pelos grupos de opressão com interesses heteróclitos (AGAMBEN, 2003). Mas estes grupos são susceptíveis de ser galvanizados às finalidades políticas e econômicas, em função de um determinado contexto.

O que se passa atualmente na França é, dentro deste contexto, uma boa ilustração desse problema. Três eventos solidários ilustram esta tendência tão comum nos dias de hoje em todo o mundo. O primeiro é a proposição da lei de Daniel Fasquelle, deputado do partido de direita francês UMP3 e presidente do grupo de estudos parlamentares sobre o autismo, que visa à exclusão de toda prática, no âmbito da psicanálise, do tratamento e acompanhamento de autistas4. O segundo é o relatório da HAS5 sobre o autismo em que a psicanálise é excluída da lista de práticas recomendadas para o autismo6. Este relatório, longe de ser destinado às gavetas de um tecnocrata do ministério da saúde, tornou-se, em março de 2012, uma verdadeira cartilha de regras dos agentes de saúde que constituem o HAS. Ou seja, os processos de credenciamento das instituições susceptíveis de se ocupar de autistas deverão aplicar a recomendação ao pé da letra. Assim, uma instituição que reivindica a possibilidade de utilizar uma prática baseada na psicanálise ou que se recusa a aplicação de técnicas educativas preconizadas por tal relatório, terá o seu credenciamento. Esta recusa vem acompanhada de sanções no plano econômico e administrativo. O terceiro evento é a declaração de 9 de fevereiro de 2012 feita pelo então primeiro ministro francês François Fillon, que apresentou o Autismo como “A Grande Causa Nacional do Ano”7.

Como é comum nesse tipo de combate, os discursos passam, então, a lamentar o “atraso” da França neste âmbito. Esta fórmula busca acentuar uma suposta obsolescência das abordagens precedentes, incluindo a psicanálise, face às novas técnicas baseadas em provas ditas científicas. Ora, não é nesses termos que os problemas reais podem ser definidos. As técnicas educativas preconizadas para os autistas são tão velhas quanto o mundo. Peguemos o exemplo de Jean Itard, discípulo de Philippe Pinel e médico do extinto “Instituto de Surdos e Mudos” na França que, para conduzir o tratamento do célebre selvagem de Aveyron ao final do século XVIII (ITARD, 1994), se serviu de técnicas educativas. O mesmo serve para as terapias cognitivas que não são nada mais que uma versão pouco elaborada do comportamentalismo, significante que, com o passar do tempo, tornou-se bastante incômodo em função de seu glorioso passado pelo bloco soviético.

Este disfarce de modernidade se trata de uma estratégia destinada a impor uma corrente de pensamento em que o real interesse é de ordem econômica e ideológica. Digamos de passagem que, em seu discurso, François Fillon não se esforça para esconder tais dimensões das questões que foram levantadas8. Para uma melhor compreensão da dimensão política dos mecanismos de pressão então utilizados, apresentados como trabalho de modernização em nome da ciência, proponho fazer um apanhado histórico.

Uma das recomendações citadas pelo HAS francesa em seu relatório9 é o programa TEACCH. Seu caso ilustra muito bem o que se encontra por trás de um aparente passo científico. Vejamos mais de perto.

Eric Schopler, psicólogo clínico da Universidade de Chicago nos Estados Unidos, começou sua carreira profissional ao lado de Bruno Bettelheim. No entanto, ele se afastou rapidamente dele. O ponto de partida de sua reflexão é constituído por um desacordo sobre o lugar atribuído por Bettelhiem aos pais das crianças autistas10. Por conseguinte, a resposta à demanda dos pais pode ser considerada como a palavra de ordem da visão schopleriana do trabalho com autistas. Iremos verificar a maneira pela qual sua reflexão foi constituída para chegarmos à criação do grande programa de estado: TEACCH.

As teses de Schopler são opostas às teses desenvolvidas por Bettelheim. Ele contesta a explicação sobre o autismo proposta por Bettelheim e, consequentemente, sua atitude com relação aos pais e ao conjunto de concepções sobre o tratamento dos autistas. A explicação inicial do autor se situa no plano cognitivo. Em um artigo publicado em 1965 ele elabora uma teoria sobre a percepção e a memória com o intuito de situar aquilo que, segundo ele, falha nos autistas (SCHOPLER, 1965): os receptores. É desta forma que ele nomeia os órgãos do sentido. Eles podem ser classificados em dois grupos: os receptores de proximidade, que permitem a apreciação daquilo que se passa em sua volta, como o toque, o gosto e o olfato, e os receptores de distância, como a visão e a audição. Os primeiros são desenvolvidos particularmente durante os primeiros meses de vida, e já os segundos, somente alguns meses mais tarde, entre o sexto e oitavo mês.

Schopler explica a maneira pela qual a privação do amor materno não pode se encontrar na origem de um retardo no desenvolvimento, pois a conceptualização do indivíduo sobre o exterior e interior, necessária às relações interpessoais, não seria possível antes dos seis meses de vida. De acordo com ele, antes dessa idade, todo tipo de alteração do desenvolvimento pode ser explicado por uma falha no sistema de percepção (IDEM, p.329). Esta conclusão atesta, mais uma vez, que o autismo se caracteriza por uma alteração dos receptores de proximidade e que, consequentemente, ela existe desde o início da vida.

O papel atribuído aos pais está no âmbito da estimulação. A relação com os pais, diz Schopler, provoca mudanças fisiológicas que irão assegurar uma transição correta entre os receptores de proximidade e os receptores de distância. O que vale para as crianças normais pode também ser aplicado para os autistas. Dessa forma, a estimulação precoce dos autistas é necessária para suprir a deficiência sensorial. Schopler evoca certas experiências feitas com estímulos elétricos em que o único limite colocado seria o de evitar provocar pânico na criança.

Além disso, o autor pensa que a uniformidade dos problemas encontrados por Kanner11 não pode ser explicada pela patologia parental, ela deve corresponder a uma alteração sensorial. A privação, se ela existe, está no nível da estimulação (SCHOPLER, 1965). Esta explicação, à qual Schopler não retornou durante a sua carreira, constitui a matriz que determina a função de cada parceiro na gestão do tratamento do autismo. Chamamos a atenção para o fato de que ela não se baseia em trabalhos clínicos rigorosos ou em pesquisas científicas. Trata-se de uma simples hipótese.

 

II

Em 1969 Schopler publica um artigo destinado a contestar a ideia de que os pais estariam na origem do autismo de seus filhos. Vale a pena ressaltar que ele adere à indignação dos pais perante as teorias psicodinâmicas que explicariam a esquizofrenia e a psicose infantil (SCHOPLER, 1969). De alguma maneira, ele se torna o porta-voz da revolta desses pais, com uma etiqueta supostamente científica. Assim, sua posição em relação ao seu texto de 1965, citado anteriormente, se enrijece. Ao mesmo tempo, ele faz dos pais seus aliados, e não somente no que concerne ao tratamento das crianças autistas.

A falta de rigor científico de suas pesquisas12, especialmente se levarmos em conta que se trata de alguém que é bastante exigente no momento de criticar outras visões, só pode ser explicada pela grande intenção de desculpabilizar os pais, para que estes possam melhor aderir à sua causa. Em 1971 Schopler publica um artigo em que pretende apresentar os primeiros resultados de um programa de terapia do desenvolvimento13, colocado em prática por ele em 1966 com a participação dos pais de crianças autistas. Mais uma vez ele inicia seu trabalho criticando as demais tentativas terapêuticas que o precederam. No que concerne a Bettelheim, ele considera que sua terapia nada mais é do que uma verificação de seus postulados teóricos, o que ele chama de raciocínio circular (SCHOPLER; REICHLER, 1971, p.90). Ele critica, particularmente, o que ele chamou de parentectomy, ou seja, a separação com os pais considerada como a origem do problema.

Como alternativa, ele propõe seu programa que contém três objetivos: prevenção da psicose, aumentar o nível de adaptação entre a criança e sua família e, se possível, promover a recuperação da criança (IDEM, p.88). Claramente, os dois primeiros objetivos são direcionados à família, principalmente aos pais, deixando relegado ao último lugar os objetivos que concernem à criança. Schopler retoma os postulados do seu artigo de 1969 e continua a desenvolvê-los. Ele insiste de maneira explícita na ideia de apresentar os pais como vítimas da doença de seus filhos. A desorganização dos pais das crianças psicóticas, nos diz Schopler, é uma reação à desorganização psicótica de seus filhos. Para apagar qualquer traço de culpabilidade ele enuncia a tese segundo a qual a criança vem ao mundo com uma série de reflexos e de respostas biologicamente determinadas, que se desenvolvem de maneira relativamente independente com relação às experiências de aprendizagem, “como uma criança que nasce cega”. Os autistas sofreriam particularmente de um problema de comunicação e cognição. É importante precisar que, em seu texto, Schopler não faz uma distinção clara entre autismo e psicose infantil.

Mesmo que a causa do autismo permaneça desconhecida, nos diz o autor, é bastante provável que se trate de uma anomalia neurológica ou bioquímica no cérebro. Para sustentar sua afirmação, ele insiste, mais uma vez, na “normalidade” dos pais.

Para fundamentar este postulado ele faz um estudo. Os pacientes, escolhidos por amostragem, devem pertencer a famílias que não sejam fragmentadas, e em que os pais sejam voluntários e disponíveis. A criança deve ter um nível de desenvolvimento correspondente ao nível pré-escolar. O programa consiste em uma série de sessões de demonstração sobre a terapia. O objetivo é de que os pais se tornem “especialistas” no que se refere ao seu próprio filho autista (IDEM, p.93). Os pais são, então, considerados como terapeutas. É importante precisar que este estudo se refere apenas a um grupo de dez crianças e seus pais, sendo, então, um pouco difícil tirar conclusões gerais. Além do mais, os critérios de inclusão são bastante restritos e deixam de fora as famílias e crianças consideradas problemáticas. É fácil constatar a maneira pela qual, com o passar do tempo, uma hipótese como esta, que supõe a existência de uma alteração orgânica no autismo, sem nenhuma prova científica, é elevada à categoria de axioma.

Iremos citar alguns exemplos das intervenções dos terapeutas relatadas pelo autor: como fazer para que uma criança permaneça sentada na mesa, como dar uma palmada para esclarecer um comando ou como manter uma interação em caso de ausência da criança. As estratégias propostas giram em torno do reforço de uma conduta, seja pela repetição, seja pela correção ou por uma recompensa.

Em vários momentos, Schopler fala da necessidade de utilizar procedimentos de condicionamento quando a educação especial não traz o resultado esperado. As intervenções devem levar em consideração os estados e os níveis do desenvolvimento, o que não é sempre o caso, diz ele, das intervenções de condicionamento clássico (IDEM, p.98).

 

III

No entanto, é importante chamar a atenção do leitor para aquilo que parece interessar a Scholer. As famílias concernidas se organizaram para criar um núcleo local da National Society for Autistic Children14. Trata-se de um grupo de pais que promovem a criação de programas de educação especial dentro dos estabelecimentos públicos de educação. Uma de suas atividades consiste em pressionar o legislativo para obterem leis favoráveis a sua causa.

Ao mesmo tempo em que efetiva o trabalho científico, o autor organiza uma sólida rede de pais para modificar as leis a favor de seus projetos. Não é de estranhar que, neste contexto, ele acabe anunciando a possibilidade de que os autistas possam recuperar um desenvolvimento relativamente normal (SCHOPLER; REICHLER, idem, p.100).

Trata-se de uma afirmação tendenciosa, se levarmos em consideração o tamanho de sua amostragem, assim como o objeto de seus estudos e a complexidade da patologia em questão.

É graças a esta aliança que Schopler irá utilizar os pais como força de pressão para fazer com que o seu programa experimental seja promovido à categoria de programa de Estado. Trata-se de uma estratégia calculada, em que a criança autista é relegada a um segundo lugar. Nesta ordem de ideias, não é de espantar que em 1972, na Carolina do Norte, uma lei tenha sido promulgada para que o programa TEACCH fosse implementado.

No entanto, o que é surpreendente é a afirmação feita por Schopler no momento da publicação desta lei: “Se devemos conceber um projeto terapêutico para crianças autistas ou portadoras de déficits vizinhos baseando-se em nossa experiência clínica e nos resultados de pesquisadores, iremos nos deparar com uma proposta idêntica àquela da lei de 94-142” (SCHOPLER; REICHLER; LANSING, 1988, p.3). Formulação impressionante quando se supõe que suas experiências teriam estimulado a aprovação desta lei através das associações de pais de crianças autistas. Como se ele buscasse dar a impressão de que esta lei seria uma maneira de fazer com que o legislativo reconhecesse a qualidade de seu trabalho. Pode-se afirmar que, nesse momento, Schopler busca uma legitimidade sancionada pelas autoridades, como se a consistência científica de seus postulados não fosse suficiente.

A partir de 1988, Schopler introduz uma modificação semântica que chama a nossa atenção. Não encontramos mais a expressão terapia do desenvolvimento caracterizada nos artigos dos anos 1970 que passa a ser, doravante, substituída por estratégias educativas individualizadas (IDEM, p.6). Neste contexto, três prioridades são estabelecidas em função de eventuais perigos: aquelas que concernem à proteção da vida da criança; aquelas que concernem a sua manutenção na família, incitadas a controlar os comportamentos desviantes que causam problemas para os seus membros; e aquelas destinadas a permitir que a criança entre nos programas de educação especializada. Notemos que nenhuma dessas prioridades leva em consideração a dimensão subjetiva da criança autista.

As metas educativas são fixadas em médio prazo (entre três meses e um ano). Elas se dividem em duas categorias, quais sejam, aquelas relacionadas ao conteúdo e as relacionadas ao comportamento. O primeiro grupo é guiado pela seguinte questão: “Aonde queremos levar a criança?”, ou seja, uma questão que traduz, claramente, o interesse dos pais. Com relação ao comportamento, uma modificação é concebida caso ele se torne incômodo para a vida em família ou venha a interferir na aprendizagem (IDEM, p.45). Em todo caso, nos esclarece Schopler, não é necessário trabalhar vários problemas do comportamento de uma só vez.

Ele também faz uma crítica às técnicas de condicionamento operante, provenientes do behaviorismo. Baseadas em um sistema de recompensa e de punição elas negligenciam, de acordo com Schopler, as particularidades do nível do desenvolvimento da criança, enquanto que o seu reconhecimento permite o estabelecimento de um “sistema de reforço correto” (SCHOPLER et al., 1988, p.17) A novidade da proposta de Schopler com relação às técnicas em pauta reduz-se a uma questão de refinamento na avaliação do desenvolvimento. Dessa forma, as ferramentas pedagógicas são adaptadas em função de uma avaliação das performances do autista, o que pode ser considerado como um aperfeiçoamento da técnica, sem que possamos falar de uma mudança substancial. Esta ideia é confirmada por alguns autores, que não excluem a possibilidade de recorrer às técnicas em questão em casos específicos. Isto mostra que, no fundo, trata-se de concepções compatíveis que podem coabitar sem problemas.

A clínica usada por Schopler não faz, em um primeiro momento, a distinção entre o autismo e a psicose infantil. Em seus primeiros textos ele utiliza a definição de autismo proposta pela Sociedade Nacional para Crianças Autistas15. Trata-se de uma definição adotada por esta associação de pais de crianças autistas que pretendia obter o reconhecimento, pelo poder legislativo, do autismo como uma deficiência. Em um artigo publicado em 1987, Schopler opera uma mudança que deve ser levada em consideração (SCHOPLER; RUTTER, 1987). A primeira manobra consiste em diferenciar o autismo da psicose infantil. Sem se aprofundar em detalhes, no momento dessa distinção, ele acentua o fato de que três quartos dos autistas apresentam um retardo mental.

Esta diferença também é apresentada como argumento em favor da organicidade. Ela se torna a pedra angular da abordagem clínica proposta pelo autor. Dessa maneira, a clínica do autismo que nos é apresentada enfatiza o déficit cognitivo, deixando de lado as anomalias do comportamento que se encontram, segundo ele, na origem do amálgama com a esquizofrenia. Os eventuais desempenhos dos autistas em certos domínios ocupam, então, uma posição marginal.

Nesse sentido, não nos surpreende verificar a metamorfose que se opera na terminologia. A partir de então, Schopler nos fala de Transtornos Invasivos do Desenvolvimento. Porém, é importante mencionar a distinção feita pelo autor com relação a outras patologias caracterizadas por um déficit intelectual como o trissoma 21. Desta vez, o critério escolhido por ele é o de transtornos do contato social, normalmente ausentes nestas outras patologias caracterizadas por um déficit intelectual.

Além disso, o autor enfatiza os problemas da comunicação e os comportamentos estereotipados. Este conjunto de sintomas deve corresponder a uma patologia de base que poderá explicar as demais. Schopler está consciente da falta de especificidade das anomalias do cérebro que foram colocadas em evidência, o que, segundo ele, não coloca em causa o caráter orgânico do autismo. Diante desta dificuldade, é possível orientar os esforços em direção à definição de um déficit cognitivo principal que permite explicar a diversidade de distúrbios do autismo. Segundo esta perspectiva proposta pelo autor, a clínica é indissociável da avaliação psicométrica: podemos afirmar que, de acordo com ele, trata-se da mesma coisa. Para o autor, a avaliação constitui um pré-requisito para qualquer intervenção. Não podemos esquecer que ele se baseia em observações do comportamento e interdita qualquer explicação de eventuais mecanismos psicológicos (IDEM, p.102).

Ao longo dos anos 1980 a avaliação é aperfeiçoada. Alguns autores buscaram ir além de uma simples classificação nosográfica para ter acesso a uma pretendida concepção holística. Isto comporta três aspectos: o nível do desenvolvimento, a observação dos comportamentos e as entrevistas com os pais (SCHOPLER; REICHLER; LANSING, 1988).

É bastante claro que, em tal dispositivo de avaliação, o lugar dado aos aspectos patológicos continua sendo marginal. Estes são substituídos por um modelo centrado no desenvolvimento. Neste sentido, e como os autores não deixam de apontar, esta abordagem pode ser aplicada a diferentes tipos de deficiência. Além das considerações práticas que tal escolha supõe, é importante se perguntar sobre aquilo que fora deixado de lado. Evidentemente os diferentes tipos de patologia comportam uma problemática distinta, sem mencionar as particularidades de cada sujeito. Neste sentido, não existe uma explicação coerente destinada a dar conta de todos os distúrbios de linguagem e de suas especificidades no caso do autismo. O leitor tem a impressão de estar perante um inventário de distúrbios que nunca são articulados entre si.

 

IV

A instauração de um programa educativo deve respeitar um certo número de condições. Schopler critica a ausência de estruturação, o que permitiria a “livre expressão” da criança. Segundo ele, o quadro em que a educação se desenvolve deve ser bem estruturado, com o intuito de evitar um comportamento psicótico. Dessa maneira, a intervenção deve ser cuidadosamente preparada, assim como o local deve ser bastante confortável e isento de distrações. Também é importante que o momento das intervenções seja sempre o mesmo todos os dias. Certas conjunturas podem ser utilizadas em beneficio das práticas educativas como, por exemplo, realizar atividades antes da emissão de TV preferida da criança, ou antes do lanche. Isto facilita à criança habituar-se ao trabalho. Outro fator importante é a duração das sessões, que vai de acordo com a capacidade da criança; o ritmo de trabalho também deve ser adaptado em função da observação e da evolução do autismo.

Schopler, assim como outros autores, aborda a questão da função social dos pais e dos instrutores por meio de um conselho que confirma a quem o programa está realmente destinado: “Os pais têm o direito e a obrigação de decidir dentro de um vasto limite o que tange a seu estilo de vida. Eles estão ajudando a criança a se adaptar a seu próprio estilo de vida” (SCHOPLER; RUTTER, 1987, p.157). O projeto da criança é subordinado ao projeto dos pais. Dentro desta perspectiva, os pais são promovidos à categoria de “melhores especialistas em seus filhos”, o que lhes assegura a prioridade em relação aos instrutores, caso eles não estejam de acordo com estes em algum momento.

Estes autores não negligenciam a possibilidade de uma falta de consenso entre os pais e as crianças. Caso não haja acordo, o consenso é então imposto pela Lei 94-14216. Isto confirma a existência de uma pirâmide bastante hierarquizada na qual os primeiros ocupantes possuem um lugar privilegiado. A criança se encontra ausente deste processo. Em nenhuma circunstância a sua opinião parece ter importância. Seus interesses e seus desejos não são levados em consideração. A criança autista não é considerada como um sujeito íntegro, e sim como um objeto de cuidados.

 

V

O TEACCH é um programa de Estado. Para ser reconhecido como tal foi preciso percorrer um longo caminho. Falamos bastante sobre o interesse que Schopler dispensava aos pais das crianças autistas. Independente do papel que eles possam ter no tratamento das crianças autistas, o autor se interessou particularmente pela capacidade deles em se organizarem para pressionar o legislativo, para obter, assim, uma legitimidade sancionada pela lei.

Deste modo, vimos a maneira pela qual, desde o início, eles se organizaram em uma associação, a NSAC (Autism National Society for Autistic Children)17, e como eles participaram ativamente da gestão. O Journal Autisme and Developmental Disorders18, do qual Schopler é editor, publica regularmente artigos escritos por pais de autistas. Assim, além de suas preocupações científicas, Schopler se interessa também pela maneira de legitimar e de divulgar suas ideias com o apoio da lei. Tal posição pode explicar, em parte, a veemência com que ele ataca as demais correntes que tratam do tema, particularmente Bettelheim.

A manobra foi eficaz. Em 1975 uma lei de direito público, conhecida como 94-142, sobre a educação de pessoas com deficiência, foi votada. Ela reconhece, então, o autismo como distúrbio do desenvolvimento. O conceito de distúrbios do desenvolvimento (Developmental Disabilities) havia sido aprovado pelos legisladores em 1970. No entanto, ele se refere a somente três patologias: a epilepsia, o retardo mental e a paralisia cerebral. Para que o autismo pudesse fazer parte deste grupo, era preciso que ele preenchesse um certo número de condições. A mais importante entre elas situa-se na origem neurológica compartilhada com outras patologias. Mary Akerley, antiga presidente e membro da NSAC, relata esta guerra travada entre 1970 e 1975 (AKERLEY, 1979). Toda essa campanha foi organizada e financiada pela NSAC.

É legítimo questionar as implicações dessa “exigência” política, assim como as crenças dos pesquisadores e dos clínicos. A veemência dos autores americanos na defesa do caráter orgânico do autismo pode testemunhar isto.

Se as convicções clínicas e científicas podem explicar em parte a importância de tal causa, os aspectos econômicos também não podem ser negligenciados. Os programas de Estado para a educação de crianças portadoras de deficiência possuíam, em 1973, um orçamento de 37,5 milhões de dólares. Em 1976, após a homologação da lei, tais recursos atingiram 100 milhões e, em 1979, os números chegaram a 800 milhões de dólares. Ou seja, em um espaço de seis anos, a parcela do orçamento público destinado a esses programas foi multiplicada por vinte.
Um dos argumentos invocados em primeiro plano para obter o crédito do Estado é o da diminuição dos custos devido à tendência à desinstitucionalização, que começa com o apoio educacional de escolas especializadas ou não especializadas. Além disso, os programas como o TEACCH, muitas vezes, recorrem aos voluntários, incluindo os pais, para aliviar os custos do tratamento.

De acordo com esta lógica, não é surpreendente ver a maneira pela qual Schopler, sempre próximo aos pais, vai se referir a eles como consumidores (consumir) do produto da pesquisa profissional. O pesquisador se torna um prestador de serviço encarregado de assegurar o conhecimento no longo prazo, os programas de desenvolvimento e a política social. Sem deixar de lado que existem consumidores com demandas que esperam uma resposta.

 

***

O percurso analisado neste artigo demonstra as dimensões políticas e econômicas de um programa em que os fundamentos científicos permanecem bastante fracos. Além disso, o HAS não parece indiferente a isto. Ele classifica o programa TEACCH como nível C, ou seja, “baixo nível de evidência”, o que, todavia, não os impede de recomendá-lo19.

Mas, na realidade, isto permite que o problema seja abordado de outra maneira. O que se encontra em questão não é a ordem de uma suposta cientificidade, e sim uma posição ética. Mais especificamente, uma posição ética perante o real.

O autismo, assim como os sujeitos autistas, suscita a questão do real na clínica. Tal dimensão do real aparece, a partir deste ponto de vista, como particularmente complexa. A solução pela via da facilidade consiste em contornar esta questão com a ajuda de uma astúcia fecunda, se pensamos nas questões políticas aqui evocadas. A aliança com os pais, escolha feita por Schopler, é um paradigma.

Mas sob o pretexto de aliviar uma culpabilidade dos pais, hipoteticamente acentuada pela psicanálise, alguns dispositivos, como o programa TEACCH, chegam a escamotear o verdadeiro problema. A culpabilidade, extraída do campo da linguagem, só pode se petrificar, e continuar sob a barra do inconsciente. Quais são as vias escolhidas pelo inconsciente para que se contorne o recalque? É bastante provável que o lugar de objeto onde tais programas situam a criança autista exista por alguma razão.

o entanto, não recuar perante o real do sujeito em sua dimensão de linguagem, é o que caracteriza a posição da psicanálise. Desta ética se deduz um tratamento diferente dos autistas e, com ela, a culpabilidade dos pais. Este é a verdadeira questão: uma ética governada pela ideologia da rentabilidade, ou uma ética que consiste em enfrentar o real da clínica do parlêtre20.

 

Referências

AGAMBEN, G. Etat d’exception, Homo Sacer. Paris: Seuil, 2003, p.145.         [ Links ]

AKERLEY, M. The Politics of Definitions. Dans, Journal of Autism and Developmental Disorders, v.9, n.2, 1979, p.221-31.         [ Links ]

ITARD, J. Victor de l’Aveyron. Paris: Allia, 1994.         [ Links ]

SCHOPLER, E. Early infantile autism and receptor processes. Dans, Archives of General Psychiatrics, v. 13, Oct./1965.         [ Links ]

SCHOPLER, E. Early infantile autism and receptor processes. Dans, Archives of General Psychiatrics, v.13, Oct./1965, p.334        [ Links ]

SCHOPLER, E. Thought disorders in parents of psychotic children. Dans, Archives of General Psychiatrics, v. 20, Fev./1969.         [ Links ]

SCHOPLER, E.; REICHLER, R. Parents as cotherapists in the treatment of psychotic children. Dans, Journal of Autism and Childhood Schizophrenia, 1971, v.1, n.1.         [ Links ]

SCHOPLER, E., RUTTER M. Autism and pervasive developmental disorders: concepts and diagnostic issues, dans Journal of Autism and Developmental Disorders, v.17, n.2, 1987, p.159-186.         [ Links ]

SCHOPLER, E.; REICHLER, R.J.; LANSING, M. Stratégies educatives de l’autisme. Traduction C. Milcent. Col. Médecine et Psychothérapie. Paris: Masson, 1988. http://www.has-sante.fr/portail/upload/docs/application/pdf/2012-03/recommandations_autisme_ted_enfant_adolescent_interventions.pdf. Acesso em: 18/07/2012.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
27 Rue du Petit Musc
75004 – Paris/França
E-mail: menender@wanadoo.fr

RECEBIDO: 17/08/2012
APROVADO: 23/08/2012

 

 

Sobre o Autor

Ramón Menéndez
Psiquiatra. Psicanalista. Membro da APJL (Association de Psychanalyse Jacques Lacan). Doutor em Psicopatologia pela Universidade de Toulouse, França.

 

 

1 Título Original: “L’autisme: Question de science ou d’idéologie?” Primeira versão do artigo publicada na revista Psychanalyse, 2012/2 n.24, p.51-63. Toulouse: Érès. O artigo foi modificado pelo autor para que algumas questões políticas fossem apresentadas de forma mais precisa aos leitores brasileiros.
2 TEACCH – Treatment and Education of Autistic and Communication Handicapped Children: Tratamento e educação para crianças com autismo e deficiência da comunicação.
3 N.T.: UMP – Union pour un mouvement Populaire: União por um movimento popular.
4 http://www.gouvernement.fr/gouvernement/daniel-fasquelle-il-faut-sortir-l-autisme-du-moyen-age
5 http://www.has-sante.fr/portail/jcms/c_953959/ N.T.: HAS – Haute Autorité de Santé: Alta Autoridade da Saúde, órgão francês de autoridade pública destinado à manutenção do sistema de saúde e da qualidade dos tratamentos oferecidos em beneficio dos usuários.
6 Esta decisão suscitou a indignação e reação da comunidade psicanalítica na França. Vários eventos, petições e publicações vêm sendo organizados por diversas associações e escolas de psicanálise para discutir a questão. Porém, tal decisão vem trazendo dificuldade para os psicanalistas que atuam em instituições que se encarregam de crianças autistas e, consequentemente, para a psicanálise.
7 Houve uma grande campanha que, entre outros propósitos, associou o tratamento e acompanhamento de autistas a práticas educativas.
8 http://www.gouvernement.fr/premier-ministre/francois-fillon-notre-combat-pour-l-autisme-a-toute-sa-part-dans-nos-politiques-pub
9 http://www.has-sante.fr/portail/upload/docs/application/pdf/2012-03/recommandations_autisme_ted_enfant_adolescent_interventions.pdf
10 Sobre esse ponto, a psicanálise ainda porta o fardo de ser uma prática que nunca produz unanimidade na comunidade analítica, mas também não é objeto de uma crítica suficientemente construída.
11 N.T.: Psiquiatra infantil, foi o primeiro a propor uma descrição clínica do autismo infantil.
12 Sobre esse assunto ver o exemplo do artigo de SCHOPLER e al. Do Autistic Children Come from Upper-Middle-Class Parents, em Journal of Autism and Developmental Disorders, v.9, 1979, p.145, no qual a qualidade do tratamento dos resultados é bastante duvidosa.
13 Developmental therapy.
14 Associação Nacional para Crianças Autistas.
15 National Society for Autistic Children.
16 Trata-se de uma lei do Estado da Carolina do Norte que oferece um suporte jurídico ao programa TEACCH.
17 N.T. Sociedade Nacional para Crianças Autistas.
18 N.T. Jornal sobre o Autismo e Distúrbios do Desenvolvimento.
19 Nesta classificação, a psicanálise aparece na rubrica AE (ausência de estudos).
20 Ser falante.