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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.39 Belo Horizonte jul. 2013

 

 

A primeira dor e a última dor

 

First pain and last pain

 

 

Odimariles Maria Souza Dantas

Círculo Psicanalítico de Pernambuco
Universidade Federal de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No decorrer do texto a autora se propõe a uma reflexão sobre a questão da dor. Qual seria a primeira dor que o homem sentiria ao longo de sua vida? E a última dor? Nesse percurso entre o nascimento e a morte, passando por momentos anteriores e posteriores a esses dois marcos da vida humana, a autora lança um olhar sobre a angústia originária, do ponto de vista freudiano e levando em consideração uma separação mais arcaica, liga essa vivência com o real lacaniano, porque sem experiência, sem verbo, sem linguagem. Faz ainda referência à importância dos significantes desses marcos para os sujeitos envolvidos no evento com seus próprios desfechos, suas alegrias e suas lágrimas, conforme a situação inerente a cada acontecimento, não esquecendo o sujeito que chega e o sujeito que parte, objetos diretos do estudo em questão.

Palavras-chave: Dor em psicanálise, Dor física, Recém-nascido, Morte.


ABSTRACT

Throughout the text the author proposes a reflection about the question of pain. What would be the first pain man fells in his life? And which would be the last pain? In the comes and goes from birth to death passing by moments that are anterior and posterior to those milestones of human life, giving a look on the worry originated from the Freudian standpoint, going to a more archaic separation, liking this experience with the Lacanian concept of "the Real", because without experience, without voice, without language. The author also makes reference to birth and death moments and their meaning for subjects involved in the event, with their own outcomes, happiness, tears, according to the situation inherent to each occurrence. Not forgetting the subject that arrives and the one that goes as direct objects of this study’s discussion.

Keywords: Pain in Psychoanalysis, Physical pain, Newborn, Death.


 

 

Uma reflexão de vida

Para que seja entendido como surgiu o desejo de discorrer sobre o assunto: penso em acidentes e me pergunto qual o tamanho da dor de quem se encontra diante da possibilidade de morte em um momento como esse. Continuando com a reflexão, ficou evidente que essa questão não tem o menor valor, porque essa seria a última dor, como qualquer outra última, seja de um infarto do miocárdio (IM), do rompimento fatal de um aneurisma cerebral, de qualquer morte violenta ou súbita, de um mal qualquer, é a dor que só sabe quem passou por ela.

Quando comecei a procurar textos e artigos sobre dor e psicanálise, dor e psicologia, encontrei o livro de Juan-David Nasio (2008) sobre a dor física, que muito me interessou por apresentar alguns conceitos que, acredito, merecem ser discutidos. Nasio refere três fases da formação da dor: fase da ruptura ou dor da lesão, fase da comoção ou dor da comoção, fase da reação defensiva do eu ou dor de reagir. Quando descreve a fase da comoção ele relata: “...tenho dor, significa que circunscrevo e afinal enfrento a dor. Mas logo se eleva do âmago do ser, uma outra dor, bem diferente, essencial e profunda. Essa dor, eu não a possuo, é ela que me possui: ‘Sou dor’” (NASIO, 2008, p. 19).

Perdida nessa viagem através da subjetividade, me pergunto: qual será a primeira dor? Quando o ser humano tomou consciência do seu primeiro sofrimento? E a resposta não parecia ser mais óbvia: ao nascer, é claro! Ou não!

A dor: “o mais filosófico dos problemas, a mais semiológica das questões”, eis aí um dilema, desse conceito-limite da psicanálise e a misteriosa função que ele preenche (HORN, 2001).

O International Association for the Study of Pain (IASP) (2009) define dor como a “Experiência sensitiva e emocional desagradável associada ou relacionada a lesão real ou potencial dos tecidos. Cada indivíduo aprende a utilizar esse termo através das suas experiências anteriores” (IASP apud CARVALHO, 2009, p. 322).

Voltando ainda a Nasio (2008), ao responder a seguinte pergunta: Por que o senhor, na condição de psicanalista se interessa pela dor? Entre outras colocações, ele diz:

[...] Quando examinamos a literatura psicanalítica, e até mesmo psicológica, vemos que a questão da dor é muito pouco abordada, ainda que recentemente tenhamos assistido a uma revitalização da questão. Os mestres da psicanálise, como Freud, Lacan ou Melanie Klein, raramente retratam a dor. Freud só faz referência a ela em dois ou três artigos, ao longo de uma obra cuja produção estende-se por 40 anos! (NASIO, 2008, p. 49).

O recém-nascido mostra como primeiro ato de sua vida o choro/dor? Ato físico, real. Acredita-se então que, fisiologicamente, o início do processo da respiração com a entrada de ar nos pulmões, promovendo a dilatação dos alvéolos seja um processo doloroso, “A passagem da vida intrauterina para a extrauterina constitui, sem comparação, o maior impacto fisiológico (e também psicológico?) que sofre o organismo em toda sua vida” (PERNETTA apud SOUZA, 1976, p. 1).

Essa adaptação, ou melhor, essa saída da vida simbiótica para uma vida autônoma é considerada como um recalque, fenômeno que ficará registrado como uma marca indelével definida por Freud, como angústia originária, angústia de separação, uma vivência não traduzida em experiência, porque sem linguagem, sem verbo, estamos diante do real lacaniano. Todas as outras angústias que o indivíduo carregará ao longo da vida são sequenciais à angústia originária (ROCHA, 2000). Em complemento, Freud (1926) referencia uma primeira dor, como a dor de uma arcaica separação ocorrida antes mesmo do estágio embrionário, em uma fase pré-individual e codificada na memória da espécie.

Os avanços tecnológicos no campo da neonatologia evoluíram de tal forma que o nascimento, sob meu ponto de vista e refazendo o raciocínio inicial, passaria a ser a primeira grande dor antes de o homem ver a luz do mundo, e não a primeira dor. Em um seminário proferido pelo Dr. Paul Ranalli (1997) sobre o tema “dor fetal”, ele diz que o feto pode sentir dor na vigésima semana de vida intrauterina, o que considera uma estimativa conservadora e atrasada, mas cientificamente sólida, pois os elementos do sistema espino talâmico começam a se desenvolver em sete semanas, podendo obter um grande desenvolvimento entre 12-14 semanas. Portanto, alguma percepção de dor é provável, continuando seu crescimento até o terceiro trimestre.

O psicanalista Otto Rank (1884-1939), após longo período de observação de casos extremos de angústia, notou que tais indivíduos reagiam de modo bastante semelhante a certas reações que os fetos teriam durante o nascimento, o que o levou a afirmar que o trauma de nascimento seria a fonte de toda angústia que o indivíduo sentirá ao longo de sua vida. Ao se deparar com situações de mudança, separação, etc., semelhante aos sentimentos vividos durante o nascimento, o indivíduo por meio de tais situações traria à tona todas as lembranças originadas pelo trauma do nascimento, criando, deste modo, sentimentos de temor em relação à vida e a morte.

Portanto, passo a considerar o nascimento a primeira grande dor, aquela que, segundo Freud (1926), é causadora do recalque originário. Primeira grande dor porque como vimos anteriormente, o feto tem aptidões para sentir dor física muito precocemente. Desconhecemos ainda métodos avaliadores dos comprometimentos psíquicos, ocasionados por qualquer dor que possa ter acontecido na vida intrauterina ou mesmo de que forma os transtornos emocionais maternos possam interferir no a posteriori do indivíduo.

Assim como Freud fala de um recalque originário, Nasio (2008) em seus estudos propõe uma dor primordial e intemporal que volta incessantemente no presente, com a função de comunicar todas as outras, a marca do desprazer intolerável que sentimos quando estamos doentes ou aflitos. Assim como a experiência é singular para cada ser que a vivenciou, assim também o vivido de uma dor é sempre o vivido da própria dor.

E a ultima dor? Costa (2006) diz:

Nascer, morrer e desenvolver é o ritmo biofisiológico dos seres vivos que demarcam sua existência no mundo. Morrer não é necessariamente um destino, porém viver é um dom. Assim, a morte não é uma saqueadora da existência nem a vida é uma provisoriedade da morte. Estar na vida é ter a morte como ausência-presente, e morrer pode ser uma sábia conclusão da vida (COSTA, 2006, p. 169).

Morrer e viver são, portanto, uma dialética da nossa existência. Ou, no dizer de Júlio Cabrera (2006), o nascimento seria o engano de pensar que a vida seria possível com aquele que nasce, e o homicídio seria o engano de que a vida seria possível sem aquele que morre.

Por que nós, seres humanos, fugimos ou vivemos escamoteando esta verdade? Por que o medo da morte? Será a morte um acontecimento fatal e radical? A morte tem sentido ou é um absurdo da existência? O empenho de uma vida substantiva significa encontrar as razões para o viver que é, na verdade, dar sentido ao morrer.

O psiquiatra inglês Collin Murray Parkes (2007), ao ser questionado sobre qual o pior tipo de morte para quem fica, na escala da dor, disse:

O que implica sentimentos de culpa pode ser considerado o pior. É o caso, por exemplo, do pai que vê o filho morrer de um acidente de carro e acha que poderia tê-lo socorrido ou de uma pessoa que se sente responsável pelo suicídio de outra, em segundo lugar, bem próximo do primeiro, eu diria que estão as mortes por assassinato (PARKES, 2007).

A verdade é que toda morte traz em si uma perda e um luto correspondente que, dependendo de como será elaborado, poderá fortalecer ou não o sujeito, no confronto de outras perdas. Abdiquemos dessas abstrações. A reflexão que estou aqui me propondo é sobre a primeira grande dor e a última dor, tendo como representações a vida e a morte, o princípio e o fim (ou não). Tanto uma quanto outra remetem ao real lacaniano, uma vez que são experiências não nomeáveis, porque ninguém detém conhecimento sobre nenhuma delas; a primeira porque calada no inconsciente não se faz representar porque não verbalizada, e a última porque ninguém voltou para contar.

Por outro lado, na primeira questão (vida), alegria, amor, exaltação à criação. Uma nova estrela na constelação familiar (esqueçam as exceções), presentes, sorrisos, festa, lágrimas e risos de emoção.

A última dor (morte), um momento mais soturno, pessoas presentes vêm se despedir de quem já está ausente. Sem festa, presentes ou alegria (é a regra, para não dizer esqueçam as exceções). Choro de lamentos, dor da perda. Comentários e sussurros sobre a vida de quem partiu tendo como simbolismo a morte, carregada de incógnitas, para quem fica é claro. Dessa vez deixando outra marca indelével, destinada a quem fica, a um outro onde firmará uma impronta, que se calará no inconsciente desse Outro como objeto perdido, não primevo, mas que se somará a tantas outras perdas acopladas no interior do homem e as que ainda virão.

Encontramos algumas citações em Freud (1991) e em (1966), por exemplo, o texto de Lacan que se refere à dor e ao gozo:

A dor física é a mais pura manifestação do gozo [...] pois o que chamo de gozo, no sentido de que o corpo se experimenta, é sempre da ordem da tensão, do forçamento, da defesa e até mesmo da façanha. Incontestavelmente, há gozo no nível em que começa a aparecer a dor, e sabemos que é somente nesse nível da dor que se pode experimentar toda uma dimensão do organismo que, de outra forma, permanece velada (LACAN, 1966).

Não seria possível em poucas palavras esgotar tão instigante e profundo tema. Não poderia ter essa pretensão. Portanto, deixo aqui um ponto de partida para novas reflexões. Novos estudos devem ser conduzidos, de forma que possamos descobrir nas entrelinhas, no não dito das obras dos grandes mestres da psicanálise e em estudos mais recentes, substratos que aprofundem a fundamentação desses conceitos.

 

Referências

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COSTA, J. A. Sabor, saber e sabedoria: reflexões sobre temas do cotidiano. Passo Fundo: IFIBE, 2006, p. 169.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Odimariles Maria Souza Dantas
Rua Antônio de Castro, 150/1702 - Casa Amarela
52070-080 – Recife/PE
E-mail: odimariles@gmail.com

Recebido: 15/03/2013
Aprovado: 03/04/2013

 

 

SOBRE A AUTORA

Odimariles Maria Souza Dantas
Psicanalista em formação no Círculo Psicanalítico de Pernambuco (CPP). Docente em Pediatria na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).