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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.39 Belo Horizonte jul. 2013

 

 

Isso se transmite de maneira atravessada, a psicanálise1

 

It is transmitted so crossed, psychoanalysis

 

 

Simone Wiener

Association de Psychanalyse Encore

Tradução: Elisa Rennó dos Mares Guia-Menendez

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A singularidade da transmissão no campo da psicanálise passa por outras vias bem diferentes das do ensinamento, da educação e da filiação. Verificamos que existe um antagonismo entre uma tentativa de organizar uma transmissão racional, estabelecida, universitária e alguma coisa que chamamos de “atravessada”. Lacan buscou evitar um modo de transmissão preestabelecido, e o dispositivo do passe foi a proposição elaborada por ele — com o intuito de poder ter acesso a esse saber que concerne à transmissão — e que se constitui de maneira atravessada. A palavra passe evoca uma trans-formação, um processo que passa de um estado a outro. Ele foi revisitado por Lacan diversas vezes, e tais retornos dizem justamente dessa dificuldade em conceber a transmissão. Podemos dizer que existe uma forma de errância na transmissão e que a psicanálise se transmite de maneira atravessada.

Palavras-chave: Transmissão, Passe, Psicanálise, Errância, Clinicidade.


ABSTRACT

Psychoanalytical transmission is rather singular, a quite different of teaching, of education and affiliation. We observed that there is an antagonism between an attempt to organize a rational academic established transmission and something that we call “traversed”. Lacan has always tried to avoid a predetermined mode of transmission, and the pass is one proposition elaborated by him – with the intention of access this knowledge concerning the transmission, which is constituted in a crossed way. The word pass evokes a trans-formation, a procedure that passes from one state to another. It has been revisited several times by Lacan, and these returns are clearly related to the difficulty of conceiving transmission. We may say that there is one sort of wandering in the transmission, that’s the reason why psychoanalysis is transmitted in a traversed way.

Keywords: Transmission, Pass, Psychoanalysis, Wanderings, Clinicité.


 

 

Isso se transmite, de maneira atravessada, a psicanálise! Irei começar meu trabalho contando uma anedota que ilustra uma maneira de transliteração entre línguas.

Nos anos 1920, um período em que a imigração europeia em direção à América era bastante considerável, um barco de alemães se aproximava da cidade de Nova Iorque. Eles se aproximavam da ilha Ellis (em inglês Ellis Island) onde eram esperados pelo serviço de imigração. Eles temiam não ser admitidos, tinham medo de ser deportados! Então, um sujeito diz ao outro “Escute, ouvi dizer que neste momento, eles não apreciam muito os alemães, mas que os poloneses entram com facilidade. Então, você vai dizer que você se chama Dialozinsky, pois é um nome que soa como polonês”. “De acordo”, responde ele, “vou fazer dessa maneira”. Eles chegam à Ilha Ellis, e o serviço de imigração sobe a bordo do navio: “Bom dia, vocês se encontram em território americano, como vocês se chamam?”. O sujeito infelizmente havia esquecido o nome polonês e diz em alemão “Shonvergessen”, que significa: já esqueci. O senhor do serviço de imigração responde: “Bem-vindo à América, Mr. John Ferrgusson”.

Mesmo os nomes são transmitidos de maneira atravessada. Então, qual é a singularidade da transmissão no campo da psicanálise e quais são as suas errâncias? Primeiro ela se encontra ligada a aquilo que tropeça, a algo que escapa, aos rebus, aos atos falhos. Ela passa por outras vias bem diferentes das do ensinamento, da educação e da filiação.

Existe um antagonismo entre uma tentativa de organizar uma transmissão racional, estabelecida, universitária e alguma coisa que eu chamo de “atravessada”. Esse atravessado, se recapturado, constituirá um impasse lógico, em que os efeitos não poderão deixar de aparecer. O que supõe então uma transmissão? Trata-se de transmitir “um saber da psicanálise”, que retornaria a um saber universal, um saber que se pode adquirir? Antes de mais nada, a psicanálise não seria uma verdade singular, meio dita, que não pode ser adquirida através de um caminho correto? Quanto ao saber da prática, o saber-fazer (savoir-faire), ele poderia ser transmitido através de uma escola, como se tratasse de uma formação como outra qualquer?

Lacan recusou a formação didática versão IPA por se tratar de uma espécie de modelo preestabelecido de análise. Ele se opôs à perspectiva de um fim que passasse pela identificação do analista como pai. Trata-se de correr um risco lógico, de uma reprodução idêntica de um determinado tipo de prática. É exatamente o modo de transmissão que Lacan queria evitar. Ele buscava outro dispositivo capaz de esclarecer tais passagens. O passe foi a proposição elaborada por ele, com o intuito de poder ter acesso a esse saber que concerne à transmissão. De fato, a palavra “passe” evoca uma trans-formação, um processo que passa de um estado a outro. Ele foi revisitado por Lacan diversas vezes. Tais retornos ao passe dizem justamente dessa dificuldade em conceber a transmissão. Por essa razão, podemos dizer que existe uma forma de errância na transmissão.

Mas primeiramente, gostaria de precisar, de maneira mais adequada, o que pretendo evocar nesse vasto campo da transmissão. As questões que não são as mesmas, visto que se trata de um saber que provém de uma experiência inconsciente (o saber de referência para Lacan) ou de um saber constituído, textual, como a metapsicologia ou a topologia.

Ao que concerne a experiência do inconsciente: isso se transmite de maneira atravessada pois o isso nos remete ao inconsciente no sentido freudiano. O inconsciente freudiano foi fundado em fenômenos que se dão de maneira atravessada: a língua que diz outra coisa — o ato que é falho — os esquecimentos que não se tratam de simples erros que carregam em sua origem algo aleatório, e sim trata-se de algo atravessado, os equívocos que indicam uma outra lógica, a do inconsciente. As experiências do atravessado, essas do inconsciente, como poderíamos conceber o fato de que elas possam se transmitir de maneira direta, de uma maneira endireitada? O problema é que, uma vez que as tornamos endireitadas, perdemos o coração dessa experiência.

Lacan evoca de maneira precisa aquilo que pode ser escutado de uma maneira atravessada pelo analista. Irei citá-lo:

O parternário, ali, o analisante, ele emite um, um pensamento, e nós podemos ter um outro pensamento, completamente diferente, o que é um feliz incidente, do qual brota uma luz; e é justamente ai que uma interpretação pode ser produzida, ou seja, devido ao fato de nós portarmos uma atenção flutuante, de escutarmos aquilo que foi dito, por vezes, simplesmente em função de uma espécie de equívoco, que é — dizer de uma equivalência material. Percebemos que aquilo que ele disse — nós o percebemos porque o sentimos – o que ele disse poderia ser escutado de maneira atravessada. E é justamente por ser capaz de escutar de maneira atravessada que permitimos ao sujeito perceber de onde seus pensamentos, sua própria semiótica, de onde ela emerge (LACAN, inédito, lição de 11 jun. 1974).

Escutar tudo de maneira atravessada é, então, poder se submeter à possibilidade do equívoco de lalangue. É nesse ponto que vejo a necessidade de atopia, de instabilidade. E sair dessa forma de instabilidade seria, de certa maneira, abandonar a experiência da pluralidade semântica das palavras, do equívoco da lalangue.

A questão seria colocada de outra maneira caso se tratasse de uma transmissão que se dirige a um saber que já se encontra constituído. Por exemplo, a transmissão da clínica tal qual Erik Porge (2009) desenvolve, entre outras, em seu livro sobre essa questão. Ele insiste justamente nesse ponto, que não podemos separar a clínica do método pelo qual ela se transmite. Não existem fatos clínicos brutos. Mesmo o sonho não pode ser transmitido fora do campo das palavras, que compõe o recito como se não se tratassem de imagens.

A clínica é trabalhada a partir da literatura, da letra, do estilo que pode constituir agenciamentos da transmissão. Eles permitem a configuração da heterogeneidade estrutural, necessária para uma transmissão. Erik Porge acentua também a questão do estilo, aquilo que ele chama de “clinicidade” do estilo, que atenua a oposição teoria/prática e permite uma abordagem singular da clínica.

A clinicidade do estilo se sustenta em sua dimensão de endereçamento a um outro, é incluído por ela. É a famosa frase de Buffon: “O estilo é o homem”, à qual Lacan acrescenta em sua obra Escritos: “a quem nos endereçamos ”(LACAN, 1998, p. 9). A clinicidade do estilo se atém também ao fato de que ela permite a intervenção da dimensão da escritura por onde passa a singularidade do sujeito.

Outra dificuldade da transmissão da clínica está ligada a uma temporalidade inerente ao trabalho analítico. O ato analítico é fundado no prazo, no suspenso e nas sanções que o acompanham. Esses elementos temporais reforçam a divisão daquilo que se transmite.

Essa forma de transmissão da clínica é diferente da trabalhada no âmbito universitário. (Seria interessante trabalhar a disparidade a partir dos quatro discursos.) A relação analítica não se trata de uma relação de aluno e professor, nem de mestre e discípulo. Cabe ao analista saber escutar o que não se sabe. O analista deve ser capaz de se desconcentrar, de surpreender-se pela novidade, o inaudito, que ocorre em uma psicanálise.

Para retomar a questão do intransmissível do saber do inconsciente. O tropeço, o lapso que ocorrem no curso de uma frase não são previsíveis. O psicanalista é como um saber homogêneo ao não-todo, ou seja, que não pode se acumular-se ou se constituir como uma unidade coerente, um todo unificado que o sujeito poderia adquirir.

Uma observação: me parece que a transmissão se encontra, de certa forma, na mesma posição que o desejo na análise. Só podem ser colocados em prática a partir de uma aposta. Emergem somente a partir de um algo a mais. Se abordamos a questão da transmissão de maneira direta como uma linha de mira, vamos gerar um impasse, de tal forma que a tornaremos impossível.

Lacan se mostrava preocupado com tais questões sobre a transmissão. É nesse contexto que ele propõe o passe. Para essa proposição, que continua sendo uma proposição, como o próprio nome indica, ele busca estabelecer uma ferramenta de transmissão que se constitui de maneira atravessada. Existe de fato uma tentativa, um work in progress, e não um processo concluído, definitivo. Em um primeiro tempo, em comparação com os demais critérios de transmissão existentes, ele existirá de maneira atravessada. O passe, enquanto dispositivo, inverte as coisas; ele as constrói em vários níveis, de maneira atravessada. Ele se afasta da concepção binária do casal analista-analisante em vigor na versão clássica da análise didática, em que tudo se passa como se um representasse o outro. Ele atrai a atenção em direção a um ternário em que o passante é encarregado de testemunhar o passador. Este, primeiro, irá relatar o seu testemunho a um júri. Parece-me importante ressaltar que aquele que fala de sua análise é o analisante, e não o analista.

Mesmo que o passe funcione através do um a um, em sua concepção, ele supõe um coletivo, pois ele se constitui em diversos níveis, apoiando-se nessa heterogeneidade. Ele se constitui uma chicana com o passante, os passadores e o cartel ou o júri. Cada elemento faz parte do processo, mas sem constituí-lo, sem possuir a chave fundamental.

Este processo não é um processo cristalizado. O passe é objeto de remanejamentos, às vezes feitos por Lacan e por escolas que tentam essa prática. O que quer que pensemos, que ele procure a ilusão ou a desilusão, ele dá forma a uma tentativa de transmissão da psicanálise lacaniana.

Lacan emite uma primeira versão do passe em 1967. Nesse texto, ele concebe o passe para encontrar soluções para o fim do momento analítico e para aquilo que estaria em questão na passagem de uma das duas funções à outra, da função do analisante à função do analista. Seria, mais ou menos, como um desfecho de uma análise, como se o passe fosse uma espécie de redito, em outro espaço, daquilo que se desenrola ou então daquilo que advém em sua análise. O testemunho do passe ao passador seria, nesse caso, um recito feito a posteriori (après coup) daquilo que foi elaborado em uma análise que irá produzir um analista.

Em outubro de 1978, em Deauville (França), durante a conclusão de uma jornada sobre a transmissão, Lacan fala sobre a sua decepção com relação ao passe que fora instaurado por ele. Ele esperava algo que poderia esclarecer a maneira pela qual psicanálise poderia durar. Vejamos o que ele diz: “Como agora venho a pensar, a psicanálise é intransmissível [...] é bastante incômodo o fato de que cada psicanalista seja forçado a reinventar a psicanálise”.2 (LACAN, 1979, p. 1). O que leva Lacan a declarar isso e a se perguntar o que é que funcionaria em uma análise para que um analisante deseje, no seu momento, ocupar esse lugar e “como pode ser, que pela operação do significante, existam pessoas que se curam, e que se curam de suas neuroses e até mesmo de suas perversões”.

Se a psicanálise é intransmissível, e cada analista deve reinventar alguma coisa, o passe não se trata unicamente de um dispositivo de coleta de um saber, de espera, construído pela análise. Ele poderia, então, se distinguir enquanto uma experiência inédita que seria da ordem da efetuação ou da realização de alguma coisa. É de onde provém a ideia de um esclarecimento. É nesse ponto que José Attal (2012), em seu recente pequeno texto, propõe uma articulação da experiência da psicanálise com a experiência da arte. De fato, nesse caso, o passe possa vir a realizar uma experiência próxima das artes, no sentido de uma performance que realiza alguma coisa. Não se trata de uma apresentação de um modelo existente, e sim da produção de um saber que realiza alguma coisa como um real. (“A arte precede o real”, escrevera Walter Benjamin.)

Consequentemente, esse momento não pode ser compreendido como uma finalidade, e sim como algo da ordem de uma produção. “Eu não sou induzido, eu sou produzido”, dizia Lacan. Aquele que foi talhado no mesmo tecido pode ser visto de maneira homológica. E Lacan continua dizendo: “É da arte que nós devemos tomar a semente”, pois existe uma certa homologia entre a arte e a experiência analítica.

É o que encontramos naquilo que ele vai dizer em Mais ainda (LACAN, 1982) sobre a escritura de James Joyce, escritura sintomática, com a qual ele se sente próximo. Ele diz em Finnegan’s Wake que aquilo se diz de maneira atravessada. Vejamos a citação:

...— leiam Finnegan’ s Wake —, [...] é o titulo do lapsus que isso significa alguma coisa, ou seja, que isso possa se ler de infinitas maneiras diferentes. Mas é exatamente por isso que isso se lê mal ou que isso se lê de maneira atravessada ou que isso não se lê. Mas esta dimensão do se ler não seria suficiente para mostrar que nós somos no registro do discurso analítico... (LACAN, 1982, p. 37).

Eu concluo dizendo que o que pode ser lido de maneira atravessada pode produzir somente uma certa instabilidade. E, nesse caso, um dispositivo que funciona de maneira azeitada é um dispositivo não vivo, ossificado, no sentido de que ele não pode mais se dar de maneira atravessada, ou seja, produzir a partir do inconsciente.

Para que haja transmissão, é preciso que exista algo de maneira atravessada e heterogeneidade entre aquilo que se transmite, o que é transmitido e a variedade final da operação. O que vale a pena dizer é que é preciso aceitar a errância, ser desprendido, dividido e não se reconhecer, nem reproduzir aquilo que conhecemos. Nem sempre é fácil se encontrar desconcertado, surpreso. Mas é, portanto, uma necessidade lógica para chegar de maneira atravessada...

 

Referências

ATTAL, J. La passe à plus d’un titre. Paris: EPEL, 2012.         [ Links ]

LACAN, J. Le séminaire, livre XXI: Les non-dupes errent. Inédito. Transcrição disponível no site do psicanalista Patrick Valas http://www.valas.fr/Jacques-Lacan-Les-non-dupes-errent-1973-1974,249        [ Links ]

LACAN, J. Les lettres de l'ecole, n. 25, la transmission II. Site de l’ELP, 1979.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.         [ Links ]

LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

PORGE, E. Transmitir a clínica psicanalítica, Freud, Lacan, hoje. Tradução de P. S. Souza Jr; V. Veras. Campinas: Unicamp, 2009.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
99 Rue du Cherche Midi
75006 – Paris - França
E-mail: simone.wiener@free.fr

Recebido: 15/03/2013
Aprovado: 22/04/2013

 

 

SOBRE A AUTORA

Simone Wiener
Psicanalista em Paris. Membro da Association de Psychanalyse Encore. Coordena um seminário de pesquisa clinico (Ouclipo). Participa do comitê de redação da revista Essaim (França). Autora de vários artigos publicados em várias revistas.

 

 

1 Este artigo é fruto de uma intervenção realizada pela autora no Colóquio "Colloque franco-américain, Les errances de la transmission", realizado pela Association de Psychanalyse Encore (Paris) e pela Après-Coup Psychoanalytic Association (Nova Iorque), em nov. 2012, em Paris. Este trabalho foi publicado nos atos do colóquio. Trata-se uma publicação interna da Association de Psychanalyse Encore e da Après-Coup, 2013. Titulo original: Ça se transmet de travers, la psychanalyse.
2 Lacan. Les lettres de l'école, 1979, n. 25, la transmission II. Site de L’ELP. N.T. : “Pas-tout Lacan”. Disponível para consulta pela internet no site da EPL (École Lacanienne de Psychanalyse):http://www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque.php?id=10 (1978-07-09: Conclusions du Congrès de l’EFP sur la transmission).