SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número40O primata perverso polimorfoVínculos entre modernidade, ética e subjetivação no pensamento de Freud índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.40 Belo Horizonte dez. 2013

 

 

As per-versões na clínica psicanalítica

 

The per-versions in the psychoanalityc clinic

 

 

Cibele Prado Barbieri

Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tem como objetivo trabalhar a incidência de cenas de cunho perverso no tratamento de sujeitos supostamente neuróticos, permitindo pensar a possibilidade de versões da estrutura perversa.

Palavras-chave: Perversão, Clínica psicanalítica, Fenômeno elementar.


ABSTRACT

The article aims to work the incidence of perverse nature scenes in the treatment of subjects supposedly neurotic, allowing the possibility of perverse structure versions.

Keywords: Perversion, Psychoanalytic clinic, Elemental phenomenon.


 

 

Enquanto tudo não tiver sido dito,
enquanto o objeto como tal
(ou seja, o objeto do gozo)
não tiver sido nomeado, catalogado,
impresso em letras,
é preciso que ele sobreviva
para continuar a ser oferecido
aos golpes do carrasco
que busca seu retalhamento simbólico.
ANDRÉ, 1995. p. 25

 

Gostaria de agradecer o convite do Espaço Moebius para participar desta jornada1 já que o tema da perversão tem-me ocupado em muitos momentos, e a interlocução é a melhor possibilidade de esclarecimento das ambiguidades e incertezas teóricas que vivenciamos no exercício da clínica psicanalítica.

Não só a clínica do nosso tempo é marcada pela incidência de atos cujo cunho, perverso ou não, deixa dúvidas como também o psicanalista vem sendo convocado a dar parecer na área jurídica a respeito da responsabilidade subjetiva do criminoso. Se o sujeito do ato é um psicótico ou um perverso, a forma de tratar e julgar esse sujeito deverá obedecer a estratégias diferentes, de forma que discutir e avançar nesses temas se torna fundamental para a elaboração da teoria por suas consequências práticas, não apenas no campo da clínica psicanalítica.

Para pensar a perversão em seu desenvolvimento histórico e teórico, remeto a textos anteriores, onde foram trabalhados2. Pretendo aqui focalizar questões que considero importantes porque implicam a posição e o ato do analista diante de sujeitos e cenas por eles vividas, que nem sempre se definem classicamente como perversas, embora se encaixem perfeitamente na sua lógica, exigindo reflexão e aprofundamento teórico.

Podemos tentar compreender a perversão a partir de algumas definições que nos fornecem versões e efeitos possíveis da estrutura e de seus traços. Tomarei apenas quatro, que considero fundamentais:

1. Em Freud: A perversão não é uma inversão; é a expressão direta da pulsão parcial. Nela encontramos o avesso da operação do recalque, de modo que isso não exclui certos efeitos de recalque na subjetividade, como acontece na psicose (FREUD, 1905, 1914, 1923).

2. Em Roudinesco:

A diplopia é uma alteração da visão, uma má convergência, que faz com que vejamos dois objetos em lugar de um. Transformação do bem em mal. A perversão dos costumes. Distúrbio, perturbação. Há perversão da visão na diplopia (ROUDINESCO apud LITTRÉ, 2008, p. 9).

Então, a perversão é da ordem da diplopia, o que permite dizer: "eu sei, mas... mesmo assim...".

3. Em Serge André: A perversão é uma modalidade discursiva, uma impostura:

[...] a perversão é algo totalmente diferente de uma entidade clínica: ela é um certo modo de pensar. Um pensamento cuja essência demonstrativa decorre das relações do perverso com a fantasia e com a Lei (ANDRÉ, 1995, p. 312).

4. Em Mário Fleig: "Propomos, como hipótese, que a dessubjetivação do sujeito moderno tem incidência no que constitui um dos fenômenos elementares da perversão" (FLEIG, 2008, p. 109).

A primeira dessas questões remete à ausência de Verdrangung, o recalque. A Verleugnung, traduzida por recusa, mas também renegação ou rejeição — termos que implicam a negativização de uma representação — nos diz que a ideia é mantida na consciência, mas ao mesmo tempo sua veracidade é negada, negativizada. Desmentido — melhor tradução, para Lacan — inclui a primeira mentira, ao des-mentir a castração, anulando a operacionalidade do recalque. De forma que já aí encontramos a propriedade moebiana de passar do avesso ao direito, do dentro ao fora e vice-versa, sem extrapolar nenhuma borda. O perverso satisfaz o que o neurótico recalca.

Temos, ao mesmo tempo, as duas representações opostas e conscientes: diplopia. A mulher é castrada; mesmo assim, é fálica... Isso implica a fantasia e a lei; consequentemente, o posicionamento e a estrutura do sujeito. Serge André, ao definir a perversão enquanto modalidade discursiva, permite pensar em termos de uma torção discursiva, um giro.

Que efeitos subjetivos advêm dessa diplopia? Ou será que a diplopia é, ao contrário, o efeito de uma des-subjetivação, como propõe Fleig, em que o sujeito surge não dividido pelo desejo, livre dos infortúnios da castração, para dar vazão aos movimentos propostos pelas "impulsões" parciais?

A perversão e o desejo perverso estão determinados por um modo particular de gozo que diz respeito ao sujeito constituído no contexto da ciência moderna, e por isso concerne a todos nós (FLEIG, 2008, p. 109).

Esses sujeitos não procuram o psicanalista necessariamente por detectarem sua compulsão como tal, mas terminam trazendo certos fatos e atos que sugerem algo da ordem lógica da passagem ao ato perverso, na medida em que supostamente realizam uma satisfação direta, desmentindo a castração. Entretanto, nesses atos, fica expressa a ausência da satisfação própria do ato perverso. Atos cheios de ambiguidade, entre o prazer e a dor, nos quais a única coisa que fica evidente é a defasagem em relação ao desejo, à compulsividade e à ausência de sentido, que os distancia da configuração do sintoma neurótico, mas também não corresponde exatamente ao que conhecemos como satisfação do fetichista, por exemplo.

Encontrei em Fleig uma descrição que corresponde a esta cena que tento descrever:

A noção de fenômenos elementares advém da psiquiatria clássica, e Lacan tenta mostrar que não se trata apenas de um fato ou acontecimento, mas de um motivo que se repete, muitas vezes de formas disfarçadas, e que se encontra no interior do delírio, na psicose ou no roteiro perverso como o modo de relação do sujeito com o objeto. [...] São fenômenos sutis, uma espécie de aura, impressões, um sentimento, uma estranheza que antecede o desencadeamento do delírio ou das alucinações. [...] essa dessubjetivação no campo da perversão aparece na paixão pelo inanimado [...] Aparece também na crescente disseminação das formas de anonimato na contemporaneidade. O sujeito se coloca em situações em que seu nome não aparece, o que não se restringe apenas à clandestinidade. São fenômenos aparentemente banais, mas que podem indicar aquilo que diz respeito aos fenômenos elementares da perversão (FLEIG, 2008, p. 59-60).

E mais adiante ele propõe outras questões que nos conduzem a uma mais ampla dimensão.

Um aspecto interessante é a interrogação que o sujeito perverso introduz no campo das normas sociais: é um sujeito que se situa fora das normas e quer impor suas próprias normas? Seria um sujeito fora-da-lei e que, ao mesmo tempo, impõe uma outra lei? Qual é o estatuto da lei? Não estaria ele mesmo submetido a essa outra lei, ou seja, uma espécie de roteiro pelo qual está tomado e que precisa do outro para ser colocado em cena?

O próprio sujeito perverso está submetido a um roteiro particular, ele segue uma lei muito mais rígida do que as leis que ele contesta [...] (FLEIG, 2008, p. 60).

Como exemplo, poderia mencionar um jovem, filho exemplar, que divide com a mãe as "funções paternas", "empregado padrão" respeitado e competente, moral inquestionável, que ciclicamente "sai de si mesmo" (sic) e, mesmo não sendo usuário tradicional, se envolve em orgias regadas a drogas diversas, que geralmente terminam sem sexo e, invariavelmente, num caos financeiro e moral devastador, mas "só-depois" do ato, quando ele "volta a si". Posso dizer que o trabalho associativo da análise evolui satisfatoriamente, durante muito tempo, com relação a sua vida amorosa, questões familiares, seus becos sem saída, sua posição subjetiva, ideais, enfim, como a análise de um "bom neurótico". Mas a repetição reiterada desse roteiro, que ao longo da análise se reconstitui ciclicamente, não fornece associações. Parece que ali o simbólico não alcança e tem o aspecto de atuação perversa, como Fleig a descreve e explica.

Mas poderia ser relida como "gozo parasitário", assim chamado por Isidoro Vegh, no sentido da "tentação pulsional" ou, quem sabe, do "mandato"?

Isidoro Vegh, tratando da questão das intervenções do analista, utiliza o modelo da informática para pensar essas questões através de um "diagrama de fluxo". Seu diagrama começa por duas entradas: uma no campo da "vida", no sentido do pulsional, e outra no campo da "linguagem", no sentido da fala. As duas se encaminham em direção ao "falasser" (parletre). Nas duas vertentes — no campo do real e no campo do simbólico —, para aceder à condição de sujeito, de ser falante, temos de passar pelo que ele chama de "operador lógico da castração", ou então, de "processador do inconsciente". Aquilo que escapar à castração permanecerá atuante enquanto "gozo parasitário". Na vertente do Real, ele gera efeitos de "tentação pulsional" e, no campo da linguagem, seus efeitos são "Mandatos" ao estilo superegoico.

A "tentação pulsional" é silenciosa, insistente e gera efeitos de ato, enquanto o "Mandato" em sua articulação entre Ideal e supereu, na vertente da linguagem, gera inibição e efeitos depressivos: nos dois casos, separando o sujeito de seu desejo. Como exemplo disso, ele cita o usuário de cocaína que, mesmo desejando, não consegue se libertar da compulsão ao gozo da droga.

O fenômeno especial da perversão, como proposto por Fleig, poderia ser entendido como o que do Real emerge, produzindo efeitos de gozo, na medida em que a castração não se operou segundo a lógica do recalque. Tendo falhado o operador lógico da castração, torna-se possível uma torção discursiva, uma impostura que denota como o sujeito toma a lei pelo viés daquilo que ela interditaria se fosse eficaz, ou seja, a tentação pulsional,

Coloco o acento na "tentação pulsional", e não no "mandato", pois, neste caso, que norteia minhas formulações, se partirmos da colocação de Vegh, parece que o sujeito trafega pela via da "vida", do ser, e não pela via do falante, da "linguagem".

No que se refere à cena, parece não haver interferência direta do supereu no sentido de um mandato, a não ser que seja enquanto "sentimento inconsciente de culpa" ou "culpa muda", no sentido que Gerez-Ambertin postula. Para ela, "a culpa deambula pelas fronteiras do gozo" (GEREZ-AMBERTIN, 1993, p. 214). A culpa muda surge da interseção do Imaginário sobre o Real (I>R), no campo do gozo do Outro J(A), ex-sistente aos efeitos de inconsciente.

 

 

As intervenções interpretativas, no nível do simbólico, não geram efeitos, e a cena se repete quase sempre idêntica. Depois do ato, quando o sujeito reassume seu lugar e tem de assumir as consequências das ações, surge a angústia, pois se identifica com o objeto, o dejeto; cada vez mais distante e apartado do seu desejo.

O discurso perverso não deixa o sujeito livre da angústia, como muitos imaginam. Tanto André quanto Fleig não se cansam de afirmar que o perverso sofre. O perverso não é necessariamente aquele que se diverte o tempo todo, pois não sente nenhuma culpa; em alguma medida, a pressão da angústia de castração sempre existe e obriga até mesmo o psicopata a arquitetar sua solução.

O que pudemos ver até aqui é o fato de que certas versões da perversão produzem, em sua ambiguidade, grandes dificuldades para o analista na sua tentativa de dar conta de um real através de um ato que possa corresponder ao que se espera do ato de um analista. Sublinho o "um" analista, já que, tratando-se de analistas, só se pode falar de um por um, cada um.

O que Vegh propôs em seu seminário — e que gerou muita reflexão, questionamento e até a retomada da reflexão teórica dessa análise em particular — é que, diante da colocação em jogo do real, cabe ao analista uma intervenção da ordem do real, no Real. Posição à qual não estamos acostumados. Talvez por isso Lacan tenha falado do horror ao ato como medida do ato do analista, horror pelo que de real ele possa carregar em si.

Para finalizar, diria que não sei ao certo como meu jovem analisante resolveu sua questão, se realmente resolveu. Só posso dizer que, em dado momento, sob a mira e o confronto que as palavras permitiram a respeito de seu gozo, tomou uma decisão, literalmente, um novo rumo, no Real. Destituiu-se de tudo que o mantinha e sustentava. Demitiu-se, zerou suas dívidas, partiu para outro lugar, na intenção — que espero tenha sido bem-sucedida — de começar uma nova vida, despedindo-se da que havia levado até então.

Teria ele conseguido mudar a direção, dado um giro na estrutura, de objeto de gozo se tornar sujeito de seu desejo? Teria o gozo, finalmente, sucumbido ao "retalhamento simbólico"? Teriam as minhas intervenções sido equivalentes a "golpes do carrasco" como sugere Serge André? Quem sabe, um dia, saberemos.

 

Referências

ANDRÉ, S. A impostura perversa. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.         [ Links ]

FLEIG, M. O desejo perverso. Porto Alegre: CMC, 2008.         [ Links ]

FREUD, S. O ego e o id [1923]. In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. (CD-ROM).         [ Links ]

FREUD, S. Sobre o narcisismo: Uma Introdução [1914] In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. (CD-ROM).         [ Links ]

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In: ______. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, [n.d.]. (CD-ROM).         [ Links ]

GEREZ-AMBERTIN, M. Las voces del superyo. Buenos Aires: Manantial, 1993.         [ Links ]

LITTRÉ, Émile. Dictionnaire de la langue française. Paris: Gallimard-Hachette, 1966. [Roudinesco: v. 5, p. 9]         [ Links ].

ROUDINESCO, E. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.         [ Links ]

VEGH, I. Conferência proferida no Seminário "Estrutura e intervenções no sujeito da análise", promovido pelo Espaço Moebius, Salvador, 7 e 8 de junho de 2013. Inédito.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua João das Botas, 185 / 310
C. M. João das Botas - Canela
41110-160 - Salvador/BA
E-mail: barbieri.cibele@gmail.com

Recebido: 06/09/2013
Aprovado: 24/10/2013

 

 

SOBRE A AUTORA

Cibele Prado Barbieri
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Editora da Revista Cógito - Publicação Anual do Círculo Psicanalítico da Bahia.

 

 

1 XXII Jornada do Espaço Moebius, 25 e 26 de outubro, 2013, com o tema Perversão, Salvador, Bahia.
2 Cito como exemplo, entre outros, os artigos: BARBIERI, C.. O que é perversão? In: PIMENTEL, D.; Araújo, M. G. (Org.). Interfaces entre a psicanálise e a psiquiatria. Aracaju: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 2008. p. 282-299. Disponível em: http://www5.bahiana.edu.br/index.php/psicologia/article/view/180/161; BARBIERI, C. Os enigmas da criminalidade à luz da psicanálise. Cógito [on line], v. 13, p .8-21, 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-94792012000100002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt