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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.40 Belo Horizonte dez. 2013

 

 

A criança, o artista e o analisando: a psicanálise e a invenção de mundos

 

The child, the artist and the analyzed: psychoanalysis and worlds creation

 

 

Luciana Knijnik

Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nas linhas redigidas a seguir, o leitor encontrará um exercício reflexivo sobre alguns aspectos da construção do arcabouço psicanalítico. O arranjo conceitual e prático é apresentado tanto como decorrência de seu tempo, quanto como produtor de efeitos nos modos de ser, agir e pensar dos homens e seus mundos. As figuras da criança, do artista e do analisando são tomadas como personagens que emprestam seu corpo à personificação de conceitos e práticas caras à psicanálise.

Palavras-chave: Psicanálise, Criança, Devir.


ABSTRACT

In the forthcoming lines the reader will be presented to a reflexive exercise about some aspects of the psychoanalytical dungeon construction. The practical and conceptual framework is disclosed both as a derivative of its time and as an effects producer in the ways of being, acting and thinking of men and its worlds. The figures of the child, the artist and the analyzed are presented as characters that lend their bodies to the personification of psychoanalysis precious concepts and practices.

Keywords: Psychoanalysis, Child, Becoming.


 

 

Vou meio dementado e
enxada às costas a cavar no meu quintal
vestígios dos meninos que fomos.
MANOEL DE BARROS

 

Os que estudam psicanálise hoje precisam viajar no tempo para imaginar um período em que o mundo era visto como ordenado, previsível e passível de controle, pois foi precisamente esse o caldo cultural de Sigmund Freud. Seguramente o engendramento da psicanálise promoveu muitas rupturas com os ideais de seu tempo, mas ninguém está alheio às demandas de seu momento histórico (FIGUEIREDO, 2001). A localização de Freud na modernidade, ápice da racionalidade científica, nos ajuda a compreender muitos dos diálogos por ele empreendidos. Em A questão da análise leiga, ele põe a própria obra em análise:

Nem, naturalmente, posso garantir-lhe que a forma como é expressa hoje continue a ser definitiva. A ciência, como se sabe, não é uma revelação; muito depois dos seus primórdios ainda lhe faltam os atributos de determinação, imutabilidade e infalibilidade pelos quais o pensamento humano profundamente anseia. Mas tal como ela é, é tudo que podemos ter (FREUD, 1997, p. 218).

Estamos de acordo: os saberes não são um dado natural, verdade universal, mas uma produção histórica. Assim, olhar a própria psicanálise sob essa perspectiva permite que vislumbremos os compromissos que precisamos manter e as nuances que atualmente podem ser abandonadas.

Se na época de Freud as mencionadas tempestades enfrentadas pela psicanálise envolviam a luta para garantir legitimidade e espaço, hoje outros céus relampejam. Muitas leituras reduzem a psicanálise ora a passagens historicamente determinadas, ora a preocupação com o universalismo dos conceitos.

Adotar uma visão reducionista da teoria psicanalítica é a opção de muitos que buscam a confirmação de ideias previamente concebidas ou mesmo o prazer das críticas vazias. Outra possibilidade é potencializar os conceitos que no contemporâneo operam, acessando as diversas formas de sofrimento e abrindo caminhos para a transformação de cada um e da sociedade em que vivemos. Ou seja, é colocar as mãos a obrar.

Para tal empreitada não precisamos ir longe. O próprio Freud em muitas passagens fornece importantes indicativos dos compromissos fundamentais de sua teoria. Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, uma nota de rodapé acrescentada posteriormente, em 1915, merece destaque. Discorrendo sobre os conceitos de masculino e feminino, ele diz:

A masculinidade ou a feminilidade puras não são encontradas nem no sentido psicológico nem no biológico. Cada pessoa exibe, ao contrário, uma mescla de seus caracteres sexuais biológicos com os traços biológicos do sexo oposto, e ainda uma conjugação de atividade e passividade, tanto no caso de esses traços psíquicos de caráter dependerem dos biológicos, quanto no caso de independerem deles (FREUD, 1996, p. 97).

Nesse trecho podemos ver um Freud avesso a determinismos biológicos associando masculinidade e feminilidade não aos órgãos e suas funções, mas a posições ativas e passivas respectivamente. Enfatiza ainda que masculinidade e feminilidade não existem em estado puro, mas enquanto composição. Enquanto afirma que masculino e feminino não são determinados exclusivamente pela anatomia, diz também que há algo da história, da cultura e da dobra que cada um faz de si em cada composição.

Evidentemente, do final do século XIX até os dias atuais, muito aconteceu. Hoje podemos olhar para algumas passagens no texto freudiano e avaliar que estão de acordo com o período em que a teoria foi concebida. De fato nosso campo é necessariamente aberto às mudanças na esfera da produção de subjetividade. Abertura que também se verifica nas reflexões críticas bem fundamentadas que forçam o pensamento a produzir novos desenhos e até mesmo novas leituras dos mesmos escritos de fins de 1800 e início de 1900.

Nesse sentido perguntamos: seria o tão interrogado complexo de Édipo efetivamente universal, parcial ou mesmo efeito da própria produção psicanalítica? Em O mal-estar na civilização, o autor dirá:

Não é decisivo, realmente, haver matado o pai ou deixado de fazê-lo; em ambos os casos temos de nos sentir culpados, pois o sentimento de culpa é expressão do conflito de ambivalência, da eterna luta entre Eros e o instinto de destruição ou de morte. Esse conflito é atiçado quando os seres humanos defrontam a tarefa de viver juntos; enquanto essa comunidade assume apenas a forma da família, ele tem de se manifestar no complexo de Édipo, instituir a consciência, criar o primeiro sentimento de culpa [grifo meu] (FREUD, 2010, p. 104).

Na passagem acima, é novamente Freud quem deixa o caminho livre para o movimento do mundo sem determinações a priori. Para ele, enquanto a convivência comunitária seguir adotando o formato da família, o complexo de Édipo será necessário. Resta-nos acrescentar algumas reflexões: podemos inventar outros formatos familiares? Que modos de convivência em comunidade estariam por vir? Como manter viva aquela criança aberta à experimentação, vivendo em comunhão com outros seres? Que crianças a psicanálise também está produzindo?

 

Devir criança

É tarefa do psicanalista promover um reencontro com a criança que habita em todos? Evidentemente não estamos a falar de qualquer criança, e sim daquela plena de potencialidades que, pela porosidade à ortopedia das escolas, ao terrorismo de certas igrejas, à velocidade das grandes cidades, às demandas familiares conflituosas e aos sofrimentos do mundo, se torna um adulto que não sabe brincar. Vejamos a demonstração de Manoel de Barros:

Estranhei muito quando, mais tarde, precisei de morar na cidade. Na cidade, um dia, contei para minha mãe que vira na Praça um homem montado no cavalo de pedra a mostrar uma faca comprida para o alto. Minha mãe corrigiu que não era uma faca, era uma espada. E que o homem era um herói da nossa história. Claro que eu não tinha educação de cidade para saber que herói era um homem sentado num cavalo de pedra. Eles eram pessoas antigas da história que algum dia defenderam a nossa Pátria. Para mim aqueles homens em cima da pedra eram sucata. Seriam sucata da história (BARROS, 2003, p. XV).

No seu artigo Crianceria, Chaim Samuel Katz (1996) coloca em questão o hábito de olharmos a criança apenas de um ponto de vista. Para ele presumir a emergência da figura "a" criança exclusivamente de papai e mamãe "é supor que as energias-afetos que constituem 'psiquismo' se dirijam desde sempre, enquanto destinação através destas imagens capturadoras" (KATZ, 1996, p. 90). A criança é encharcada de mundo, da cidade em que vive, do seu momento histórico, da natureza. Suas experiências estão inseridas em uma paisagem que extrapola as figuras de pai e mãe, englobando uma atmosfera mais ampla que também produz efeitos. Não cabe negar a importância das figuras de referência, porém ampliar as coordenadas de investimento pulsional. "Qual ser amado não envolve paisagens, continentes e populações mais ou menos conhecidos, mais ou menos imaginários?", pergunta Deleuze (2001, p. 84).

Como diz Katz (1996, p. 90), "criança não é apenas obedecer aos poderes, mas exercício imanente de potências". Essa posição implica um estado de permanente abertura para o novo rompendo, e não apenas adotando mandatos previamente estabelecidos. Segundo Bergson (2006, p. 96), "a criança é um pesquisador e um inventor, sempre à espreita de novidade, impaciente pela regra, enfim, mais próxima da natureza que o homem feito". Nessa perspectiva não há clausura em um vir a ser previamente estabelecido, mas habitar a posição de devir. Esclarece Saidón:

Quando dizemos devir, não nos referimos à evolução das ideias ou das transformações dos corpos ou de suas representações ao longo do tempo. Falamos em devir para nos referirmos à transmutação radical de valores que inaugura um pensamento e que se traduz na criação de territórios existenciais inéditos (SAIDÓN, 2008, p. 91).

Se nessa perspectiva a criança é vista não como uma esponja inerte que absorve a realidade, mas como produtora de mundos, uma concepção de inconsciente necessariamente derivará. Sabemos que Freud não se dedicou ao trabalho com crianças em sua clínica, o que não significa dizer que tenha negligenciado esse período da vida. Em suas próprias palavras:

Sublinhar a importância das primeiras vivências não implica subestimar o peso das vivências posteriores; mas essas posteriores impressões da vida falam com clareza pela boca do paciente, enquanto o médico tem de erguer a voz em favor da infância (FREUD, 2010, p. 300).

Vale lembrar que o estatuto conferido à sexualidade infantil, pedra fundamental da psicanálise, causou frisson na época por diversas razões. Diana Corso (2012) afirma que

[...] a descoberta da importância da infância decorre da existência não só de uma sexualidade infantil, mas de um sujeito sexualmente desejante na infância. Assim, a psicanálise passa a se conectar com a história do sujeito, de um ser que desde muito cedo escreve suas páginas com seus desejos, proibidos e realizados, admitidos e recalcados. A infância recebe em seus braços tudo aquilo de que se lhe considerava ainda imune, acrescido do problema de que estas vivências são compreendidas como formadoras, constituintes.1

Ressaltamos aqui esse sujeito desejante apontado pela autora como aquele que investe nos objetos de seu mundo e os significa em uma operação paralela e simultânea a sua própria significação. Assim, a psicanálise nos fala de um mecanismo inconsciente de constituição de sujeitos, tempos e universos não somente particulares.

Desse modo, nos debruçamos sobre um tempo da criança não como aquilo que fomos um dia, um passado perdido, mas como esse movimento criador do sujeito em sua esfera relacional potencialmente presente. Tornar-se adulto não suprime a criança, viva naqueles que exploram ambientes por meio de trajetos plásticos e desenham seus próprios mapas. Como diz Manoel de Barros (1999, s/p), "com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças".

 

Mil e um dias e noites

A magia do texto freudiano está em sua abertura para inúmeras leituras. Assim como em certos momentos a balança pende para a necessidade de legitimação da psicanálise no campo da ciência, atendendo às demandas de seu tempo, em tantas outras passagens podemos encontrar uma concepção de inconsciente como usina de produção de mundos. Sim, "a psicanálise já enfrentou muitas tempestades" (FREUD, 1996, p. 50).

Cabe a nós, produto e produtores da psicanálise, garantir seu lugar no campo das ciências do devir (SAIDÓN, 2008), para que possamos estar aliados ao caos e à incerteza, sem negligenciar a estrutura e o instituído, tomando-os como trampolins para o engendramento da vida, e não como âncoras que estancam o movimento.

As crianças, os artistas e os pacientes em análise bem sabem, pela própria experiência, o que significa habitar um devir. Nas palavras do psicanalista,

[...] é instalar-se em uma zona de copresença; é trabalhar em um entorno; é evocar o estranho em nós com os outros; é a troca que acontece a uma partícula ao entrar em uma zona de indeterminabilidade e de potenciais processos criacionistas (SAIDÓN, 2008, p. 95).

Winnicott concordaria que há algo em comum entre esses três personagens, quais sejam a criança, o artista e o analisando, já que para ele "é no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação" (WINNICOTT, 1975, p. 79). Criação de si e do próprio mundo tal qual o processo de análise em que, de lamparina em punho, exploramos nossos sótãos empoeirados, conhecendo e reinventando nossa própria história. É como diz Bergson (2006, p. 98): "só se conhece, só se compreende aquilo que se pode, em alguma medida, reinventar". O divã, tal qual um tapete mágico, nos leva à exploração de territórios conhecidos e inusitados. Nesses voos revisitamos o passado com seus personagens, cores e sabores e, por meio da magia do tapete, vivemos os mil e um futuros por vir. E para nossa surpresa retornamos com o corpo inteiro, revitalizados pela possibilidade de refazer a nós mesmos a cada dia que o tapete novamente alça voo.

 

Referências

BARROS, M. Exercícios de ser criança. Bordados de Antônia Zulma Diniz, Ângela, Marilu, Martha e Sávia Dumont sobre desenhos de Demóstenes. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.         [ Links ]

BARROS, M. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003.         [ Links ]

BERGSON, H.. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.         [ Links ]

CORSO, D.. A invenção da criança da psicanálise: De Sigmund Freud a Melanie Klein. Disponível em: http://www.marioedianacorso.com/a-invencao-da-crianca-da-psicanalise-de-sigmund-freud-a-melanie-klein. Acesso em: jun. 2012.         [ Links ]

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FIGUEIREDO, L.s C. M. Modernidade, trauma e dissociação. A questão do sentido hoje. In: BEZERRA JÚNIOR, B.; PLASTINO, C. A. (Org.). Corpo, afeto e linguagem. A questão do sentido hoje. Rio de Janeiro: Marca d'água e Contracapa, 2001, v. 1, p. 219-243.         [ Links ]

FREUD, S. A questão da análise leiga (1926). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XX, p. 179-248.         [ Links ]

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FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXI, p. 15-63.         [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, vol. 18.         [ Links ]

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KATZ, C. S. Crianceria. O que é a criança. Cadernos de Subjetividade. São Paulo: PUC, 1996.         [ Links ]

SAIDÓN, Osvaldo. Devires da clínica. São Paulo: Hucitec, 2008.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Tomaz Flores, 192/201
90035-200 - Porto Alegre/RS
E-mail: luknijnik@hotmail.com

Recebido: 01/09/2013
Aprovado: 29/10/2013

 

 

SOBRE A AUTORA

Luciana Knijnik
Psicóloga. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em formação no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

 

 

1 http://www.marioedianacorso.com/a-invencaoda-crianca-da-psicanalise-de-sigmund-freud-amelanie-klein.