SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número40De Simone de Beauvoir aos "Cinquenta tons de cinza"O outro da dor índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.40 Belo Horizonte dez. 2013

 

 

O contador de histórias: vínculos e identificações

 

The Storyteller: Identification and Bonds

 

 

Maria Melania Wagner Franckowiak PokorskiI; Luís Antônio Franckowiak PokorskiI

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente ensaio pretende examinar os conceitos do vínculo e das identificações presentes na constituição psíquica do ser humano. Para ilustrar essa constituição psíquica, utilizaremos alguns fragmentos da vida de um menino que, com seis anos de idade, é deixado por sua mãe na FEBEM, em 1978. Trata-se de uma situação real, que é retratada no filme brasileiro O contador de histórias, de 2009. Além da história de vida do menino, analisaremos o papel da pedagoga pesquisadora que exerce as funções materna e paterna, sendo continente aos momentos de ódio expressos pelo menino e que chega a adotá-lo. Dos autores da psicanálise utilizaremos Freud, Winnicott e Bion, bem como os que fazem uma releitura deles, por exemplo, Gutfreind, Nasio e Zimerman.

Palavras-chave: Vínculo, Identificações, Constituição psíquica, Psicanálise.


ABSTRACT

This essay intends to examine the concepts of identification and bonds included in the human psychic constitution. To illustrate this psychic constitution, we are going to use some life fragments of a six years old boy, who was left behind by his mother at FEBEM (State Foundation for Children Welfare), in 1978. A real situation reproduced by the 2009's Brazilian film 'O contador de histórias' (The Storyteller). Besides the history of the boy, we are going to analyze the researcher pedagogue's role, performing the functions of mother and father, which is continent in the moments of hatred expressed by the boy and adopts him. We are going to use psychoanalysis authors such as Freud, Winnicott and Bion, and the ones that make a rereading of them, as, for example, Gutfreind, Nasio and Zimerman.

Keywords: Bonds, Identification, Psychic constitution, Psychoanalyzes.


 

 

Introdução

Nosso texto examina a importância dos vínculos e das identificações na infância e na adolescência, partindo do filme brasileiro O contador de histórias. Dirigido por Luiz Villaça (2009), o filme retrata a vida de Roberto Carlos Ramos, que em 1978 passa a frequentar a FEBEM (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor), em Belo Horizonte. O personagem Roberto é o décimo filho de uma senhora que sustentava sua família trabalhando como lavadeira, em seu casebre. Diante da vida difícil, interna o filho na FEBEM, onde poderia ter uma vida melhor e até se tornar doutor, uma vez que a campanha institucional veiculada na televisão, em cada letra de seu nome, trazia um significado promissor: F de Fé; E de Educação; B de Bons modos; E de Esperança; M de Moral. Uma cena muito significativa é quando, de madrugada, a mãe veste seu pequeno com carinho e o leva à instituição. Após a assinatura digital, por ser analfabeta, a despedida lhe é negada pela diretora da instituição. Roberto, vendo-a pelo vidro da janela, suplica que não o deixe ali.

A escolha do filme para o presente texto se deve a vários motivos. Um deles é o fato de a obra contar a história de um menino brasileiro, que representa a realidade de várias crianças que sofrem com as adversidades da vida desde muito cedo. Igualmente, cabe analisar o papel dos profissionais da instituição, que, muitas vezes, se mostravam insensíveis aos sentimentos dos menininhos. O filme aponta, por outro lado, o papel fundamental da pedagoga francesa Marguerit, realizando pesquisas no Brasil, quando encontra Roberto após o resgate em uma de suas muitas fugas. Ela o fita nos olhos, dirigindo-se a ele com gentileza e não desiste dele em nenhum momento.

O filme apresenta Marguerit no exercício das funções materna e paterna, continente ao desespero e ao desamparo de Roberto. Aos poucos, a confiança começa a se estabelecer, além do respeito às escolhas do menino. Diante do anúncio do retorno de Marguerit à França, Roberto inunda a casa inteira de água; contudo, percebe que os limites e o castigo de secar toda a casa foram merecidos. A atitude de Roberto de ter provocado o ódio de Marguerit naquela ocasião foi mais por temer um abandono, o que não se confirmou. Essa atitude de provocar o abandono é frequente em toda criança já abandonada. Marguerit o adota e o leva ao seu país, onde ele estuda e volta formado professor de História, com o endereço de residência de sua mãe biológica.

Portanto, na primeira parte, pretendemos descrever a chegada do menino, aos seis anos de idade, à instiuição FEBEM, o seu período de adaptação, o significado da separação, o estabelecimento de escassos vínculos e, logo em seguida, sua experiência de uma segunda adaptação por pertencer ao grupo de sete a catorze anos de idade, quando as fugas da FEBEM passaram a se intensificar, ocasiões em que os meninos roubavam, cheiravam cola e usavam outras drogas. Roberto passa por avaliações psicológicas, recebendo diagnóstico de dislalia, dislexia, discalculia. Em cada resposta errada, as psicólogas davam uma bolachinha recheada, o que estimulava Roberto a não se preocupar com a resposta. Além disso, com as muitas fugas, recebeu o diagnóstico de "caso irrecuperável". As fugas o inspiraram a querer pertencer a um grupo de meninos de rua mais experientes, por admirá-los. E como exigência de pertencimento ao grupo, teve que passar pela prova de ser abusado sexualmente. O sofrimento foi muito intenso, levando-o a tentar o suicídio, deitando-se nos trilhos de trem. Após essa vivência amarga, procura a casa de Marguerit.

Na segunda parte, analisaremos o vínculo com a pesquisadora Marguerit, que, após um período de provações e silêncios, teve um comportamento continente, respeitando o seu jeito de ser. Roberto lhe conta a sua história, que fica registrada nas fitas do gravador. Nesse laço transferencial, ele conquista aos poucos, a aprendizagem da leitura e da escrita, a partir do contato com a história do personagem Capitão Nemo, por quem demonstra admiração, encantamento, o que desperta a sua imaginação sobre as profundezas do mar, que desconhecia.

O filme O contador de histórias nos oportuniza operar com os referenciais da psicanálise. A obra nos possibilita transitar pela teoria da psicanálise, pelas situações clínicas, nos ajuda a entender os casos clínicos, nossas experiências analíticas e as demais situações da realidade.

 

Vínculos e identificações

Parece-nos que as situações dos vínculos, das identificações e das separações podem expressar e representar um pouco do que Roberto, do filme O contador de histórias, vivenciou em sua primeira etapa na FEBEM, em 1978, na cidade de Belo Horizonte, onde ingressou com seis anos de idade, precisando aderir às regras da instituição, uma vez que sua mãe acreditava ser aquela a forma de seu décimo filho se tornar doutor. Nessa instituição, Roberto não teve sequer espaço e tempo para poder chorar a saudade sentida.

Vínculo é a capacidade de estabelecer laços, a ligação com o outro, que é imprescindível à constituição psíquica. A psicanálise consagrou que os primeiros vínculos mãe-bebê são a matriz estrutural das relações afetivas futuras. Para Zimerman (2001), vínculo, do latim vinculum, significa união, ligadura, atadura, ligação entre as partes que estão unidas e delimitadas entre si. Quais os principais autores da psicanálise no estudo dos vínculos?

Em Freud encontramos apenas as expressões "vínculos emocionais em grupo" e "vinculação psíquica". Da vinculação psíquica, em suas Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise (1996), ao descrever A dissecção da personalidade psíquica, ansiedade e vida pulsional, Freud menciona que, nas fobias, há um deslocamento, que é expresso temendo-se uma situação externa. A criança, nessas situações, busca se proteger utilizando a fuga como forma de proteção, uma vez que "fugir de um perigo interno é um empreendimento difícil" (FREUD, 1996, p. 88). A ansiedade é retomada por Freud, pela terceira vez, em 1932. Por volta de 1905, no artigo Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud entende a ansiedade como uma consequência do recalque. Porém, em 1926, em Inibições, sintomas e ansiedades, Freud apresenta o recalque não mais como origem, mas como consequência da ansiedade. Em 1932, define a ansiedade como um estado afetivo de uma ameaça de perigo, que serve como forma de autopreservação. A sede da ansiedade é o eu (ego), porque somente o eu (ego) produz e sente ansiedade, e não as instâncias do id e do superego:

[...] as três principais espécies de ansiedade, a realística, a neurótica e a moral, podem com tanta facilidade ser correlacionadas com as três relações dependentes que o ego mantém — com o mundo externo, com o id e com o superego (FREUD, 1996, p. 89).

O vínculo mãe-bebê é a base para o desenvolvimento da personalidade da criança; sem o outro, é impossível alguém se constituir como humano/sujeito. Revisando os referenciais da psicanálise sobre o vínculo, além de Freud, encontramos várias denominações. Melanie Klein (apud HINSHELWOOD, 1992) qualifica o vínculo como "elos de ligação" entre mãe-bebê. Bowlby (2006) enfatiza o vínculo como teoria do apego, salientando o vínculo afetivo mãe-bebê e os efeitos prejudiciais da privação da mãe. Winnicott situa a necessidade do olhar da mãe para que o bebê se veja refletido nesse olhar. "O precursor do espelho é o rosto da mãe" (WINNICOTT, 1975, p. 153). Pichon-Rivière (2000) descreve a teoria do vínculo, pontuando as relações patológicas e sadias, os vínculos e os papéis no grupo, os três D (depositário, depositante e depositado). Bion (apud ZIMERMAN, 2010) descreve três vínculos como fundamentais: o do amor, o do ódio e o do conhecimento.

Em relação à origem da formação conhecimento, segundo Bion (apud ZIMERMAN, 1995), ela se organiza dissociada da formação do pensamento, porém ambas são

[...] uma reação à experiência emocional primitiva decorrente da ausência do objeto. [...] O Conhecimento progride em função do Pensamento, portanto, para Bion, 'a incógnita é desconhecida e, como tal, faz pensar e criar' (ZIMERMAN, 1995, p. 111).

Aos três vínculos fundamentais de Bion, Zimerman (2010) acrescenta um quarto vínculo, o do reconhecimento. Defende que os quatro vínculos — amor, ódio, conhecimento e reconhecimento — estão sempre interagindo entre si, qualificando-os como sadios ou como patológicos. Zimerman (2010) desdobra o vínculo do Reconhecimento em reconhecimento de si mesmo, reconhecimento do outro, ser reconhecido ao outro e ser reconhecido pelos outros. Em relação ao reconhecimento de si mesmo, este ocorre no início da vida, quando o bebê começa a fazer a diferenciação entre eu e não-eu, na etapa narcísica. Pode deixar marcas para a vida adulta, em que a pessoa não consegue distinguir o outro diferente de si mesma ou esse reconhecimento do outro pode ficar com distorções que são observadas na identificação projetiva, em que são projetadas dentro do outro as imagos parentais que habitam o psiquismo de quem projeta.

[...] o reconhecimento de si mesmo, acrescido do reconhecimento do outro, também se constituem como importantes fatores para a formação do sentimento de identidade, desde o seu nascimento até fases evolutivas posteriores. Isso se processa através de uma sadia, ou de uma prejudicada, evolução de sua capacidade para pensar e, consequentemente, de conhecer e reconhecer (ZIMERMAN, 2010, p. 210).

Ser reconhecido aos outros Zimerman (2010) justifica como a capacidade da pessoa de ter vencido a etapa mais primitiva que, segundo o referencial de Melanie Klein, significa ter feito a passagem da posição esquizoparanoide à posição depressiva, ou seja, tendo vencido o mundo mágico, da onipotência, aceitado as frustrações, ter adquirido a percepção total do objeto, e não apenas parcial, tendo assumido as responsabilidades e os compromissos da vida, sendo grata ao outro, e, com isso, podendo desenvolver a capacidade de pensar, aprender e simbolizar as experiências vividas.

O quarto e último vínculo descrito por Zimerman (2010) é ser reconhecido pelos outros, quer dizer, ser visto, nomeado, amado, diferenciado pelos outros; assim, como para a estrela existir ela precisa ser vista, nós humanos também precisamos desse investimento do outro. Muitas vezes, em nossos seminários de formação psicanalítica, Natal Fachini mencionava que o que adoece a pessoa não é o amor, mas a falta ou a falha no reconhecimento. Zimerman reafirma essa constatação de Fachini, pontuando que as configurações psicopatológicas, que abarcam as questões de "autoestima, de sentimento de identidade e o da relação com a realidade exterior" se originam dessa "falência desse tipo de necessidade do sujeito em ser reconhecido" (ZIMERMAN, 2010, p. 212).

Após essa explanação sobre a importância dos vínculos iniciais da criança com o meio e vice-versa, ficamos a questionar o estado do pequeno Roberto, do filme de pano de fundo de nosso texto, sobre a sua "capacidade de estar só" e a sua "continuidade de ser". Neste momento, consideramos importante examinar esses dois conceitos descritos por Winnicott (1990). Na etapa inicial, o bebê é de uma dependência absoluta e, para evoluir dessa etapa, precisa de uma mãe "suficientemente boa". Hipoteticamente, poderíamos dizer que uma mãe de dez filhos preencheria esse quesito, até pela repetição das experiências, não fossem as adversidades da vida, de muita pobreza, fome e da figura paterna totalmente ausente, conforme mostra o filme. Para adquirir a "capacidade de estar só", a criança precisa ter introjetado o ego auxiliar (a mãe); com isso, a mãe está presente no psiquismo da criança, mesmo que ausente no espaço. O cuidado materno possibilita à criança a capacidade

[...] de ter uma existência pessoal, e assim começa a construir o que pode ser chamado de continuidade de ser. Na base dessa continuidade de ser, o potencial herdado se desenvolve gradualmente no indivíduo lactente (WINNICOTT, 1990, p. 53).

Winnicott (1990) acrescenta que, quando ocorrem falhas no cuidado materno, abrem-se possibilidades de esse bebê "não vir a existir" ou a organização do seu ego ser considerada fraca. É importante ressaltar a importância de a mãe poder contar com o pai da criança nesses momentos iniciais. Cabe lembrar que as funções do ego são: perceber, pensar, planejar, lembrar, prestar atenção, ou seja, todas elas envolvem as questões da aprendizagem. Em relação à aprendizagem, nosso personagem fora diagnosticado com dislexia (mesmo não sabendo ler e escrever), dislalia, discalculia e, em relação ao comportamento na adolescência, um "caso irrecuperável". Mas qual o papel das identificações na constituição psíquica?

O processo identificatório na psicanálise foi criado por Freud (apud ROUDINESCO; PLON, 1998) para designar

[...] o processo central pelo qual o sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apropriando, em momentos-chave, de uma evolução, dos aspectos, atributos ou traços dos seres humanos que o cercam (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 363).

As pulsões autoeróticas são básicas, estão lá desde o início, mas algo deve ser acrescido a esse autoerotismo, e o que se acrescenta é o "eu". Assim, o narcisismo equivale ao nascimento do "eu". Segundo Garcia-Roza (1995), a partir de 1920, Freud denomina o autoerotismo de narcisismo primário; nele ainda não há um eu diferenciado do não eu, mas há a pulsão sexual satisfazendo-se autoeroticamente no próprio corpo. São ainda características do narcisismo primário a onipotência, a imagem corporal, o eu ideal, o plano imaginário, as idealizações. No narcisismo secundário, por sua vez, há uma relação de objeto, uma identificação com o outro, um ideal do eu, marcado pelo simbólico. Mas como se dá a identificação no conceito freudiano?

Para Nasio (1997), a identificação, a partir das categorias freudianas, acontece entre duas instâncias inconscientes: o eu e o objeto, podendo ser total ou parcial. Freud denomina de identificação primária a identificação total do eu com o objeto total. Retoma a pré-condição mítica, transmitida de geração a geração, em que o objeto total é o Pai mítico da horda primeva. Os filhos devoram o pai, incorporando-o pela boca, para que tenham a força paterna inteira dentro de si. Nas identificações parciais, o objeto tem um significado de representação inconsciente. Nasio (1997) assinala o aspecto ou a forma que a representação assume, podendo ser por um traço distinto, uma imagem (global ou local) ou uma emoção.

Na identificação parcial com o traço do objeto, o eu se identifica com um traço de um objeto amado, desejado e perdido, ou até com vários objetos que têm o traço da sonoridade vocal, do sorriso, do olhar, da vestimenta, do cabelo, etc. Nasio mostra que Freud a qualifica

[...] de 'identificação regressiva': o eu estabelece, primeiro, um vínculo com o objeto, depois desliga-se dele, volta-se sobre si mesmo, regride e se decompõe nos traços simbólicos daquilo que não existe mais (NASIO, 1997, p. 107).

Na identificação parcial com a imagem global do objeto, a "representação inconsciente do objeto amado, desejado e perdido é uma imagem" (NASIO, 1997, p. 107). Em relação a essa identificação, Nasio (1997) dá um exemplo do menino que tem um forte apego com seu gato, ilustrando a identificação patológica na melancolia. Certo dia se deparou com o gato morto. Passados alguns dias, o menino começa a apresentar condutas bizarras, adotando atitudes felinas: bebia, miava e caminhava como gato. O menino reproduzia a conduta daquele que o deixou, tornando-se idêntico à sua imagem, vestiu-se com a "pele do outro", uma conduta narcísica. Assim, no exemplo do menino e o gato:

O eu não encontra outra pele senão a anteriormente amada, porque, ao amá-la, refletia-se nela e amava a si mesmo. Se hoje o menino melancólico banca o gato, é justamente porque a imagem de seu gato vivo já era sua própria imagem (NASIO, 1997, p. 108).

A identificação parcial com a imagem local do objeto e a identificação com o objeto, enquanto emoção, se relacionam ao tipo de investimento dos histéricos. No primeiro se destaca a identificação com a imagem da parte sexual do outro; no segundo o eu identificado com o outro, enquanto emoção, significa que:

Todo sonho, sintoma ou fantasia histéricos condensa e atualiza uma identificação tríplice: identificação com o objeto desejado, com o objeto desejante e, por fim, com o objeto de gozo dos dois amantes (NASIO, 1997, p. 110).

Sabemos que muitas vezes as adversidades da vida da criança interferem em sua constituição psíquica. McDougall (2001) utiliza de Christopher Bollas os conceitos de fado e pulsão de destino. Em relação ao "fado", a pessoa não tem controle direto, é uma situação acidental, externa ao sujeito, ou seja, é da realidade, são as situações inevitáveis e fatídicas com as quais se depara. Já a "pulsão de destino" engloba a participação e a responsabilidade da pessoa para reagir aos golpes do fado.

McDougall (1996) relata vários casos de pessoas que, em sua etapa inicial de desenvolvimento, sofreram severos prejuízos em relação aos cuidados essenciais à constituição psíquica, em que mãe e pai falharam, afetando sua capacidade para o sonho, a fantasia, o nomear as emoções ou as dores físicas ou psíquicas, sofrendo de insônia e utilizando um pensamento concreto em seus discursos. No capítulo intitulado Sobre a privação psíquica, McDougall (1996) descreve que, para poder sonhar, é necessário que o bebê tenha introjetado uma "tela do seio materno" de confiança e de segurança. Quando não há essa tela, não há onde e o que projetar. A mãe (ou a pessoa que cuida e acolhe) representa uma proteção contra os estímulos transbordantes, especialmente na época da representação de coisa, isto é, as representações anteriores à palavra.

Portanto, parece-nos importante essa análise das condições de nosso personagem do filme O contador de histórias, o Roberto, que, desde muito cedo, teve que lidar com situações de desamparo, separações e abandonos em seus vínculos, o que, consequentemente, afetou seu processo de identificações. Os vínculos, por anos seguidos, se mostravam escassos, inconstantes, violentos e com pouco investimento do outro. Os profissionais da instituição tratavam cada criança como uma a mais, e não como ser humano. Ainda seria possível confiar em outra pessoa? Apesar de todas essas situações, algo em seu mundo imaginativo e criativo estava indicando para algumas possibilidades, mesmo que as potencialidades de aprendizagem estivessem rotuladas como sem alternativa alguma. Qual a importância da atitude e do papel da pesquisadora na vida de Roberto? A relação de Marguerit com Roberto pode ser comparada com a função psicanalítica de continência, usando a capacidade reverie, as funções materna e paterna, a confiança e o respeito?

 

A pesquisadora continente

A relação de Marguerit e Roberto, após o tempo do estabelecimento da confiança, vai modificando a tomada de consciência de cada um. Descobrem-se gostos, interesses e limites de cada um, embora, no início, o medo recíproco ficasse manifesto, mas não nomeado. A possibilidade de Roberto contar a sua história e escutar parte da história da pesquisadora fez com que as duas realidades se aproximassem cada vez mais. A leitura da história do personagem Capitão Nemo, de Júlio Verne, escrita no século XIX, foi outro momento marcante nessa relação de estabelecimento do vínculo e nas identificações. Roberto escuta falar de um mar profundo e desconhecido, dominado pelo Capitão Nemo, que vence todos os obstáculos possíveis desse mar. Aliás, a contação de histórias é um recurso terapêutico milenar. A psicanálise se utiliza há muito desse recurso, principalmente quando se trata da análise com crianças. "Narrar é antitraumático, porque cria vínculos e abre espaço para o inédito" (GOLSE apud GUTFREIND, 2010, p. 21). Em seu livro, Gutfreind (2010) defende que contar histórias, que podem ser pessoais ou contos infantis, de ficção, possibilita o exercício da parentalidade, que está ligada à transmissão de narrativas, a um projeto de vida e a um sentido da existência.

Possivelmente os vínculos de Marguerit e Roberto aos poucos foram se intensificando com o convívio, com a gravação da contação de histórias, com a aprendizagem da leitura e da escrita. Os dois idiomas igualmente marcaram a relação: Roberto ensinando algumas palavras e gírias brasileiras, e Marguerit ensinando francês. Com o passar do tempo, esses dois personagens foram nascendo para um novo mundo:

O verdadeiro nascimento não é o biológico. Ele é afetivo, no desejo maternal, primário e doido de construir o vínculo. E, depois, com os afetos nas ventas, é que vem a tentativa cultural de acolher esta sandice maravilhosa (GUTFREIND, 2010, p. 64, grifo nosso).

Parece-nos que, assim como Roberto foi tomando consciência da vida e da natureza humana, a humanidade teve o seu momento, em que o homem tomou consciência de si mesmo. Considerando a consciência mítica uma consciência comunitária, há uma relação entre o individual e o coletivo. Para Bion (apud ZIMERMAN, 1995), a produção imaginária coletiva contida no mito equivale à fantasia inconsciente individual. Em seus estudos, utilizou os mitos de Édipo, do Éden, da Torre de Babel, dos Funerais do Rei Ur, da Morte de Palinuro e os vinculou ao conhecimento, ao amor e ao ódio (K-L-H). O vínculo emocional entre mãe e bebê não poderia ser só de amor (L) e de ódio (H), faltava o desejo da mãe em compreender/conhecer (K) as necessidades do bebê, bem como o que Bion denomina de capacidade de reverie.

O personagem Roberto, mesmo com o diagnóstico de "caso irrecuperável", aprendeu a ler e a escrever. Isso sugere que teve uma mãe (a pesquisadora) que soube dar as respostas nos momentos adequados. As angústias do encontro inicial foram suportadas, desintoxicadas e canalizadas, como uma "mãe suficientemente boa" sabe fazer. A capacidade reverie da mãe é básica para a estruturação do psiquismo e para as futuras aprendizagens da criança. Se essa capacidade

[...] for adequada e suficiente, a criança terá condições de fazer uma aprendizagem com as experiências das realizações positivas e negativas impostas pelas privações e frustrações e, nesse caso, ela desenvolve uma função K, que possibilita enfrentar novos desafios em um círculo benéfico de aprender com as experiências, à medida que introjeta a função K da mãe (BION, apud ZIMERMAN, 1995, p. 112).

Quando a capacidade reverie da mãe de acolher, receber, conter, significar, decodificar e nomear for insuficiente, as angústias que a criança projeta na mãe voltam a ela como um terror sem nome, o que aumenta as angústias e impede a introjeção de uma função K (conhecer/saber). O aprender e o conhecer necessitam da formação de símbolos, que, por sua vez, permitem à criança conceituar, generalizar, expandindo, assim, seu pensamento e conhecimento. Para Bion, a capacidade de formar símbolos depende

[...] da capacidade do ego em suportar perdas e substituí-las por símbolos. A capacidade da criança em suportar perdas, por sua vez, depende do fato de ter havido a passagem da posição esquizoparanoide para a posição depressiva (BION apud ZIMERMAN, 1995, p. 114).

Bion introduz em seus estudos a noção da capacidade de reverie a partir de uma mãe real, uma mãe para conter o bombardeio de identificações projetivas da criança. A capacidade de tolerância da criança em relação às frustrações depende de suas "inatas demandas pulsionais excessivas", bem como da "mãe real externa". Salienta que "esses dois fatores são indissociados e constituem o modelo de Bion de 'continente-contido', representado pelos símbolos e " (ZIMERMAN, 1995, p. 91).

A função de conhecer/saber significa tomar consciência da realidade sobre si mesmo, da natureza, do mundo e, em cada experiência emocional, chegar a uma aprendizagem e a um novo conceito. A esse processo Bion (apud ZIMERMAN, 1995) chama de "pulsão epistemofílica ao conhecimento das verdades", que pode se dar em diferentes planos, por exemplo, conhecimento pessoal, dos outros, diferentes vínculos dos grupos entre si, etc. Em O contador de histórias, Roberto teve a sua segunda chance de (re)construir, em seus vínculos, esses três conceitos fundamentais descritos por Bion: do amor, do ódio e do conhecimento, dando um novo sentido e significado a sua vida, uma vez que a pesquisadora Marguerit pôde ser continente às angústias e ao ódio expressos em diferentes momentos. Marguerit soube dosar suficientemente as funções materna e paterna. Ou seja, a função materna com a acolhida, a proteção, a confiança; a função paterna no estabelecimento e no cumprimento de regras e limites.

 

Considerações finais

O ser humano precisa, com frequência, buscar conhecer a sua história, encontrar algum argumento, alguma palavra que explique o porquê do fenômeno que o assusta e o que lhe parece desconhecido. Nesse sentido, a humanidade tem criado mitos, histórias e contos de fadas. Bettelheim (1980) diz que os mitos são respostas taxativas, enquanto os contos de fadas são respostas sugestivas. O mito explica a realidade que ainda não foi justificada pela razão. O mito, mais do que explicar a realidade, tem a função de tranquilizar e acomodar o homem em um mundo desconhecido e assustador.

As histórias infantis e os contos de fadas deixam à fantasia da criança um espaço para encontrar soluções e para aplicar a si o que a história tem com a sua vida. Enfim, as soluções são dadas, mas não soletradas. Gillig (1999) refere que, nos contos de fadas, os monstros e as bruxas representam personagens temíveis que são as projeções imaginárias dos fantasmas que a criança traz consigo: medo de ser devorado, medo de ser abandonado por seus pais, medo da rivalidade fraterna. Os contos de fadas são importantes para a criança lidar melhor com suas angústias, projetando-as nessas histórias, podendo se identificar com os heróis. Além disso, oportunizam à criança um material imaginativo, onde buscará imagens e ideias para lidar com seus conflitos internos, podendo traçar as fronteiras entre a fantasia e a realidade.

Como bem o salienta Gutfreind (2010), que realizou suas pesquisas de mestrado, doutorado e pós-doutorado na França, com crianças de abrigo e com crianças que tinham família, destacamos a importância da contação de histórias infantis e das narrativas na constituição da subjetividade. Gutfreind (2010) destaca autores da psicanálise que percebem no conto um potencial para o contato com os mais profundos afetos, vínculos e identificações, apontando que Freud e psicanalistas contemporâneos atribuem ao conto uma função organizadora do psiquismo. Ou seja, nós nos constituímos de nossas histórias, de nossas narrativas.

Nosso protagonista Roberto, ao contar a sua história, em suas narrativas, bem como em seu apaixonamento pelas profundezas oceânicas, a partir da história do personagem Capitão Nemo, se tornou um contador de histórias. E essa possibilidade narrativa nos remete ao outro, o da escuta; contam-se histórias para alguém que nos reconhece, alguém que não só ouve, mas alguém que escuta. A experiência analítica em sua essência é o poder se fazer narrativa, se tecer, se fazer texto, se fazer sentido, se contar, fazer e se fazer história.

 

Referências

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.         [ Links ]

BOWLBY, J. Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes, 2006.         [ Links ]

FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedades (1926). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XX.         [ Links ]

FREUD, S. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1932). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. XXII.         [ Links ]

FREUD, S. Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. VII.         [ Links ]

GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metodologia freudiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. v. 3.         [ Links ]

GILLIG, J.-M. O conto na psicopedagogia. Porto Alegre: Artmed, 1999.         [ Links ]

GUTFREIND, C. Narrar, ser mãe, ser pai e outros ensaios sobre a parentalidade. Rio de Janeiro: Difel, 2010.         [ Links ]

GUTFREIND, C. O terapeuta e o lobo: a utilização do conto na psicoterapia da criança. Rio de Janeiro: Artes e Ofícios, 2010.         [ Links ]

HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do pensamento kleiniano. Porto Alegre: Artmed, 1992.         [ Links ]

MCDOUGALL, J. As múltiplas faces de eros: uma exploração psicanalítica da sexualidade humana. São Paulo: Martins Fontes, 2001.         [ Links ]

MCDOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1996.         [ Links ]

NASIO, J-D. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.         [ Links ]

PICHON-RIVIÈRE, E. Teoria do vínculo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.         [ Links ]

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

VILAÇA, L. (Dir.). O contador de histórias. Warner Brothers: Brasil, 2009. 1 DVD (110 min).         [ Links ]

WINNICOTT. D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed, 1990.         [ Links ]

WINNICOTT. D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

ZIMERMAN, D. Bion da teoria à prática: uma leitura didática. Porto Alegre: Artmed, 1995.         [ Links ]

ZIMERMAN, D. Os quatro vínculos, amor, ódio, conhecimento, reconhecimento: na psicanálise e em nossas vidas. Porto Alegre: Artmed, 2010.         [ Links ]

ZIMERMAN, D. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2001.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Assis Brasil, 3532/1012
91010-003 - Porto Alegre/RS
E-mail: mariamelania@fapa.com.br luismelania@yahoo.com.br

Recebido: 10/09/2013
Aprovado: 04/11/2013

 

 

SOBRE OS AUTORES

Luís Antônio Franckowiak Pokorski
Graduado em Filosofia. Professor de História e Filosofia no Ensino Médio. Formação no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutorando em Psicologia Social (Universidad Argentina J. Kennedy).

Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Psicopedagoga. Mestre em Educação pela PUCRS. Doutoranda em Psicologia Social (Universidad Argentina J. Kennedy). Professora Adjunta de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade Porto-Alegrense.