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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.40 Belo Horizonte dez. 2013

 

 

O acompanhamento de adolescentes em grande sofrimento psíquico: distinguindo dois tipos de violência1

 

Monitoring of major psychological distress in adolescents: distinguishing two types of violence.

 

 

Wilfried GontranI; Stéphanie MoussetI; Marília Etienne ArreguyII, III

I Université de Toulouse II - Le Mirail
II Universidade Federal Fluminense
III Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto discute a adequação dos sistemas de acompanhamento de adolescentes na França, hoje, apontando sua desadaptação a um grupo de adolescentes caracterizado como "jovens em conflito com a Lei". Demonstra também, do ponto de vista metapsicológico, a existência de duas formas de violência apresentadas pelos jovens, relacionando-as a dificuldades em diferentes etapas da estruturação psíquica.

Palavras-chave: Violência, Adolescência, Lei, Metapsicologia, Sistemas de acompanhamento.


ABSTRACT

The text works the adequacy of adolescents follow-up systems in France today, pointing out it is inappropriate to a group of adolescents characterized as "young people in conflict with the law". It also shows a metapsychological point of view: the existence of two forms of violence presented by young people, relating them to some difficulties at different stages of psychic structure.

Keywords: Violence, Adolescence, Law, Metapsychology, Monitoring systems.


 

 

O presente trabalho resulta da constatação de que os sistemas de acompanhamento na França, hoje, sejam educativos, sejam sociais, sejam psiquiátricos, não estão adaptados a um tipo de adolescente, ou melhor, a um número crescente de jovens em conflito com a Lei (ECA, 1990), que seguidamente recorrem ao ato (BALIER, 1988) de delinquir.

Sua problemática psíquica difere fortemente de outros jovens, também em profundo sofrimento. Entretanto, os dispositivos que lhe são propostos são os mesmos: não se pensa (ainda verdadeiramente) nas especificidades desses adolescentes, pois não se leva em conta sua diferença modificando (oficialmente) o sistema de acompanhamento.

Este trabalho se caracteriza como uma pesquisa que abrange estudos, debates e percepções que enfocam realidades tanto próximas quanto dissonantes entre a França e o Brasil no que concerne à tentativa de compreensão do sofrimento de adolescentes institucionalizados. Esperamos que possa trazer esclarecimentos e mesmo demonstrações, a fim de contribuir para as mudanças necessárias nas políticas de acompanhamento de adolescentes.

Essa abordagem responde a uma exigência ética: manter as capacidades de acolhimento desses jovens que, se não se explica melhor o que os anima, corre-se o risco de consentir com as políticas que os rejeitam.

Exporemos, então, algumas reflexões que são apenas premissas de um trabalho a aprofundar. Para isso, começaremos expondo dois casos clínicos, redigidos pela colega Stéphanie Mousset, psicóloga em duas casas de acolhimento do Ministério da Justiça francesa, de uma equipe supervisionada por Wilfried Gontran há alguns anos. O primeiro caso ilustra um primeiro tipo de ato violento que desejamos explicitar, e o segundo, uma segunda forma de violência, qualitativamente distinta da primeira.

 

Caso Samir

Samir, 15 anos, é a segunda criança de uma fratria de três: tem um irmão mais velho e uma irmãzinha. Ele tem outros meio-irmãos e meio-irmãs mais velhos, saídos de um casamento anterior de seu pai. Seu pai e sua mãe nasceram na Tunísia e têm 20 anos de diferença de idade. A mãe de Samir veio para a França em seguida ao seu casamento. Samir é um rapaz mais reservado, em que a atitude em relação ao adulto marca uma contenção e um respeito notórios, sem por isso impedir sua autoafirmação. Ele não remete de modo algum à imagem "adolescente", provocativa ou opositora de um jovem de 15 anos. Foi interpelado por forças policiais por lhes ter atirado projéteis e, em seguida, ter respondido verbalmente e fisicamente a sua intervenção. Esses fatos aconteceram durante manifestações estudantis. Ele reconhece os fatos que lhe são atribuídos e não parece buscar se livrar de sua responsabilidade. Pelo contrário, ele quase não chega a explicar como pôde chegar a produzir tais gestos contra a polícia. Samir reconhece sua desconfiança geral contra as forças de ordem quando elas patrulham seu quarteirão; uma desconfiança que justifica pelo fato de já ter sido interpelado pela polícia quando não fazia nada de errado.

Ele lembra também de casos de jovens que teriam sido maltratados e insultados por policiais embora eles não tivessem feito nada de mal. Apesar de tudo, não é sob um tom de ódio ou de um sentimento de injustiça que Samir descreve seu ressentimento em relação às forças de ordem, ou seja, aos aspectos normativos da sociedade. A palavra mais apropriada, segundo ele, é desconfiança. Ele diz não saber qual trabalho deseja exercer, e não estar particularmente entusiasmado por nenhuma formação. No entanto, após o último ano do ensino fundamental [14 anos], considera a possibilidade de entrar no primeiro ano de uma formação profissional em eletrônica. De modo geral, ele não revela nenhum centro específico de interesse em seu lazer nem um campo importante em sua vida ou em seus valores. Samir diz reconhecer que é um pouco preguiçoso, identificando o trabalho que poderia fazer em casa ou para ele, mas frequentemente não tem bastante ensejo nem energia para se propor objetivos e a eles se prender.

Pode-se notar, no momento de uma entrevista feita na presença de seu pai, que Samir não adotava, nessa circunstância, nenhuma atitude de oposição nem de confronto face ao discurso que seu pai lhe endereçava, mesmo diante das críticas, às vezes muito duras, de seu pai (que exprimia toda sua cólera, sua vergonha e sua incompreensão diante dos atos praticados por seu filho), Samir não respondeu nem tentou se defender, nem iniciou uma discussão com seu pai. Entretanto, sua mãe assegura que dos seus dois filhos, Samir é o que mais afirma sua personalidade, pois seu irmão mais novo ousa menos ainda exprimir suas demandas ou aquilo que não lhe agrada. Samir fez assim a escolha de seguir os estudos em sua vida profissional, ao contrário de seu irmão mais novo e ao contrário das expectativas de seu pai.

A mãe de Samir insiste muito sobre os valores da honestidade e da humildade, que ela tenta inculcar em suas crianças. Ela coloca, com efeito, como questão de honra, ganhar a vida através do trabalho, desprezando aqueles que, segundo ela, "aproveitam das bolsas sociais". Ela sempre faz referência à injustiça social e à discriminação pelo emprego e pela habitação, dos quais se sente vitimizada enquanto mulher magrebina. Para os pais de Samir, o confronto com a autoridade judicial é particularmente doloroso e vergonhoso.

Descrevem, com efeito, sua vida como sendo guiada pelo trabalho, pela correção, pelo respeito às leis e à nação (o pai serviu ao exército sob a bandeira francesa na Indochina). Eles exprimem também uma certa dor por não poderem usufruir de um reconhecimento social à altura dos esforços que despendem principalmente devido às suas condições de habitação.

Esperam também uma melhor posição socioeconômica para seus filhos, graças aos estudos. Ora, sobre esse ponto, o pai de Samir lhe diz que ele decepcionou suas esperanças e que o filho não é digno da chance que lhe foi dada: poder ir à escola e aprender. Observando os fatos que lhe são censuráveis, os pais de Samir sustentam discursos divergentes sobre seu filho. Tanto sua mãe insiste sobre seu caráter razoável e sério, quanto seu pai o rebaixa em relação às expectativas escolares e pessoais que ele não preenche, repreendendo com agressividade sua imaturidade, sua negligência no trabalho e sua falta de responsabilidade. O pai declara que sua conduta em relação às forças de ordem mostram uma total idiotice, enquanto sua mãe dá prioridade à injustiça social para explicar o ato de seu filho.

O pai de Samir sublinha, por outro lado, que nem sempre concorda com as decisões educativas de sua esposa. Ele mesmo estaria inclinado a dar menos autorizações para o filho sair, tenderia a subordinar mais fortemente as compras que ele lhes pede para fazer, exigir mais rigor nos trabalhos escolares, etc. O pai tem a tendência nesse nível a repassar para seus filhos as exigências de vida que ele mesmo passou sendo jovem, depois adulto.

Após receber sanções socioeducativas por seu ato transgressivo, Samir se beneficiou de um prosseguimento educativo em meio aberto (fora de uma instituição), antes de passar pelo julgamento do caso. Nós não tivemos, subsequentemente, conhecimento de novos delitos concernentes a ele.

Samir ilustra o primeiro tipo de ato de delinquência, o mais clássico poder-se-ia dizer, no qual diríamos, antes de mais nada, ter a significação de uma transgressão à lei. Poderíamos pensar numa passagem ao ato com sentido de autoafirmação e de rebeldia por justiça. Também tratar-se-ia de uma dificuldade particular no processo de inscrição no laço social, dadas as dificuldades familiares de inserção socioeconômica em outra cultura. Essa situação, do ponto de vista coletivo, poderia por sua vez representar certa forma de privação no nível familiar, que reverberaria numa resposta subjetiva de Samir aos moldes de uma tendência antissocial, diríamos "normal", tal como descrita por Winnicott (2000), ou seja, como reação a um ambiente parcialmente hostil, por ser filho de estrangeiros vivendo de forma relativamente precária na França.

Mas como considerar essa dificuldade? No nível do desafio e da contraposição à autoridade. Para que se dê uma inscrição simbólica das marcas singulares do sujeito na cultura, seria necessária uma ultrapassagem da figura paterna, que corresponde ao prolongamento, à transição necessária da autoridade do pai em direção à autoridade presente no laço social. Com o fato de transgredir a lei (social) visando a questionar declaradamente sua autoridade, tratar-se-ia, para o adolescente desafiar a legitimidade autoproclamada pelo pai, ou seja, uma autoridade à qual o adolescente não pretende mais continuar a se dobrar sem algumas explicações paternas. Em suma, se para a criança trata-se do fato de que o pai saiba pôr à prova sua autoridade, para o adolescente tratar-se-á, no presente, de que se dê conta de sua legitimidade para exercê-la. Ora, de onde vem a autoridade do pai? O que funda a lei? Aí está uma questão que se impõe para os jovens, com qual os pais em algum momento têm de se haver.

Inscrever-se no laço social, a título de um indivíduo dito autônomo, quer dizer, responsável por seus atos, necessitaria então de recolocar a questão da figura paterna tal qual a criança a apreende, ou seja: é necessário um pai falicamente potente, notadamente capaz de satisfazer a mãe; um pai com o qual qual a criança poderá se identificar para que venha a adquirir sua própria potência fálica. As lutas entre os pares, oriundas do ciúme, significam nesse contexto, nem mais nem menos que uma luta fraterna para vir a ocupar fantasmaticamente (FREUD, 1901) ou, na falta de uma fantasia, de diferentes formas na realidade (FREUD, 1996; LACAN, 1966) — o lugar do pai (FREUD, 1996; LACAN, 1997, 1975).

O momento de o adolescente significar que essa identificação não é suficiente (pois o pai é carente para responder sobre o que cada um deles tem de fazer de sua vida) é realmente um momento de carência estrutural: o sujeito é só, vive sempre "abandonado" pelo pai no que diz respeito ao que ele tem a fazer de seu desejo; essa solitude incontornável é a base da crise adolescente.

Os atos de violência desse primeiro tipo, que melhor chamaríamos de passagens ao ato do adolescente, assinalariam que ainda há de se fazer uma batalha contra o pai, às vezes, sob o fundo de uma raiva contra ele. Essa raiva se funda não tanto nas privações de liberdade (de agir, de pensar, etc.) que o pai exerce, mas no fato, bem oposto, de que este fracasse a vir a apoiar, e quem sabe, a dirigir o adolescente até o fim, até seu acesso à idade adulta. No entanto, espera-se do pai que não nos acompanhe na idade adulta da mesma maneira como quando éramos crianças, numa plena segurança confortadora. É preciso confiar para permitir o amadurecimento do filho, deixando-o errar por si mesmo. Se essa confiança não é explícita, o filho pode retaliar com seu ato transgressivo, de modo a tirar do mundo (ou a jogar no mundo, pensando nos projéteis jogados por Samir) aquilo que supostamente marcaria sua passagem ao status adulto, embora essa tentativa possa ser feita de maneira desastrada, através de uma passagem ao ato no embate com a Lei.

Nesse primeiro registro, o da transgressão à Lei, os atos de delinquentes representariam, em definitivo, um trabalho de luto do lugar da instância paterna, realizando-se sob a cena de um social que deve doravante assumir o controle da autoridade. E, no contexto dos atos de delinquência, o trabalho de luto não se pôde efetuar de outro modo, por razões próprias do sujeito em questão, a não ser no registro do agir.

Aqui, em contraposição à noção psiquiátrica clássica de "passagem ao ato", também representativa do que Lacan (1966; 1963a) definiu como um curto-circuito pulsional, deve-se precisar aquilo que, em psicanálise, se chama acting out (LAPLANCHE; PONTALIS, 1995; MIJOLLA et al., 2002), a saber: a colocação em ato de uma verdade que não se pode dizer, que não se pode formular no discurso, mas que insiste continuamente. Apesar de não dita, a passagem ao ato enquanto acting out aporta um endereçamento ao outro; não é gratuita e tem um sentido, embora sua forma possa ser vista a priori como equivocada no plano social. Numa visada mais compreensiva e menos interpretativa em psicanálise, o agir violento do adolescente tratar-se-ia de um resgate da função positiva do trauma. Esse resgate está ligado à passagem da passividade para a atividade, incluindo os efeitos paradoxais nas origens da identificação com o agressor (FERENCZI, 2011).

O ato de delinquência é então pleno de significação. E é nesse primeiro caso que o trabalho educacional vai encontrar sua "aclamação": naquilo que cederá lugar na França a um trabalho educativo fundado numa grande instituição como a Proteção Judiciária da Juventude.2 Essas instituições seriam similares às instituições socioeducativas no Brasil, portando a contradição de serem ao mesmo tempo um lugar de aprisionamento, portanto forçado e um lugar de cuidados com a saúde psíquica e coletiva, cujo convite ao laço com psicólogos, por exemplo, promoveria um vínculo com o social.

O trabalho analítico consiste, assim, em extrair do ato de delinquência a verdade de uma questão colocada ao pai, permitindo ao adolescente elaborar sua questão em um outro registro que não seja aquele registro radical do agir. De modo que esse ato de endereçamento possa fazer um enlace simbólico na relação com o outro, de início, o terapeuta.

Nesse primeiro caso, o ato de delinquência corresponde especificamente a um momento adolescente e, a esse título, só poderia ser transitório, por pouco que o trabalho de acompanhamento, tal como nós viemos a descrever, traga seus frutos. Sem isso o sujeito pode confirmar sua inscrição em um funcionamento delinquente, com a consolidação de uma defesa antissocial (WINNICOTT, 1956) como resposta figurativa de uma postura de adulto que decide e faz, entretanto, cujas escolhas podem ser destrutivas em relação ao socius. Toda estratégia de prevenção clínica reside na visada de desviar o adolescente desta alternativa.

Assim, Samir talvez ilustre com o ato isolado de atirar o projétil contra um policial, essa tentativa de entrar com força na sociedade, evidentemente uma entrada simbolizada pelo fato de ser no belo meio dos estudantes, ou seja, em uma sociedade aqui representada pelos agentes de força de ordem. Essa sociedade é aquela que seus pais desejariam tão ardentemente que ele integrasse para além do que eles mesmos puderam realizar na sua vida de imigrantes, vida com a qual permanecem insatisfeitos. Samir, sem desejar, para se orientar em seu seio — e talvez tomado por essa forma depressiva própria da passagem pela adolescência — não chega a afrontar suficientemente o pai, pois se apaga diante dele no lugar de chegar a lhe opor um desejo que certamente não é o que o pai idealizou para ele.

Esse caminho, do pai em direção ao social, é fonte de uma profunda angústia que tenta ser resolvida com a passagem ao ato, nesse movimento de extração do objeto (o projétil). A partir dessa extração, o social o interpela e pode ajudá-lo a puxar o fio das determinações de seu ato lhe permitindo elaborar através da palavra sua verdade inconsciente. Isso fará de seu agir um ato que poderá assumir. Parece-me que o trabalho de acompanhamento dos adolescentes em conflito com a lei, seja ele assegurado no quadro da Proteção Judiciária da Juventude, seja em outro lugar, há que pensar, formalizar, de agora em diante, também às vistas de um segundo tipo usual de violência. O caso Tom ilustra talvez algumas dessas características.

 

Caso Tom

Tom tinha 15 anos e meio quando foi institucionalizado. Ele nasceu e viveu, até alguns meses antes, sob outros trópicos. Órfão de mãe desde 5 anos, cresceu na rua desde o 9 anos com alguns de seus irmãos mais velhos. Seu pai tinha então tomado a decisão de deixar a região em que viviam e deixou às crianças a escolha de segui-lo ou ficar. Procurado por diferentes ocorrências de roubo e de violência, ele foi encarcerado aos 14 anos. Membros de uma gangue rival sendo encarcerados na mesma prisão, ele decidiu proceder em sua transferência para uma região parisiense de modo a se proteger da violência por um acerto de contas. Efetuou uma primeira passagem pelo bloco dos menores antes de ser finalmente transferido para um estabelecimento penitenciário para menores. Uma atenuação de pena foi, em seguida, colocada em andamento, através de uma colocação em família de acolhimento que durou três meses. Nós o encontramos pela primeira vez na detenção, justamente para levantar a possibilidade dessa transferência.

Tom exprimiu que seu lugar não era ali e que ele retornaria para a rua atrás da gangue, pois não poderia proceder de outra forma. Mas tendo sido encarcerado a milhares de quilômetros da sua casa, quis assim mesmo tentar a experiência de uma colocação numa família de acolhimento. Tom pode dizer que sua família era sobretudo a gangue, já que conhece o grupo desde pequeno. Seu irmão mais velho também faz parte da gangue. Tom chega a anunciar que investir nas atividades e projetos que lhe propomos seria uma forma de renegar seu pertencimento à gangue, com quem permanece todo tempo ligado via internet.

Durante sua colocação, soube que dois de seus "irmãos" (de gangue) foram assassinados. Tom vive de modo muito violento o fato de estar separado do grupo e de não poder se associar a seus outros irmãos para vingar sua morte. Observamos também que ele fixa cada vez mais seu pertencimento em sua indumentária, pintando algumas de suas roupas com as cores associadas à gangue. Tom porta também sobre seu corpo outras marcas de pertencimento através de múltiplas tatuagens. Durante os dois primeiros meses de sua colocação, ainda que permanentemente tensionado entre sua lealdade à gangue e à família de acolhimento, demonstra um investimento positivo nas abordagens educativas empreendidas, assim como nas relações com os adultos que dele se ocupavam.

Não cometeu nenhuma falta em relação ao regulamento. Na família de acolhimento, participa de certos trabalhos com boa vontade, chegando mesmo a gravar seu nome sobre a chapa de concreto de um atelier então em construção. Às vezes, ele se permite dizer que poderia muito bem permanecer lá por dois anos, o tempo de aprender um trabalho.

Na casa, Tom investe particularmente na atividade de música, na qual ele escreve canções em memória de seus próximos que estão mortos (sua mãe e seus irmãos da gangue). Chega a chorar enquanto nos faz escutá-las. Com a educadora encarregada da inserção, ele evoca sistematicamente a morte de sua mãe e lhe pergunta se ela crê em Deus.

Ele diz que não acredita mais porque passou por muitas coisas. Quando fala da detenção, descreve modalidades de relação aos outros e às leis que se opõem ao que é esperado dele lá fora, pelos educadores. Ele diz: "É preciso que você seja o mais forte. Você não tem escolha, você se deixa bater quando chega, depois é preciso que você bata para se fazer respeitar. Você deve ser superior (sic)".

Para ele, de um certo ponto de vista, é mais fácil viver a prisão, o cárcere do que a liberdade: "Te pedem menos coisas. Se quiser, pode ficar fechado em sua cela, você é livre. Fora, é preciso sempre fazer escolhas, e há mais exigências. Você deve prestar atenção em como se comporta, em como fala. Na prisão, há menos histórias; fora, é preciso sempre se explicar, te pedem sempre mais, dominam sua cabeça. Na prisão, há os vigias, se você for pego, vai para o bloco disciplinar, e depois, acabou. Fora, há os educadores, a casa de acolhimento, as regras, etc.".

Tom então afirma estar mais adaptado a um funcionamento fora das convenções da relação social. Modalidades binárias e abruptas balizando os limites do permitido e do interditado são suficientes para ele. As relações são reguladas no fundo pela relação de força e pela violência. Ele especifica então: "A gente sabe que você é grande quando está na prisão. Fora, muitos se fazem de bons, mas na prisão somente os durões são respeitados. Você deve sempre dar o primeiro golpe para mostrar que é o mais forte".

Para tanto, ele também sabe usar com fineza da sedução para orientar a relação e dela tirar benefícios. Ele diz: "A vida é como uma partida de pôquer. É preciso que os outros acreditem que você é o mais forte para que eles te respeitem e algumas vezes é preciso saber dizer o que eles querem ouvir para ter o que você quer". Quando se lembra de sua vida na rua, diz que fez "coisas graves", que não quer nomear nem especificar, e explica que ninguém o interrompeu. Com ele, não aconteceu como com seu irmão mais novo, que seu pai e seus irmãos mais velhos tentaram parar. Para ele "isso não para nunca".

Tom permite assim compreender que ele poderia ter sido retido antes de sua integração na gangue e antes da espiral de acerto de contas na violência. Ele faz referência a uma vivência de abandono, no decorrer da qual ele foi largado, e em que terminou também por largar aqueles que poderiam lhe dar conforto e limites estruturantes, preservando para ele seu lugar de criança. Suas falas, seus comportamentos e suas posturas demonstraram uma tensão entre duas modalidades de estar no mundo com os outros: tanto a pessoa fria, sem consideração e outros princípios, a não ser aqueles referidos a sua gangue, quanto o rapaz sensível à atenção que lhe era dada, buscando a troca e o compartilhamento na relação individual. Além da violência dos propósitos, os atos do rapaz reivindicando sua gangue se revelam, às vezes, como uma expressão da criança mortificada incrustada em sua personalidade.

A esse respeito, o roubo de uma bijuteria na família de acolhimento pôs em ato de maneira muito aguda uma ferida, marcando sua ligação amorosa ao objeto materno. A mulher da família de acolhimento veio a perder sua própria mãe. Ela se deu conta, ao arrumar suas coisas, que um de seus pendentes tinha desaparecido. Tratava-se de um coração que sua mãe tinha lhe dado. Ela tinha mostrado essa bijuteria para Tom. Procurou por todos os lugares, muito afetada com o desaparecimento, e perguntou também a Tom se ele a havia visto,e ele negou. Acontece que, alguns dias depois, o pendente apareceu nas coisas dele. Porém, Tom negou tê-lo furtado.

No decorrer do terceiro mês de sua estadia, os contatos via internet com os membros da gangue se intensificaram. Tom chegou mesmo a dizer que alguns deles poderiam encontrá-lo na região. Seu comportamento mudou. Ele mostrou cada vez mais oposição face aos educadores, levando-os a desconfiar dele, pois não sabiam mais quem era "o verdadeiro Tom". Durante uma sessão do ateliê de música, Tom deixou a interventora entrever que ele tinha vindo com uma arma, deixando-a ostensivamente aparecer para fora da calça. Em seguida, sussurrou para a interventora que precisava de dinheiro, que cometeria um roubo e partiu. Interpelado mais tarde pela polícia, desmentiu tudo o que a interventora tinha relatado sobre o que ele havia dito e mostrado.

Tom também negou diante da família de acolhimento ter portado uma arma naquele dia. O senhor da família de acolhimento decidiu inspecionar seu quarto e encontrou uma pistola de balas de festim. Tom ficou "baqueado" quando foi confrontado com o fato de que a família de acolhimento tinha descoberto a arma. Ele não conseguiu sustentar uma discussão com eles e se afundou em justificações pouco convincentes, deixando o lugar. Disse em seguida ao educador que não queria mais continuar sua progressão de pena e que desejava ir novamente para a prisão.

Sem dirigir mais a palavra à família de acolhimento e recusando qualquer abordagem, ele foi acolhido na casa da Proteção Judiciária da Juventude, onde o encontramos. Essa mudança de enquadre suscitou num primeiro momento uma renovação do interesse quanto ao fato de novamente tentar projetos a partir da casa. De todo modo, em seguida, Tom se encontrou tomado por tensões internas, afirmando tanto que só buscava ser novamente encarcerado e refazer o caminho dos centros de detenção para retornar a sua região de origem, quanto que queria permanecer ali e trabalhar.

Nessa tensão se lia dramaticamente a angústia de não ter finalmente outro lugar a não ser a prisão ou a gangue. Por outro lado, pediu a alguns de nós, mais ou menos de canto, se não poderíamos adotá-lo. Finalmente, sobre o plano da resistência passiva, manifestou o impasse no qual estava preso: Tom permanecia o dia todo deitado na sua cama, os olhos fixos no teto, transgredia cada vez mais fumando cannabis, fugia à noite e voltava de madrugada. Ao lado de outros jovens, tentava provocar o terror e submetê-los aos seus mandos. Nesse contexto, por uma briga com um outro jovem, foi finalmente transferido para outra casa.

Nesse segundo tipo de ato de delinquência, a questão não era verdadeiramente de transgredir visando a potência e a autoridade do pai. Esses atos de delinquência, inflacionados na nossa sociedade contemporânea, devem ser mais considerados como consequência do que muito se chama hoje de "declínio da função paterna" (LACAN, 1997), no que isso logicamente deixa a criança num face a face talvez mortal com a mãe. Pari e passu o sujeito se vê confrontado com o Outro primordial, um outro sem filtro, sem paragem, intrusivo e excessivo (KAUFFMANN, 1996).

Os atos de delinquência resultariam de uma forte proximidade com a mãe, com sua figura ou, num plano mais amplo, com a cultura midiática, cuja precariedade na mediação simbólica, para além de oferecer amarras de ancoragem ultraidealizadas para o sujeito, excede numa demanda feroz inatingível (ŽIŽEK, 2006). Os atos violentos aí constituiriam então uma tentativa de saída radical da angústia que suscita naturalmente a proximidade com a mãe como instância, revelando a angústia em face ao espectro de um gozo incestuoso. Trata-se também da angústia de não poder usufruir de nada que represente os ideais culturais contemporâneos. A única forma encontrada de se sobressair é auto e heterodestrutiva (FREUD, 1996). Ora, todo o trabalho de estruturação psíquica de um indivíduo consiste em erigir barreiras contra o retorno dos efeitos destrutivos da angústia (KLEIN, 1992, 1982). No entanto, existe um gozo destrutivo do qual adolescentes em grande dificuldade, diríamos, em estado de deprivação, vão fruir de modo a forjar essa destruição no social (WINNICOTT, 2000).

Mas, em que, mais precisamente, os atos de delinquência desse segundo tipo teriam a reportar à relação arcaica com a mãe? Deve-se a Serge Lesourd, inspirado por Denise Lachaud e retomado por Yves Morhain, por ter formalizado tão magistralmente as questões e os fundamentos desse segundo tipo de ato de delinquência.

Lesourd (2001) mostra o quanto esses atos não constituem tentativas de se inscrever num laço social, realizando, assim, seu dever de habitar o mundo como adulto; ao contrário, sinalizam mais radicalmente uma posição de impotência vivida como impossibilidade de ali se inscrever. Não é o tanto que seria árduo recuperar seu lugar na sociedade, mas o fato de isso, segundo eles, ser impossível. A gramática inconsciente dessa segunda forma de apresentação da violência nesses jovens seria: "Não há realmente lugar para mim".

Como um indivíduo pode chegar a considerações tão radicais que vão tornar sua vida tão sufocante? Para compreender o que funda esse vício, o impasse que o social representa para esses indivíduos, examinemos mais de perto os joguetes da relação com a mãe, dita aqui arcaica, por ser considerada em sua versão não castrada, quer dizer, ainda numa versão todo-poderosa aos olhos da criança.

Notemos a esse respeito que Tom viveu aos 5 anos um acontecimento notavelmente traumático na relação à sua mãe: ela morreu. Pode-se pensar que, para ele, de maneira traumática, alguma coisa caiu tão brutalmente da potência materna, o que em psicanálise se chama a castração materna, que então se revela subitamente à luz do dia: a mãe indubitavelmente também falha. O traumatismo consiste no fato de que o sujeito, então criança, não teve tempo de metabolizar, simbolizar essa queda da potência materna, o que pode acarretar uma fixação, ou melhor, uma espécie de alienação à figura todo-poderosa da mãe; alienação que se traduz por uma nostalgia do tempo em que ainda sonhava com a completude que poderia constituir com ela. Sua relação com a mãe seria ainda a promessa de um gozo absoluto, índice de uma economia a dois que o pai tinha apenas começado a pôr em questão. Essa alienação arrisca desorganizar a vida do adolescente, que vai ter dificuldade para encontrar seu lugar no laço social, ou seja, para se integrar à sociedade. Na continuidade de uma falha absoluta da mãe, terá antes a tendência a se desintegrar. Pois, se inscrever no laço social implica adotar outro modo de relação com o gozo. Ora, é preciso dividir os bens entre todos, pois de todo modo, o gozo em si, ninguém pode ter todo (FREUD, 1996). Há uma falta fundamental, e é pelo fato de se apropriar e de pôr em ação essa falta como estrutural que se considera e se constrói uma relação à coisa social. Na cultura tradicional, em que ainda vivemos em grande parte, é assim que a pertinência ao laço social vai poder vir a se impor para um sujeito, estabelecendo uma relação com a autoridade. Por outro lado, os vínculos de Tom eram essencialmente horizontais, privilegiando uma fratria caótica, portanto, estigmatizados diante da sociedade oficial a qual, muitas vezes, é necessário se dobrar (FREUD, 1996).

No lugar disso, o adolescente, envolvido por essa injunção ao gozo absoluto, se lança em uma luta até a morte com o outro — dependendo da ocasião, ele poderá também ser seduzido pelas promessas de gozo absoluto que as drogas e outras substâncias oferecem — uma economia que rege a luta das gangues. Trata-se de uma luta até a morte, pois não haveria, realmente, para o sujeito, lugar para todos no mundo. É um pouco a mesma coisa quando se diz: "os estrangeiros devem permanecer em suas casas, pois não há trabalho suficiente para todo mundo", subentendendo-se que se eles não estivessem ali o problema do trabalho poderia vir a se solucionar. Assim, atribui-se ao outro a causa de sua própria falta.

É exatamente nessa lógica que o adolescente, funcionando nesse segundo tipo de violência, será efetivamente barrado: "a ausência tão prejudicial para mim deste gozo, essa que me metem todos os dias diante do nariz, da qual me dizem que é sinal de reconhecimento, de conquista social, etc., esta pela qual então eu sofro tão cruelmente, por não ter aceso suficientemente, eu imputo a responsabilidade ao outro, pelo fato de que ele a possuiria e, por isso mesmo, dela me privaria."

O mecanismo é simples de compreender: está no fundamento do discurso racista. Mais difícil é se dar conta do que vai explicar um tal fechamento do indivíduo nessa lógica, ao ponto que estará prestes a sacrificar sua vida. Temos também o exemplo paradigmático das gangues para as quais o laço social foi redescoberto pela via dos territórios. Marchar sobre o território do outro é dele roubar um gozo. "Se o outro me coloca em risco, eu o elimino".

Para compreender essa posição psíquica tão particular, Lesourd valoriza a noção de inveja distinguindo-a da do ciúme. O fechamento na economia da inveja é o que barra a passagem da luta fraterna em relação ao ultrapassamento do gozo do pai. Evidentemente, essa questão já havia sido posta por Melanie Klein (1957/1991), na sua obra magistral Inveja e gratidão (cf. ARREGUY, 2001). Apenas na passagem de uma posição dual, narcísica, invejosa, persecutória e destrutiva, para uma posição triádica, ciumenta, depressiva e reparatória, seria possível ter as bases para o declínio da posição edipiana. Aí o sujeito estaria numa cena a três, que pode vir a ser posteriormente elaborada. Diferentemente, aquele que funciona segundo a inveja, permanece talvez fixado demais à etapa da criança que vê seu irmão mais novo no seio da mãe, num quadro de completude entre a mãe e a criança do qual se vê radicalmente excluído.

É clássica a cena citada por Santo Agostinho no livro I das Confissões, também referida por Lacan (1997):

Certa vez, vi e observei um menino invejoso. Ainda não falava, e já olhava pálido e com rosto amargurado para o irmãozinho colaço. Quem não terá testemunhado isso? Dizem que as mães e as amas tentam esconjurar este defeito com não sei que práticas. Mas se poderá considerar inocência o não suportar que se partilhe a fonte do leite, que mana copiosa e abundante, com quem está tão necessitado do mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas com esse alimento? Mas costuma-se tolerar indulgentemente essas faltas, não porque sejam insignificantes, mas porque espera-se que desapareçam com os anos. Por isso, sendo tais coisas perdoáveis em um menino, quando se acham em um adulto, mal as podemos suportar (AGOSTINHO, 2007, p. 5).

Vejamos o comentário de Lacan, feito na lição do dia 14 de março de 1964, no seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise:

Inveja vem de videre. A invídia mais exemplar, para nós analistas, é aquela que há muito tempo destaquei em Agostinho, para lhe dar todo o seu desenvolvimento, isto é, a da criancinha olhando seu irmão pendurado ao seio de sua mãe, olhando-o amare conspectu com um olhar amargo, que o decompõe e faz nele mesmo o efeito de um veneno. Para compreender o que é a invídia em sua função de olhar, não é preciso confundi-la com o ciúme. O que a criancinha, ou qualquer pessoa, inveja, não é de modo algum, necessariamente, algo que ela poderia ter vontade, como impropriamente se exprime. A criança que olha seu irmãozinho, quer dizer que ela ainda precisa da teta? Todo mundo sabe que a inveja é comumente provocada pela possessão de bens que não seriam, para aquele que inveja, de nenhum uso, e dos quais ele nem mesmo suspeita da verdadeira natureza. Esta é a verdadeira inveja. Ela faz empalidecer o sujeito diante do quê? Diante da imagem de uma completude que se refecha [...] (LACAN, p. 115-116).

Estar a três não é considerável nessa cena. A criança não tem lugar ali, não tem existência possível. Ela se aniquila reduzindo-se ao olhar dessa cena de completude entre a mãe e seu irmão mais novo, um olhar que vai retornar de maneira radical na clínica com os adolescentes.

E para lidar com a falta materna, a criança não tem então outra solução a não ser a destruição do recém-chegado, o que será formulado da seguinte forma: "ou ele ou eu". Se não há lugar para os dois, o que prossegue será: "não há lugar para todos na sociedade". Atenção para não deixar as crianças a sós com seus irmãozinhos e irmãzinhas! Evidente que esse processo pode se passar todo no plano da fantasia, como mostra a bela fábula, O pequeno Nicolau, filmada por Laurent Tirard (2010). Ocorre que os jovens em conflito com a lei que transigem para atos extremamente violentos e autodestrutivos passaram não só por uma perda real nos primórdios de sua estruturação psíquica, mas permanecem em situação de perdas severas e contínuas ao longo da vida, numa relação sem mediação com o Outro.

O adolescente do segundo tipo, em todo caso, é um sujeito fechado em uma etapa primitiva de sua constituição psíquica, em uma etapa que se chama narcisismo primário, aquela dos primórdios da constituição do Eu (FREUD, 2004). Essa definição tem importância, pois o momento inaugural em que o Eu se constrói também corresponde à etapa do "estágio do espelho", formalizada por Lacan (1998). A criança tem de se reconhecer no espelho para poder chegar a um sentimento de integridade de seu Eu.

O que nos coloca na via de um momento de construção psíquica relativo ao estádio do espelho é a importância do olhar nos adolescentes. Lesourd destaca sua propensão a ser agredido pelo olhar, sempre um olhar maldoso: "ele me tirou" [gíria usada pelos adolescentes significando "ele me zoou" (estigmatizou)], no sentidode "ele me olhou mal, atravessado".

O olhar do outro é persecutório, o que faz talvez pensar em uma tendência paranoide (MIJOLLA-MELLOR, 2011) desses adolescentes. Esse olhar coincide com o retorno de seu próprio olhar projetado no outro. É sua própria inveja ao encontro do outro que retorna de maneira ameaçadora, algo tanto maior quanto mais o indivíduo for pego nessa economia pulsional invejosa. Essa luta até a morte, saída de um exercício de violência às vezes dos mais radicais, nas quais o outro poderá ser agredido fisicamente, consiste então num exercício de sobrevivência narcísica, de preservação da integridade do Eu ainda tão frágil. É preciso salvar o Eu, mesmo às custas da morte. Nesse caso não se está absolutamente ainda na etapa da transgressão à Lei, já que esta necessita da entrada em cena do pai que virá a inscrever a falta para todos. A figura paterna, ou o que quer que represente um interdito ao desejo ilimitado da mãe, assegurará que todos passem pela falta. É por isso que o gozo que falta a um, para se completar, não se pode buscar no outro, pois o outro não é completo. Essa incompletude é, entretanto, justamente o contrário do que a criança considera quando observa, despeitada, seu irmão recém-nascido no seio de sua mãe.

Morhain nos ensina a reconhecer o valor do ódio em face ao drama do gozo do outro que nos aniquila:

Na medida em que é ainda uma defesa, um último baluarte antes do colapso psíquico (HASSOUN, 1999), o ódio pode ser reparador e constitui para alguns jovens uma expressão positiva da violência e da negatividade, no momento em que a pulsão de destruição é temperada com o ódio pelo objeto, assegurando de algum modo sua consistência (MORHAIN, 2008, p. 135, tradução livre).

A raiva pode então se revelar salvadora pela distância que ela mantém com seu objeto, objeto que é, por isso, preservado. Essa função estruturante da agressividade fora também abordada por Winnicott (2000) em A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional, um texto seminal que atesta a função vital e positiva da agressividade como forma de se diferenciar do outro e como força motriz da apreensão do mundo e da criatividade. Por outro lado, a derivação numa raiva destrutiva, com vistas ao desaparecimento do objeto, em vez de se constituir numa tentativa terapêutica, faria retornar à inveja ameaçando o sujeito... Resta aprimorar essa função: de que modo integrar a raiva na contratransferência? Questão que apenas sinalizamos como fonte de trabalho por se fazer.

Assim, Tom nos mostra sua aflição diante de sua dificuldade de considerar a possibilidade de se inscrever no laço social, pois toda a sua vida, desde os 9 anos, quando ele renunciou ao apoio do pai, se construiu sobre o postulado de que a sociedade não podia lhe dar um lugar, daí seu nível extremo de investimento na gangue, na qual ele põe a integralidade de suas identificações, logo, sua identidade toda.

Embora ele pareça fazer aliança com os educadores, termina por vir com uma pistola à casa, depois acaba por roubar uma bijuteria na família de acolhimento — objeto substituto da figura materna arcaica representada aqui pela mulher da família de acolhimento — essa bijuteria, em forma de coração, lhe teria sido fantasmaticamente oferecida por sua própria mãe.

Como não pensar que Tom se agarrou a esse episódio para colocar na ordem do dia a questão do amor através do presente, a economia do dom que talvez tanto lhe faltou com o desaparecimento prematuro de sua própria mãe? Não haveria outra alternativa a não ser marcar essa falta subtraindo do outro (da mulher da família de acolhimento) seu objeto de amor? Até que ponto essa "subtração" não representaria sua antípoda, uma "soma" a si, na tentativa de se vincular ao outro "pegando" algo dele?

Mais do que uma traição em relação às pessoas que ele aprecia, seu verdadeiro problema seria uma forma de transferência diante das pessoas que aprendeu a apreciar: "O amor me falta". E assim, para que a vida não se reduza a uma luta até a morte pelo gozo: "Como vocês podem me ajudar a me tirar disso?". Afinal, os erros que comete são explícitos, apesar de não diretamente endereçados numa reivindicação transgressiva como a de Samir, já que deixam entrever seu fracasso na forma destrutiva de violência que apresenta. Ele se faz denunciar, ao deixar a arma aparecer, ao não esconder direito ou se livrar do objeto roubado...

Parece fundamental distinguir dois mecanismos muito diferentes — passagem ao ato como transgressão à Lei e passagem ao ato como recurso narcísico de sustentação do Eu — nos atos violentos que a sociedade francesa apenas chama de delinquência, os quais às vezes parecem idênticos em sua manifestação. O acompanhamento desses adolescentes estará certamente mais adaptado a partir disso: para aqueles que se referem a uma transgressão à Lei, tratar-se-á de nortear o trabalho sobre a elaboração do luto do pai; para o segundo tipo, que concerne aos mecanismos narcísicos, o trabalho se norteará sobre a falha narcísica e o trabalho sobre o objeto. Nesse contexto, as atividades de mediação terão um lugar privilegiado.

 

Referências

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Recebido: 12/09/2013
Aprovado: 12/11/2013

 

 

SOBRE OS AUTORES

Wilfried Gontran
Psicólogo, formador de equipes de saúde, professor no Master PRO Enfance Et Adolescence da Université de Toulouse II - Le Mirail. E-mail: wilfried.gontran@gmail.com

Stéphanie Mousset
Doutora em Psicologia e Membro do Laboratoire Cliniques Psychopathologique et Interculturelle na Université Toulouse II - Le Mirail, psicóloga na Protection Judiciaire de la Jeunesse (Toulouse - France). E-mail: stephanie.mousset@yahoo.fr

Marília Etienne Arreguy
Tradução e coautoria. Psicanalista associada ao Fórum do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro; Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação da Universidade Federal Fluminense. E-mail: mariliaetienne@id.uff.br

 

 

1 Trabalho apresentado e debatido na IV Jornada Subjetividade e Educação: conflitos com a lei e com a sociedade - experiências políticas e clínicas, realizado em 17 de julho de 2013, na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.
2 É curioso citar que, desde 1945, o aprisionamento em balneários para adolescentes ainda existe em um país como a Rússia. Na França e no Brasil, tenta-se avançar, mas ainda há muitos problemas quanto ao reconhecimento versus o aprisionamento de jovens. Há questões contraditórias para o exercício da clínica psicanalítica nesse contexto, embora acreditemos que isso não seja completamente impeditivo.