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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.41 Belo Horizonte jul. 2014

 

EDITORIAL

 

Nesta oportunidade de me endereçar aos leitores da revista Estudos de Psicanálise – lembrando que Lacan chamou nossa atenção para o fato de que para fazer série é preciso ao menos três elementos – registro o meu pesar pela perda daquele que compôs essa condição fundamental para que se criasse o Círculo Psicanalítico da Bahia.

Luiz Fernando Pinto, ao lado de Eny Iglesias, sob a orientação de Carlos Pinto Correa tornou possível a inauguração de uma série de psicanalistas que se “tornaram” a partir de um trabalho sob a insígnia do Círculo, em solo baiano na abertura da década de 1970.

Médico, de formação acadêmica, Luiz nos deixou muitas lições psicanalíticas, não apenas através do ensino e da transmissão do texto freudiano, mas também de sua prática cotidiana, no exercício intenso de sua capacidade, habilidade e coragem de transformar, de reciclar, de operar metamorfoses, através de sua criação verdadeiramente artística.

Para ilustrar esta afirmação apresentamos na capa deste número uma de suas muitas e variadas obras que, numa série que poderia ser infinita se não fosse o limite da vida, ilustra muito bem o que visamos numa análise: fazer do resto um novo objeto que possa nos servir na abertura de novos sentidos na busca da metamorfose do sofrimento neurótico em sofrimento comum, como postulava Freud. Criar novas formas de representação que nos permitam dizer o que é impossível pela palavra e realizar os desvios que nos colocam nos trilhamentos da vida evitando o encontro com a morte subjetiva.

A cada vez que me vejo às voltas com a publicação das nossas revistas – Estudos de Psicanálise do CBP e Cógito do CPB – renovo o agradecimento à ajuda de Luiz no momento em que lancei meu desejo de fazer da Cógito uma série. Tínhamos a primeira, lançada em 1996 sob a iniciativa de Lúcia Azevedo, mas precisávamos reunir recursos financeiros e técnicos para saber e poder fazer a continuidade do projeto. Luiz contribuiu, além das orientações de como confeccionar, com a criação de uma marca, de um símbolo que identificasse essa nova entidade, esse novo objeto, engendrando uma imagem que delimitasse o sentido singular de um nome tão repetido na cultura. Esse nome, em sua singularidade, hoje compõe o conjunto de insígnias que definem o Círculo Psicanalítico da Bahia como entidade, entre outras coisas, sem fins lucrativos no campo financeiro, mas certamente com muitos fins lucrativos no campo do simbólico, da cultura.

A constatação de que é difícil e incomum realizar a metamorfose criativa nos leva mais além do campo da arte plástica, abrange o viés da arte do saber, da arte do ensino e da transmissão dos saberes, em todos os níveis e, ainda mais, quando se trata do ensino e do saber psicanalítico, não apenas por sua especificidade discursiva. Nele não se trata apenas de transferir informação; trata-se também de formular articulações, construir ideias, gerar novas formas de representar o que ainda não encontrou uma representação particular.

O objetivo fundamental de uma publicação psicanalítica não se atém apenas à divulgação de novas informações, não se destina ao acúmulo do conhecimento, tal como nas publicações acadêmicas correntes, pois o texto psicanalítico encontra seu maior alcance na aposta da transmissão de um saber que não pode ser transmitido todo e, menos ainda, “de forma dogmática, através de cursos teóricos”, como disse Freud em Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, de 1918. Ficam assim marcadas nesse dizer as incompatibilidades discursivas entre a psicanálise e a universidade que correspondem a discursos próprios, diferentes entre si : o do analista, para a primeira, e o universitário, para a segunda.

A experiência que adquiri em quase 15 anos de envolvimento com os trâmites da criação de cada compilação da Cógito ensinou que as revistas de psicanálise não se encaixam plenamente nos critérios de nenhuma das comissões acadêmicas formadas para avaliar revistas da área de humanas. Por isso elas podem ser avaliadas por qualquer comissão (filosofia, teologia...). Talvez, isso explique a significativa variação da quantificação da sua qualidade, de acordo com os critérios e o ponto de vista de cada comissão que as avalia.

Entretanto, o mais interessante, importante e que justifica qualquer esforço para sustentar a série de revistas sobre os temas da psicanálise é notar que faz parte do movimento e da essência desse saber alguma impossibilidade de ser completamente apreendido, principalmente pelos discursos do mestre e universitário.

Para melhor esclarecer o que tento dizer, recorro a Paolo Lollo que, em texto sobre essa questão, extrai quatro “frações” de saber envolvidas na transmissão: um saber que é transferido e que pode ser medido; um saber que foi transferido, mas que não pôde ser medido; um saber que não pôde ser transferido, se perdeu, não chegou até o aluno a que estava destinado; e um saber que não pôde ser transmitido, mas que emergiu do nada, produzido pelo aluno, por sua pulsão criativa.

Este último é o que visamos com a publicação dos textos que reunimos a cada volume da revista Estudos de Psicanálise; que eles possam catalisar a emergência de outros textos, a geração de novos saberes, mesmo que não capazes de serem medidos, que contribuam para a transmissão e o desenvolvimento da psicanálise em sua forma mais revolucionária e criativa, como tem sido sua vocação desde o início. O que nos move, a nós psicanalistas, é a criação, a metamorfose do saber e este é o objetivo fundamental desta e, acredito, de toda publicação psicanalítica.

Os que desejarem ir mais além nessa linha de pensamento que esbocei podem seguir os textos que citei: FREUD, S. (1919[1918]). Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976, vol. XVII, pp. 217-220, e LOLLO, P. Psicanálise e transmissão do saber. In: http://www.circulopsibahia.org.br/psicanalise-e-transmissao-do-saber.pdf>http://www.uva.br/trivium/edicoes/edicao-i-ano-v/artigos-tematicos/psicanalise-e-transmissao-do-saber.pdf.

Boa leitura.

Cibele Prado Barbieri
Editora

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