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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.41 Belo Horizonte jul. 2014

 

 

A tragédia de Santa Maria

 

The tragedy of Santa Maria

 

 

Paola Giacomini Fachini

ICírculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em 27 de janeiro de 2014 completou um ano da ocorrência da tragédia na boate Kiss, em Santa Maria. Apesar das 242 mortes e devastadoras sequelas em tantos outros jovens, o processo legal ainda se arrasta entre idas e vindas nas instâncias competentes para apurar os fatos. O artigo surge em decorrência de uma reflexão sobre esse episódio e procura encontrar pistas que permitam desvendar as origens de tamanha tragédia.

Palavras-chave: Filicídio; Autoridade; Conceito de barbárie.


ABSTRACT

In January 27, 2014, the tragedy in the Santa Maria’s nigthclub Kiss has completed one year. Despite the 242 casualties and the devastating aftermath to many other youths, the legal suit still lingers in the ins and outs of the Courts with jurisdiction over the trier of fact. This paper comes about as a by-product from the reflections upon this event and seeks to track down the origins of such a tragedy.

Keywords: Filicide, Authority, Concept of barbarity.


 

 

A teoria freudiana está alicerçada sobre a teoria das pulsões: no início, instintos sexuais versus instintos de preservação; depois, instintos do ego versus instintos objetais; por fim, pulsão de vida versus pulsão de morte. Para Freud, a crueldade originária do sadismo é constituinte do psiquismo, especialmente na segunda tópica de sua metapsicologia. Em O mal-estar da civilização (1930) Freud é crítico quanto à fé no progresso da civilização, pois o recalcado sempre tende a voltar com novas roupagens. Esse é o tema deste trabalho.

Na noite de 27 de janeiro de 2013, ocorreu um incêndio em Santa Maria, na boate Kiss, que fez estremecer o coração dos brasileiros frente à vastidão das consequências fatais do evento. Foram 242 mortos, todos jovens, abaixo dos 31 anos, em sua maioria estudantes universitários que comemoravam a formatura de uma turma de agronomia. A tragédia escureceu o céu gaúcho por muitos e muitos dias. Pais perderam filhos, avôs perderam netos, jovens perderam irmãos, amigos, namorados, etc.

A boate era considerada uma das melhores da cidade, um convite à diversão, dança, boa música, tudo o que os jovens desejam encontrar numa festa: a possibilidade de espairecer, encontrar colegas, amigos, se divertir.

E eis que ocorre o incêndio, seguido de inúmeras versões quanto às causas que ocasionaram a morte de tantos jovens, o vaivém de laudos, pareceres e desencontros de alvarás. De quem é a responsabilidade por tamanha tragédia? O inquérito policial e o devido processo legal vão tentar dar uma resposta a essa pergunta terrível.

Aparentemente, o mundo civilizado se insurge contra a pena de morte e contra qualquer violação aos direitos humanos das pessoas.

Todo intelectual é um abolicionista nato. Porém, ao mesmo tempo que se abole um certo tipo de condenação à morte legal, continua-se a matar no trânsito, nas guerras do tráfico, nos esportes radicais, nas filas do SUS, sem falar da guerra civil que cerca o crack.

Tantos episódios trágicos das últimas décadas nos fizeram pensar que o morticínio estaria para sempre afastado, pois a civilização estaria progredindo. As vivências trágicas do holocausto, a catástrofe dos gulags, as rebeliões nos países islâmicos nos fizeram pensar que essas tragédias jamais seriam recalcadas.

Ao discursar sobre o mundo contemporâneo, Derrida (2004, p. 118) propõe um programa de despertar das consciências, ou seja, criar

[...] uma nova Internacional para lutar contra as dez chagas da nova ordem mundial: desemprego, exclusão de exilados, guerras econômicas, tráfico de armas, etnicismo – fundado no solo e no sangue –, poder dos estados fantasmas, máfia, drogas.

Além disso, sugere uma “declaração sobre o horror do estado do mundo”.

Em Totem e tabu Freud (1913) diz que o ódio é mais antigo que o amor e que o primeiro sentimento dos irmãos entre si é o ódio, e não o amor. Nesse texto, Freud caracteriza a horda primitiva constituída por um pai todo-poderoso e implacável. Através do relato mítico do assassinato do pai e da refeição totêmica, Freud faz compreender a violência que todo pai exerce sobre seu filho e a violência que todo filho exerce sobre seu pai. Essa violência é necessária tanto para a constituição do sujeito, quanto para garantir sua sobrevivência. Assim, o mal-estar instalado com a morte do pai no clã fraterno se torna marca indelével na cultura e na constituição dos laços sociais. Para Freud, a sociedade humana está fundada sobre a cumplicidade em um grande crime.

Segundo Figueiredo (2000, p. 148):

A rivalidade entre irmãos potencializa-se com a morte do pai, e a solução pela via da renúncia coletiva aos excessos pulsionais só se torna aceitável porque na sua ausência se instalaria o caos e a luta de todos contra todos. Os discursos e práticas civilizatórias em que a solidariedade fraterna é sempre realçada (formações reativas) tentam escamotear as origens torpes e agressivas das éticas da solidariedade [...] Esse será o dote, a herança de cada um de nós da qual nunca poderemos descartar definitivamente.

O psicanalista argentino Arnaldo Rascovsky (1970), em seu clássico La matanza de los hijos, diz que a maior parte das concepções científicas e religiosas insistiram no crime do parricídio, minimizando ou negando o crime essencial – o assassinato do filho – com suas variantes. Para ele o filicídio antecede e deu origem ao parricídio, o que pode ser comprovado pelos dados antropológicos nas culturas primitivas, na mitologia, nos ritos de iniciação e em várias instituições sociais arcaicas e modernas.

[Los hijos] sobrevivientes quedaban entonces sometidos al servicio permanente de los padres o de la comunidad gerontocrática que organizó instituciones sacrificiales permanentes, de las cuales la más característica y persistente es la guerra. No es casual que casi todos los ejércitos del mundo, desde tiempos lejanos, denominen infantería a sus cuerpos más sacrificados (RASCOVSKY, 1970, p. 36-7).

Para Rascovsky (1970) houve uma tendência a esconder o termo “filicídio” e falar em infanticídio, especialmente na esfera criminal, mostrando a intensidade da defesa diante da força linguística de um fato que trata a palavra “filicídio” como se tabu fosse. A partir do filicídio primário, a sociedade organizou instituições permanentes de sacrifício dos filhos jovens, como na guerra, onde a infantaria é a arma que precede as demais.

Do filicídio primitivo ao cristianismo e ao capitalismo houve uma evolução acompanhada de uma amnésia coletiva. Hoje as formas de violência são mais sofisticadas, e as pessoas – às vezes – promovem a opressão sob o disfarce da emancipação e do progresso científico. Forças filicidas destroem o filho tanto ao matá-lo fisicamente quanto ao impedi-lo de se diferenciar com necessidades e desejos diferentes dos de seus pais.

O assassinato do filho está presente nos mitos básicos que fundaram a cultura. Na mitologia grega, temos Urano, Gea, Cronos, Pélope, Crésipo, Laio e Édipo. Na cultura judaico-cristã, no Gênesis, Deus exige de Abraão o sacrifício de Isaac. De forma atenuada, temos a circuncisão; no Novo Testamento, a morte de Jesus, o filho sacrificado em nome do Pai.

Estudando a sociedade romana, Hannah Arendt (1972) observa que havia uma distinção entre potestas e auctoritas, as duas vertentes do poder que confluíam na figura do imperador. Para a autora, a autoridade se funda sobre a transmissão das experiências, a qual permite o viver junto, o laço social. A carência dessa transmissão provoca o desligamento, visto que, se vivemos no presente, para que criar elos?

Arendt (1972) escreve que retirar a autoridade da vida política e da vida pública pode significar que cada um tenha que se responsabilizar pelos rumos do mundo. mas pode tamb´em significar que, conscientemente ou não, estamos negando as exigências do mundo e a sua necessidade de ordem. Estamos rejeitando qualquer responsabilidade pelo mundo: tanto de dar ordens, como de obedecê-las.

Assim, a noção de autoridade permite transmitir valores graças à sua força ligante, que permite passar de uma geração a outras experiências criadoras de novas experiências.

Em 1933, o filósofo Walter Benjamim no texto Experiência e pobreza pela primeira vez analisa a perda da capacidade de contar histórias e, consequentemente, a perda de uma transmissão moral e de experiências psíquicas transgeracionais. Em estudos posteriores, situa o término da Primeira Guerra Mundial como uma época na qual os indivíduos, ao retornar da guerra, se tornaram incapazes de relatar suas experiências de guerra:

Mais pobres de experiências comunicáveis, e não mais ricos. [...] Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes (BENJAMIN, 1996, p. 115).

As experiências-limite de fome, dor, vergonha e humilhação, a desmoralização coletiva dessas experiências tornaram os indivíduos incapazes de comunicá-las. Na medida em que os valores tradicionais da comunidade foram se transformando em relações meramente comerciais, romperam-se gradualmente os modos de transmissão das narrativas das experiências de vida e do vivido entre as gerações. Os mais jovens não encontram mais nos que os antecedem ressonância ética ou moral numa realidade social cada vez mais e mais instrumentalizada e reificada.

Nessa perspectiva, encontramos em Benjamim, uma nova noção de barbárie, qual seja, da perda da possibilidade da transmissão através dos vínculos transgeracionais, mas também das experiências culturais. O lado positivo dessas experiências é a produção intelectual e artística, que cresce rompendo com os padrões estabelecidos e conseguem criar uma nova linguagem a partir disso; por outro lado, geram uma desilusão radical.

A esse desmapeamento em face das autoridades e a respeito da crise de autoridade no mundo contemporâneo, Jurandir Freire Costa (2004) diz que o lugar da autoridade foi tomado pela celebridade:

A celebridade é a autoridade do provisório. Seus representantes sociais são os que sabem aliar moda e tecnologia a serviço da moral do entretenimento. Afinal com esta moral, a celebridade é programada para idolatrar o momentâneo e desaparecer com ele [...] A pessoa célebre não necessita ter predicados excepcionais, pois, mesmo se os possui, o que importa é seu potencial de entreter [...] O que vale para o sucesso vale para os ideais morais. A celebridade costuma falar a língua da indulgência moral [...] O importante não é pensar no que se faz ou se acredita, mas a leveza, o alto astral (COSTA, 2004, p. 171).

A sociedade contemporânea se autoinstitui, estabelecendo que todos são iguais e que cada um tem um saber. Por um lado, os jovens têm muita dificuldade em aceitar o princípio da autoridade e da dissimetria do lugar; por outro, os adultos que deveriam ser os portadores dessa auctoritas, representantes da função protetora do pai, que transmite ao filho as noções de vida, cuidado, segurança e saúde falharam.

Naquela terrível noite em Santa Maria, observamos e refletimos sobre a ambivalência da sociedade em relação aos membros mais jovens!

São sabidos os princípios de segurança que norteiam a vida das pessoas e das instituições. Há regulamentos municipais, leis estaduais e federais que tratam os procedimentos de prevenção a incêndio. No entanto, tudo falhou em Santa Maria: espaço restrito demais, número de pessoas acima da capacidade, jogos pirotécnicos proibidos, falta de portas de emergência, falta de alvará de funcionamento, falta de fiscalização, etc.

A autoridade deveria ser um atributo do poder. O poder constituído tem sua existência justificada para tornar possível o convívio humano. No entanto, nesse trágico episódio vimos o somatório das consequências de várias irresponsabilidades. Cada instância atribui à outra o poder de vetar, se eximindo de sua própria participação na ocorrência da tragédia.

O slogan dos anos 1970 – é proibido proibir –, responsável por tantos distúrbios mentais e problemas de comportamento, parecia erradicado, já que o pêndulo da história se encarrega de encontrar um equilíbrio ao longo do tempo. A esperança de vencer a barbárie através da razão, da inteligência e da cultura fracassa de novo.

Frente à realidade de 242 mortes de jovens, é difícil não pensar no tema do filicídio. As autoridades, representantes dos pais de outrora, não protegem seus filhos, impulsionando-os cruelmente para o sacrifício. O ideal de juventude e de esperança, bem como ideal do superego protetor da sociedade e das autoridades morreu um pouco em Santa Maria.

A morte real fez silenciar para sempre a vida dessa cidade, dos familiares e de todos nós, que morremos um pouco junto com eles, na constatação da fragilidade de nossa existência e da dor dos sobreviventes, que, além do sofrimento, passam por dificuldades financeiras.

Nesse momento a população de Santa Maria se encontra dividida em face da tragédia ocorrida há um ano. O poder público tem sido omisso e irresponsável quanto a punir os responsáveis que escapam uns após os outros pelos meandros dos incontáveis recursos oferecidos pela justiça brasileira.

Os pais dos jovens mortos se dividem entre aqueles que buscam no silêncio e no recolhimento um lugar para elaborar a perda e a tragédia ocorrida, sem abdicar de exigir justiça; dos pais para quem o silêncio tem o significado do esquecimento desses filhos mortos. Para esses pais o luto se encontra atrelado a um desenlace judicial.

Ao par da tragédia das famílias dos 242 jovens mortos, 145 adolescentes sobreviveram com graves queimaduras e gravíssimos problemas respiratórios. Por sua vez há rumores sobre a extinção do Centro Integrado de Assistência às Vítimas de Acidente (CIAVA), um ambulatório montado pelo Ministério da Saúde em Santa Maria para recuperação das vítimas sobreviventes do incêndio, que não vêm mais recebendo os recursos necessários da União para a manutenção dos serviços.

A boate Kiss estava localizada numa das principais ruas da cidade de Santa Maria. Como se se trata de uma região de alta valorização imobiliária, as tentativas da comunidade em transformar o local em um monumento às vítimas dificilmente irão prosperar em face dos interesses econômicos existentes e da falta de empenho do poder público nesse sentido.

Por sua vez, a economia de Santa Maria foi fortemente impactada com o episódio. Segundo seus moradores, a cidade passou a ser “uma cidade-fantasma”. Todos os novos empreendimentos foram suspensos, e o comércio e a indústria foram profundamente afetados. Se, por um lado, a população esteve solidária aos familiares da tragédia, nesse momento ela se encontra dividida. Todo o empenho das famílias das vítimas em manter a mídia participando em face da omissão das decisões e das punições dos culpados é atualmente repudiado pelo restante da população que reivindica retomar suas vidas e a economia da cidade sem os fantasmas da tragédia. Situação difícil e paradoxal para a cidade.

Alias, há mais de quinhentos anos Maquiavel (1976) já ensinava que dividir era a arte de governar...

Por outro lado, revendo inúmeras vezes, na tela da TV as imagens daquela noite de horror, nos sentimos comovidos ao observar a incrível solidariedade dos jovens que prestaram socorro aos que estavam dentro da boate. Inúmeros jovens foram salvos por esses heroicos irmãos que colocaram sua vida em perigo para salvar os demais. Surpreende-nos observar como a negligência dos adultos se opõe ao forte elo de fraternidade desses jovens. Frente a essa constatação, ficamos perplexos e menos pessimistas ao olhar o futuro.

 

Referências

ARENDT, H. La crise de la culture. Paris: Gallimard, 1972.         [ Links ]

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. In: ______. Obras escolhidas. 10. reimpr. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996. v. 1.         [ Links ]

COSTA, J. F. O vestígio e a aura. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.         [ Links ]

DERRIDA, J; ROUDINESCO, E. De que amanhã. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.         [ Links ]

FIGUEIREDO, L. C. Sobre pais e irmãos - mazelas da democracia no Brasil. In: KEHL, M. R. (Org.). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.         [ Links ]

FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: ______. Totem e tabu e outros trabalhos (1913-1914). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro, Imago, 1996. p. 21-162. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 13).         [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 67-153. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).         [ Links ]

MAQUIAVEL, N. O príncipe. Tradução de Roberto Grassi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.         [ Links ]

RASCOVSKY, A. La matanza de los hijos. In: ______. La matanza de los hijos y otros ensayos. Buenos Aires: Kargieman, 1970.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Praça Dom Feliciano, 26/304 - Centro Histórico
90020-160 - Porto Alegre/RS
E-mail: paola.fachini@gmail.com

Recebido: 10/03/2014
Aprovado: 31/03/2014

 

 

SOBRE A AUTORA

Paola Giacomini Fachini
Psicanalista associada ao Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

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