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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.42 Belo Horizonte dez. 2014

 

 

A criança do marketing: uma leitura ferencziana1

 

The Marketing child: a ferenczian reading

 

 

Carlos Mario Alvarez

I Paris 2

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A teoria do trauma ferencziana – que pensa a cisão entre dois mundos: o da criança e o dos adultos, onde a linguagem da ternura infantil pode ser atropelada pela linguagem da paixão dos adultos – é um importante instrumento teórico para se pensar psicanaliticamente o uso abusivo e violento que as práticas contemporâneas do marketing exercem sobre as crianças.

Palavras-chave: Ferenczi, Trauma, Crianças, Ternura, Paixão, Violência, Abuso, Marketing.


ABSTRACT

The Ferenczi’s theory of trauma – that establishes the split between two worlds: the child’s and the adult’s, where the child’s language of tenderness can be run over by the adult’s language of passion – is an important psychoanalytic theoretical tool to better understand the violence and abuse that contemporary marketing practices have on children.

Keywords: Ferenczi, Trauma, Children, Tenderness, Passion, Violence, Abuse, Marketing.


 

 

Ferenczi foi o psicanalista que introduziu a criança na psicanálise como modalidade de formação psíquica. Não o fez de forma a entender sua gênese ou pensá-la como a matriz pulsional que vai dar origem ao adulto após a ação do recalque, tampouco negou a teoria da sexualidade infantil trazida por Freud. Ele trouxe a criança sob uma perspectiva muito particular: a criança em sua relação de dependência para com o adulto. Com isso, estabeleceu uma diferença entre essas duas formações psíquicas ao mostrar que parte fundamental do psiquismo da criança será formada a partir de uma relação de troca que se estabelecerá em torno da linguagem.

Dois mundos, marcados por afecções corporais diferentes, entrarão em contato podendo gerar ou não formas de entendimento mútuo: de um lado, o adulto, investido de suas intenções, que, quaisquer que sejam, serão, para a criança, sempre desejantes e afirmativas; de outro lado, a criança, cuja modalidade de desejo é predominantemente compatível com suas fantasias e potências autoeróticas, mas carecem ainda de uma certa autonomia e segurança, e podem sob circunstâncias particulares ser atravessadas pelas urgências e violências impostas pela superioridade biológica do adulto. A essa diferença entre adulto e criança, Ferenczi deu o nome de embate entre paixão e ternura.

Para Ferenczi, a criança, a fim de alcançar uma existência psíquica satisfatória, deverá ser necessariamente acolhida pelo adulto sob o signo da ternura. Cabe ao adulto uma função de preservação e respeito dos signos da ternura. Somente um adulto que foi tocado por essa dimensão será capaz de desenvolver esse papel. Em outras palavras, para se firmar psiquicamente, a criança depende de um adulto que comungue com ela os elementos da ternura.

A criança pensada por Ferenczi é habitada por uma temporária fragilidade. Ela precisa necessariamente do adulto. Se acontecer de o adulto ser cruel e violento, o que toma lugar é da ordem da catástrofe: um atropelamento marcado por um corte de temporalidades onde o tempo do adulto sequestra o da criança e a escraviza. Eis aqui uma boa expressão para o que Ferenczi detecta: submissão da criança pelo adulto. Quando a linguagem falha – e para Ferenczi, a falha da linguagem é sempre uma ausência de empatia, de acolhimento e de respeito mútuo – então há uma espécie de morte psíquica da integridade infantil, e mecanismos de defesa são postos em operação de maneira emergencial a tentar debelar os impactos destrutivos do apagamento psíquico.

É nesse ponto que Ferenczi nos fornece a seguinte explicação: a criança, para sobreviver, é obrigada a introjetar de forma maciça o adulto, seus desejos e, sobretudo, sua culpa. A criança pós-trauma é uma criança que não tem outra escolha senão identificar-se ao desejo do adulto e passar a viver em função de elementos que não são consoantes com suas experiências lúdicas primevas.

A criança morre, e nasce naquele corpo, um ser marcado por uma espécie de arritmia pulsional.2 O que antes era autoerótico, sob o sentido de uma codificação do corpo através das experiências de júbilo da criança agora passa a ser uma massa de afetos cuja permanência e insistência geram medo, pânico, obsessões, esvanecimentos psíquicos e necessidade de adaptação a uma nova e estranha realidade. A criança é levada a engolir o adulto e a tornar-se parte dele. O que se quebrou aí foi uma relação de equilíbrio. Mais do que isso, é a confiança que a criança tinha no adulto e, portanto, na sua vida, que se perdeu.

 

II

O século XXI vive freneticamente animado por um conceito que Ferenczi não conhecia: o marketing. O que é marketing? São conjuntos estratégicos de inteligência e ações que visam cooptar de forma extremada e agressiva, mas também de forma convidativa e sedutora, os consumidores de forma tal que escolham caminhos desejados pelos grupos que se utilizam do marketing para vender produtos, serviços e ideias. O marketing se materializa através de práticas discursivas que encontram seus argumentos emprestados aos achados da psicanálise, da psicologia, da antropologia e de qualquer outro campo de conhecimento que, de alguma maneira, seja capaz de mapear os caminhos e as preferências dos desejos e comportamentos humanos. Aqui, o conhecimento é utilizado como via expressamente indutora de laços sociais.

Através das ações de marketing se estabelecem canais de acesso a toda população mundial que seja capaz de consumir. O marketing produz, de forma sistemática, ousada e dissimulada, realidades amplamente sedutoras e é capaz de ensinar as pessoas a desejar de acordo com seus interesses. O marketing é uma pedagogia do consumo dirigida às massas, mas também é capaz de atingir individualmente determinados grupos de pessoas. Mais do que isso, através das pesquisas de marketing é possível criar identidades de grupos baseadas em suas tendências de consumo. O marketing cria novas etnias que agora são baseadas em perfis de consumo e seus respectivos potenciais. O chamado relacionamento com o cliente é uma forma eficaz de viabilizar vendas e manter acesa a chama do consumo. Em tempos atuais, o relacionamento que impera é o mercadológico.

Entre as ficções criadas pela prática do marketing, está a ideia de que as pessoas são livres para experimentar e escolher produtos e serviços de maneira espontânea. Por detrás de toda a violência que incita o consumo de forma compulsória e compulsiva está a ideia de que a felicidade é passível de ser traduzida em sonhos realizáveis. Liberdade, paz de espírito, autonomia... É através desse imaginário que se é capaz de promover uma adesão maciça ao universo do consumo. Em verdade, substituiu-se a violência e a repressão físicas pela cooptação psíquica. Vive-se em uma época em que parte da violência entre os homens conseguiu deixar de lado as práticas de dominação ostensiva para passar a fazê-la de forma dissimulada. O agressor, como nos ensina Ferenczi, é sempre aquele que nos inspira confiança. A agressão traumática no sentido ferencziano é sempre feita de forma a confundir as intenções e induzir múltiplos sentidos.

Em nome da liberdade e do gozo máximo, tudo é vendável. Tudo deve ser comprável. As vias de facilitação ao consumo se multiplicam a cada dia. Trabalha-se com processos de euforização. Pontos de venda, campanhas milionárias, prêmios, promoções liquidações e sobretudo dinheiro a preço de banana, todos esses artifícios regulam a vida das pessoas. Com isso, parece estar perdida uma certa capacidade de defesa que permitiria às pessoas os movimentos de questionamento, evitação e mesmo recusa desses padrões de realidade.

Deve-se falar de over marketing? Talvez esse conceito represente bem a ideia do que se produz hoje em dia: todos os excessos devem ser buscados uma vez que não há sociedade democrática contemporânea que tenha conseguido pensar uma forma inteligente de veicular movimentos que suscitem a vontade de parar ou reduzir o consumo. Ao contrário, as palavras de ordem são sempre ligadas às ideias de progresso, desenvolvimento, riqueza, diversidade, liberdade e felicidade. Quem hoje é capaz de recusar essas maravilhas ideológicas?

A perspectiva do excesso, da euforia e da ausência de limites e critérios faz da criança um mercado consumidor como outro qualquer. Na verdade, por constatar que a população infantil cresce de forma ostensiva, o marketing desenvolveu técnicas e estratégias para tornar as crianças vorazes consumidores. Criança, como conceito, tal qual Ferenczi o pensou, é uma categoria em extinção. Deve-se falar em pequenos adultos, em consumidores mirins, pois, para o marketing, não há diferenças nem particularidades a serem respeitadas. É preciso invadir o quanto antes o mundo dos pequenos para fidelizá-los e acostumá-los a comprar. O marketing deve ser entendido como uma força constante que visa promover o gozo através do excesso. Ele apreende as características próprias da linguagem infantil e as reproduz a fim de investir as crianças de maneira tal que suas forças estejam todas orientadas para o uso e consumo desenfreado.

As crianças são, em verdade, as melhores consumidoras. Se o marketing quer o excesso do consumo, quem melhor do que as crianças para embarcar nessa viagem? Afinal de contas as crianças ainda não conhecem bem os limites, não aceitam ser contrariadas e não conseguem pensar de forma a distinguir valores, custo-benefício, prejuízos. As crianças são seres afinados com o deslumbramento das coisas mais hipnóticas, confiam cegamente no que lhes dizem ser bom e não sabem diferenciar de forma adequada o princípio do prazer do princípio de realidade.

A ternura infantil é totalmente complacente à violência imposta pelo marketing. A criança, terna, tende a confiar e se entregar de forma ampla e sem questionamento ao adulto que admira. Trata-se de processos de hipnose e submissão.

Sabedores disso, os estrategistas de marketing descobriram que, quanto mais cedo se tiver acesso às crianças, mais rápido se poderá moldar seus movimentos desejantes e comportamentos de acordo com a lógica do consumo. Da criança espera-se que tenha o mais rapidamente o poder decisório de consumir influenciando, inclusive, seus pais. Dos adultos espera-se que ajam como crianças de maneira a colocar a vontade compulsiva de comprar na frente de qualquer questionamento maior. Dessa forma, o mundo do marketing homogeneíza crianças e adultos dando a eles um estatuto único: potenciais consumidores. O desaparecimento das fronteiras entre adulto e criança, em parte engendrado pelo marketing, constitui-se em um problema de graves consequências.

Agora, temos a figura da indústria do marketing como sendo o adulto do adulto. Ou seja, trata-se de uma questão de força: a indústria de marketing torna o adulto uma criança, pois o cativa em sua infantilidade. Infantilizado e violentado, esse adulto é incapaz de se manter íntegro em suas relações afetivas e, desta feita, é incapaz de ser suporte para a experiência da ternura infantil. Com a ausência do adulto respeitador da ternura, a criança se vê levada a interagir diretamente com os elementos oferecidos pelo marketing. Assim, as crianças passam a ser amadas e educadas não sob o signo da ternura, mas sim sob o signo da euforia. Euforia aliada à velocidade e onipresença dos elementos que surgem para ocupar o imaginário infantil. Essa euforia não é outra coisa senão a expressão de desespero coletivo de pessoas que são invadidas e desabilitadas em sua capacidade de gerenciar o princípio do prazer.

Para a criança, criou-se o chamado ‘marketing 360’. Essa estratégia prevê que, não importa o que faça uma criança, não importa de que gadget ela se utilize (celulares, internet, DVDs, filmes, video games, etc.), ela sempre estará apta a entrar em contato, direta ou indiretamente, com produtos para serem consumidos. Que fique claro: não há pudor nem pensamento de preservação do mundo infantil que seja levado em consideração pelo marketing. Não há respeito a temporalidades e desconhecem-se as particularidades psíquicas. O marketing é a encarnação de um adulto cujo objeto de desejo é a criança. Não estamos longe, aqui, do que hoje se denomina de pedofilia.

As estratégias de marketing infantil não levam em conta o que Ferenczi chamou à atenção enquanto ternura. Ao contrário, o marketing infantil seduz a criança para que ela se torne adulta mais rapidamente, e sua eficácia é tal que as crianças, pouco a pouco, se tornam elas mesmas agentes de marketing.

O mundo ferencziano infantil é agora atacado não mais por um agressor, mas por múltiplos agressores. A criança da ternura, aquela que precisava contar com a benevolência do adulto, agora é chamada ao mundo voraz do consumo através de técnicas e estratégias semelhantes às que são utilizadas para atrair os adultos.

A infância vem, pouco a pouco, sendo uma concepção superada. Em nome de que se deve preservar a infância? Os pais de hoje em dia, e mesmo os professores das escolas, cedo perdem importância e exclusividade em seus postos e dão lugar a novos educadores (na maioria das vezes eletrônicos ou virtuais) que, pelas vias do marketing, inserirão as crianças no mundo maravilhoso das compras e da rapidez do gozo. O excesso que leva a crer que nada nunca é suficiente, que há sempre um brinquedo ou produto a mais para se comprar, o convite à criança para navegar no mundo do adulto através das múltiplas portas interativas que se abrem sem censura e sem critérios tem por objetivo igualar a criança ao adulto o quanto antes para que ela se torne cada vez mais um elemento ativo no consumo.

A palavra de ordem parece ser: poder para as crianças!

Se há uma epidemia de crianças hiperativas isso se dá como resposta psíquica à superexposição e superexcitação a que estão sendo submetidas. As crianças, com suas pulsões epistemológicas à flor da pele, fazem adesão maciça ao mundo maravilhoso oferecido pelo marketing. Identificadas completamente aos signos que emanam em 360’, elas parecem responder de forma intensa e voraz. Sabe-se que, qualquer que seja ele, o prazer sexual, quando instalado no circuito pulsional é de difícil renúncia.

Hoje em dia, uma criança, que passa a ser concebida como parceira (segundo a linguagem do marketing) representa força de consumo indispensável. É fato que isso a torna também mais esperta e mais autônoma no que diz respeito a seus pensamentos de individualidade. Crianças estão se tornando rapidamente seres capazes de discutir, argumentar e brigar de igual para igual com adultos. Elas, de fato, são neoadultos, isto é, elas se emancipam rapidamente e criam uma nova forma adulta de ser.

Em verdade, o over marketing substituiu o papel que exerciam a escola e a família nos tempos da sociedade de controle. As crianças são agora também educadas pela sagacidade que adquirem entrando em contato mais rapidamente com o mundo adulto.

A invasão do marketing no mundo infantil, na constituição das formas desejantes das crianças, muitas vezes ganha contornos de violência física e sexual, pois os conteúdos adultos são sempre versões de desejos agressivos e sexuais recalcados. Sendo assim, devemos nos perguntar o seguinte: a ternura pensada por Ferenczi, ou seja, aquele mundo onde as coisas ainda não são maliciosas, mas existem em seu estatuto lúdico, em sua amabilidade espontânea, o mundo das relações amistosas e amorosas envolvidas por compreensão e comprometimento mútuo, onde supostamente estaria ausente qualquer forma de imaginário sexual passional do adulto, esse mundo da ternura capaz de distinguir a criança do adulto é indispensável para a saúde psíquica das crianças? Em outras palavras: a criança sobrevive sem a ternura?

Se entendermos, com Ferenczi, que a ternura tem uma função narcísica de garantir as redes de fixação de elementos como amor próprio, autoestima e capacidade de renúncia pulsional, então diremos que a ternura será sempre um estágio ou estado psíquico indispensável para a constituição de um psiquismo mais homeostático e, portanto, de suma importância para evitar a fragilidade psíquica. Isso significa dizer que uma relação suficientemente boa entre adulto e criança deve ainda ser entendida como o núcleo fundamental para a constituição de um psiquismo capaz de resistir aos atentados e infortúnios advindos do exterior.

A permanência da experiência da ternura ainda está na dependência da disponibilidade afetiva que lhe emprestará o adulto. Se os pais ou responsáveis diretos pela constituição das malhas afetivas infantis se abstiverem de exercer suas funções, então todo o mundo invasivo de um outro agressor como o do marketing será capaz de saquear o direito da experiência da ternura infantil. Em verdade, esse papel que hoje é exercido pelo marketing não é nenhuma novidade. As crianças sempre foram alvo de adultos. Sempre foram cobiçadas sexualmente por atitudes que desconhecem os limites da ternura.

Por outro lado, a criança – segundo nos ensina Ferenczi, através dos processos de identificação maciça com o agressor – tem imensa disponibilidade e desejo de se tornar adulta. Toda criança almejará o tesão do adulto se isso lhe for acessível. A ternura não é um estágio indispensável, mas sem ela um pequeno corpo deverá tolerar e absorver os impactos de investimentos de um grande corpo. Tornar-se grande é uma conquista que se dá através da experiência. Isso implica tempo e elaboração. A ternura é, sem dúvida, a condição não só de estabelecimento das condições psíquicas fundamentais para consolidação da existência psíquica mas também o elemento de ligação entre criança e adulto.

A título de síntese, enumero seis tópicos conclusivos que permitirão a compreensão dos argumentos apresentados neste trabalho:

1. Ao emancipar a criança e infantilizar o adulto, tirando-lhes a diferença psíquica, o marketing age na criação de uma língua exclusiva: o ser potente-para-consumir. Essa nova potência é gerada e geradora de euforia. A euforia remete os seres a uma adesão totalizante junto aos elementos que são oferecidos para consumo. O adulto, que deveria cuidar do espaço de ternura infantil, se ausenta tornando-se ele mesmo uma criança, e a criança, que poderia contar com o adulto, passa cedo a, com ele, rivalizar e negociar sua própria potência de gozo. Resultado: hipnose do adulto e hipnose da criança induzida pela ação do marketing gerando uma reatualização do que Ferenczi chamou de confusão de línguas.

2. O que é traumático, a partir do pensamento ferencziano, é o impacto que resulta do embate entre forte e fraco, grande e pequeno. Quanto maior a dissimetria, quanto maior a imposição de um em relação a outro, maior a potência de choque cujos efeitos são o trauma. Assim, o marketing, cuja força é de uma indústria e os investimentos compatíveis com valores orçamentários expressivos para uma nação, inegavelmente exerce uma força desproporcional e, portanto, traumática, na direção da criança e também do adulto infantilizado.

3. O marketing enquanto agressor contínuo é capaz de engendrar desejos e impor caminhos de realidade psíquica previamente testados em laboratório. Isso quer dizer que sua força de ação é suficientemente forte para derrubar as proteções que poderiam haver entre o adulto e a criança em âmbito familiar. O que se perde é a intimidade do lar, que passa a ser atravessada pela onipresença de elementos midiáticos e cria microlares dentro do lar. Desta feita, adultos e crianças compartilham espaços físicos, mas cada vez mais interagem com seus gadgets e softwares. Hoje em dia, é possível estar à mesa de jantar, ou mesmo compartilhando a sala de estar com familiares, mas cada um conectado à sua própria rede virtual.

4. É verdade que, ao emancipar a criança, o marketing pode, em muitas situações, estar dando a ela condições para que se livre do adulto familiar agressor. No entanto, por mais que uma criança seja capaz de argumentar e de se defender do adulto familiar agressor através de gadgets, softwares e redes sociais, ela será sempre um ser frágil cuja imaturidade biológica a fará dependente dos cuidados do adulto. Nesse sentido, não é possível falar de uma superação da criança em relação ao adulto através da realidade virtual já que uma criança sempre dependerá dos signos de ternura a serem também sinalizados pelo adulto.

5. Há que pensar, hoje em dia, o que significa para as pessoas a noção de cuidado. Cuidar da criança, cuidar da família, cuidar da relação amorosa, cuidar da amizade. Essa dimensão do cuidado deve ser incluída dentro das discussões da clínica psicanalítica, pois ela é talvez o grande possibilitador de defesa e criação de força psíquica capaz de evitar o saqueamento total do corpo pelas forças violentas do marketing. O cuidado remete a uma relação de amor e respeito à história individual de todo corpo que se viu chamado a vir-a-ser. Diz respeito também a um respeito à preservação dos códigos de amor e mútuo respeito que são indispensáveis na constituição de espaços psíquicos fluidos e criativos. Não faço aqui nada senão retomar uma questão que foi marca da clínica ferencziana e que ganhou muitos adeptos ao longo da história.

6. Por fim, é preciso dizer que a teoria psicanalítica ferencziana do trauma e suas propostas clínicas marcadas pelos signos da empatia, do “sentir com” e do tato psicológico são a matriz de um pensamento cuja importância e atualidade são inequívocas. O legado de Ferenczi deve poder interessar aos psicanalistas que, assim como ele, pensam a psicanálise como dispositivo capaz de diminuir os impactos psíquicos violentos advindos dos encontros entre adultos e crianças.

 

Referências

FERENCZI, S. A adaptação da família à criança (1928). São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 1-13. (Obras completas, v. 4).         [ Links ]

FERENCZI, S. A criança mal acolhida e sua pulsão de morte (1929). São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 47-51. (Obras completas, v. 4).         [ Links ]

FERENCZI, S. Análise de crianças com adultos (1931). São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 69-83. (Obras completas, v. 4).         [ Links ]

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FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica (1928). São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 25-36. (Obras completas, v. 4).         [ Links ]

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FERENCZI, S. Princípio do relaxamento e neocatarse (1930). São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 53-68. (Obras completas, v. 4).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Ataulfo de Paiva, 1251, sala 609 - Leblon
22440-034 - Rio de Janeiro - RJ
E-mail: carlosmario@terra.com.br

Recebido: 17/10/2014
Aprovado: 21/10/2014

 

 

SOBRE O AUTOR

Carlos Mario Alvarez
Psicanalista. Psicólogo, PUC Rio. Mestre em teoria psicanalítica, UFRJ. Doutor em literatura, PUC Rio. Professor convidado de Paris 2, Ciffop. Membro fundador e titular da Formação Freudiana.

 

 

1 Trabalho apresentado na International Ferenczi Conferenczi, Faces of Trauma, em Budapeste, 2 jun. 2012.
2 Incidências violentas e desordenadas de elementos que instauram uma angústia dilacerante continuada. Essa experiência é marcada pelo atravessamento de temporalidades que se multiplicam e impedem uma sincronicidade harmônica capaz de apaziguamento psíquico, daí a recorrência à ideia de arritmia. A arritmia pulsional se instala e toma o lugar da ternura.

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