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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.42 Belo Horizonte Dec. 2014

 

 

Psicopatologia psicanalítica: subjetividade e alteridade contemporâneas

 

Psychoanalytic psychopathology: contemporaneous and alterity

 

 

Francisco de Assis DuqueI; Ana Cristina de Araújo ViannaI

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, faz-se uma reflexão acerca dos estudos sobre psicopatologia e sua aplicação no campo psicanalítico ao considerar aspectos da subjetividade e alteridade contemporâneas. Para tanto, abordam-se as modificações da constituição da família na história e a influência dessas modificações na imago paterna, diferenciando-a da função paterna. Aborda-se também o sintoma enquanto expressão da verdade do inconsciente e o paradoxo do diagnóstico psicanalítico, bem como se discute o enlaçamento do “estranho” com a alteridade.

Palavras-chave: Psicanálise, Psicopatologia, Subjetividade, Alteridade.


ABSTRACT

This paper holds a reflection about the studies on psychopathology and its application to the psychoanalytic domain when considering aspects of contemporary subjectivity and alterity. It addresses to the changes in family pattern through history and the influence of these changes over the paternal imago, distinguishing it from the paternal function. It addresses the symptom as an expression of the truth of the unconscious and the paradox of psychoanalytic diagnosis. It discusses the bonding of “weird” with alterity.

Keywords: Psychoanalysis, Psychopathology, Subjectivity, Alterity.


 

 

Pensar a psicopatologia a partir da psicanálise é um desafio, uma vez que a “psicopatologização” da subjetividade humana está cada vez mais presente no discurso hegemônico na área da saúde mental.

Psicopatologia contém a palavra grega pathos, que, em sua origem, possui vários significados. Dois conceitos, bastante diferentes, interessam-nos sobremaneira: o passional, a paixão, a passividade; e o patológico, a doença, presente no diagnóstico médico. A fronteira que separa estas duas perspectivas é frágil e varia de acordo com as épocas e as civilizações (MARTINS apud CECCARELLI, 2003, p. 13-25).

Nessa perspectiva, o homem não é responsável por suas paixões, pois não as escolhe. Contudo, torna-se responsável pela influência delas nas suas ações, sendo possível julgar o aspecto ético do sujeito. Essa era a ideia defendida por Aristóteles. Assim, a virtude estaria naquele que age em harmonia com suas paixões, alcançando o equilíbrio logos/paixão. Estaria nessa balança o “crime passional”, assim como as grandes obras, tendo a paixão como impulsionadora desses dois opostos.

No estoicismo, em oposição às teses aristotélicas, as paixões seriam obstáculos ao logos e deveriam ser domadas. Elas não poderiam ser usadas para o aprimoramento pessoal, e enquanto o apaixonado estivesse preso ao seu pathos (como doença), nada poderia ser feito para ajudá-lo. Dessa forma, não seria ele responsável por seus atos. Qual a saída? Evitar a expressão da paixão e extirpá-la pela raiz (CECCARELLI, 2003).

Há um debate interminável entre esses dois pressupostos, o “normal” e o “patológico”. O pathos como causa da conduta do sujeito ou como uma doença que o aliena e que o faz necessitar de cuidados especializados.

Ao se tratar de psicopatologia na psicanálise, tem-se como implicação o desejo recalcado, impregnado de culpa que se inscreve na interação relacional, reflexo do imperativo original do sujeito. Por outro lado, a psicopatologia cunhada como doença tende a reduzir o mesmo como sendo o portador de um mal, ainda que possa ser apenas temporário.

Em ambas as situações, o ‘apaixonado’ é depositário das mazelas que o envolvem no sentido social e cultural, um ser que denuncia a falta. Isso aconteceu nos manicômios de outrora, e agora, nas ruas, a céu aberto, na vida dos que estão marcados numa sociedade que não os vê.

Ao esboçar os pilares da psicanálise, Freud desvelou a existência do inconsciente que se constrói a partir da realidade externa e abastece a realidade interna. As vicissitudes humanas ao longo dos séculos mostram o enfrentamento do sujeito diante da castração que remete à diferença, à capacidade de superar as frustrações e ressignificar o desejo. Um exemplo disso pode ser visto nos adolescentes que gritam pela falta do simbólico, buscam, na ficção violenta, inscrever-se em um laço social. Talvez estejam num movimento como o das histéricas de outrora, exibindo a paixão à flor da pele. Cabe ainda ressaltar que o imprevisto da paixão, acima descrito, explica-se pelo estranho (Unheimliche), ou seja, o estranho que é familiar e também pela alteridade intrínseca na estrutura subjetiva do sujeito.

 

A psicopatologia na história

Segundo Ferreira (2002), a psicopatologia começou a se estruturar como clínica pelos médicos alienistas a partir do final do século XVIII. Constituiu-se por meio de um discurso científico, utilizando um método de observação e de organização da loucura, numa visão racionalista. Dessa forma, os médicos procuraram se apropriar da loucura como foco da clínica, numa tentativa de dominá-la. Os discípulos seguiam ao lado do mestre, aprendendo com ele, numa observação direta, o manejo dos distúrbios mentais. Esse modelo de clínica permaneceu no século XIX. No final do século XIX, com as pesquisas de Charcot, a clínica do olhar ganhou força quando ele passou a demonstrar para seus discípulos que podia introduzir e retirar sintomas utilizando o método hipnótico. Tais demonstrações tinham o intuito de mostrar que, no caso das histéricas, as paralisias de membros não provocavam lesões, ao contrário do que os médicos pensavam. Com essa descoberta, Charcot se consagrou como o mestre das histéricas.

Freud, no fim do século XIX e início do século XX, inovou a perspectiva da psicopatologia, trazendo um corpo de conceitos precisos para reconhecer a histeria e a conversão histérica, além de trazer à luz a diferenciação clara da neurose obsessiva e da angústia. Ao desenvolver a metapsicologia, contribuiu para a atual classificação das psicopatologias a partir da perspectiva estrutural, a saber: (a) neuroses de defesa ou transferenciais, nas quais se encontram as histéricas conversivas e fóbicas, as neuroses obsessivas e as neuroses de ansiedade; (b) as psicoses; (c) as perversões; e (d) as afecções psicossomáticas. Tais estruturas são determinadas a partir das fixações em fases do desenvolvimento psicossexual desde os primeiros anos de vida.

 

A família e a subjetivação na contemporaneidade

Se, de um lado, a Ética a Nicômaco, de Aristóteles (a ética das virtudes) é uma ética para todos e questiona o que é bom ou o bem e, por outro lado, a ética de Kant é uma ética do imperativo categórico universal (a ética dos deveres), a ética da psicanálise ocupa-se da singularidade da experiência humana, em um imperativo original. Nesse sentido, trata-se de uma ética do bem dizer gerada na clínica psicanalítica, relativa ao campo da linguagem. É uma prática que envolve o discurso do analista, do suposto saber, no qual o desejo se implica eticamente, não como desejo de fazer o bem, mas como um operador de um discurso e, pelo lado do analisante, há uma relação da ação do sujeito com o desejo que o habita. Assim sendo, o inconsciente, objeto de estudo da psicanálise, implica-o em seus atos ao revelar as inscrições do desejo nos sintomas, atos falhos, chistes, sonhos, lapsos e esquecimento (AZENHA, 2011). É o desejo recalcado que se representa nessas facetas.

Para a psicanálise, o agente da castração simbólica é o pai e, nesse sentido, fica mais acentuada do que revelada a verdadeira função do pai que é, essencialmente, unir (e não opor) um desejo à Lei (AZENHA, 2011, p. 67).

O enfraquecimento da figura paterna nas novas configurações familiares coloca em xeque, de forma inadvertida, a psicanálise, atribuindo-lhe um caráter ultrapassado. Na contemporaneidade, os novos modos de relações familiares são apontados como indicadores do declínio da função paterna, todavia é a introdução do terceiro na relação dual mãe-bebê que barra o gozo do sujeito e o coloca diante da realidade e da cultura.

Retomada por Lacan, em 1938, a hipótese freudiana da mudança de relações do homem com o pai, nas representações da função paterna e no lugar de filiação como núcleo do sintoma social em nossa cultura tem gerado discussões em torno do enfraquecimento do significante pai e de seus efeitos nas formas de subjetivação dos sujeitos modernos (AZENHA, 2011, p. 67).

É necessário distinguir claramente os conceitos de “função paterna”, na psicanálise, e de “imago social do pai”, na cultura. Para Roudinesco (apud AZENHA, 2011), a imago encontra-se relacionada à imagem internalizada da figura paterna, ao passo que a função diz respeito à ordem simbólica e independe da presença ou ausência do pai. Por função, compreende-se o exercício de uma nomeação que permite à criança ter acesso a uma identidade. No entendimento de Rodulfo (apud VITORELLO, 2011), as funções nomeiam os implicados no advir do sujeito, ou seja, aqueles que no processo de constituição psíquica cumprem a função materna, a função paterna e a função de irmãos. Não restam dúvidas das grandes transformações da figura paterna no transcorrer da história. O declínio do sistema patriarcal na modernidade acelerou o enfraquecimento da autoridade do pai e, com isso, as relações sociais e subjetivas sofreram grandes transformações.

Há no sujeito formas de subjetivar de acordo com o meio, familiar e social, em que ele se constitui. De outro modo, a cultura e a época em que o sujeito vive também definem nele as formas de subjetivação. Na Antiguidade, o poder era prerrogativa do homem, o qual ocupou o papel central na família. O direito era muito limitado para as mulheres e as crianças. Durante a Idade Média, a vida das crianças piorou e as mulheres estavam sob o domínio dos homens. Nesse período, a guerra era o principal modo de relação social. Em vista disso, a liberdade de expressão das pulsões e da gratificação dos impulsos se exacerbou nessa época em que as mulheres eram vistas como objeto sexual, sujeitas aos ímpetos dos homens. No período medieval, não havia restrição de circulação da criança no mundo adulto, pois não havia ainda uma diferenciação entre adultos e crianças, nem as famílias eram responsáveis pela educação delas.

Importantes transformações passaram a ocorrer quanto à estrutura social e aos modos de estruturação da personalidade no final da Idade Média e início da Modernidade. A estrutura social monarquista, que se instaurou a partir do século XVII, elege o pai como “o lugar tenente de Deus” (BADINTER apud VITORELLO, 2011, p. 9), tornando-se o sucedâneo do rei na família. A família constituída no sistema patriarcal, com sua estruturação hierarquizada e vertical, não estava fundada nos laços afetivos, tampouco as crianças ocupavam o lugar afetivo que têm hoje para os adultos. De acordo com Arriès (1981), nesse século, surge, nas classes dominantes, a primeira concepção real da infância. O adulto passa, pouco a pouco, a se preocupar com a criança, porque ela é um ser dependente e fraco. A palavra “criança” passou a designar a primeira idade de vida, a idade da necessidade de proteção.

Com o surgimento do “Estado” no século XVIII, o patriarcado familiar perdeu força para o patriarcado estatal, o qual se consolida como autoridade pública à medida que vai enfraquecendo o poder do pai. Há um processo de “humanização” do pai divino e, nesse contexto, a criança e a mãe ganham valor. “Nos séculos seguintes a mulher passa a ocupar o lugar de “rainha do lar”, e a criança torna-se o “menino rei”. Está então instalado o modelo de família nuclear burguesa” (BADINTER apud VITORELLO, 2011, p. 10). O fortalecimento do Estado e a ideologia iluminista surgem como fatores preponderantes de mudanças no tecido social da época, promovendo alterações nas condutas sociais e nas formas de subjetivar dos sujeitos.

Fleig (2008) discute as relações entre as formas de neuroses dominantes e as mudanças nas condições da família, tal como ocorreu na modernidade com o declínio do Nome-do-Pai. Embora se constate o enfraquecimento do pai moderno, o declínio da imago que o processo histórico deflagrou não coincide com a função paterna. O pai como função continua a ser o organizador fundamental da subjetividade e da cultura. A função paterna, como operação estrutural tanto para o sujeito quanto para o social, pode ser encarnada por vários agentes. Na contemporaneidade, as funções parentais não se tornam tão visíveis como eram na ordem tradicional. Há que considerar que, em qualquer época, a cultura trata de criar estratégias de recalque e repressão com a finalidade de mascarar o mal-estar existente. Na contemporaneidade, a qual se vive, houve uma mudança na dimensão da percepção do espaço-tempo, que resultou em um desamparo psíquico ainda maior para o ser humano. A atemporalidade e a alteridade do inconsciente, inconciliável com a temporalidade e objetividade do mundo externo, criaram novas formas de subjetivação para fazer frente ao desamparo e ao controle do estado de cultura do mundo globalizado.

Experiência realizada por alunos do curso de pedagogia da UFRGS, na disciplina de Psicologia da Educação, ao observar as crianças e suas famílias, em 2011, mostraram a diversidade de modos de agrupamento familiar e de arranjos quanto ao desempenho das funções parentais. As observações dos discentes de pedagogia revelaram que nem sempre o pai ou a mãe exercem as funções parentais na família.

[...] por vezes são os tios, os avôs ou são partilhadas por várias pessoas. Há também os casos em que a função parental está vazia, pois os pais denotam estar na posição de filhos e os filhos na posição dos adultos (VITORELLO, 2011, p. 11).

A pesquisa permitiu reconhecer na comunidade local a diversidade quanto às configurações familiares, tal como constata Roudinesco (2003): famílias “recompostas”; famílias com a “guarda compartilhada dos filhos”; famílias “extensivas”, nas quais pais, filhos e avós convivem na mesma casa; “mães solteiras” ou “separadas” com a responsabilidade de cuidar sozinhas dos filhos. Situações que produzem questionamentos acerca dos papéis e funções: como estão definidos, de quem é a responsabilidade do cuidado das crianças e quem desempenha o que nessa nova estruturação familiar. A presença do pai e da mãe não quer dizer que o desempenho da função paterna e materna esteja garantido. Por outro lado, há famílias “monoparentais” nas quais a mãe cuida dos filhos, e as funções estão instaladas, via desejo materno (VITORELLO, 2011).

Fleig (2008) indica a emergência de um matriarcado no cenário contemporâneo, pois hoje muitas famílias estão situadas em torno da mãe. As técnicas de procriação caminham no sentido de dispensar a participação do homem-pai na filiação. Entretanto, ressalta-se que o significante paterno tem a propriedade de barrar a demanda engolfante da mãe e situar a criança em relação ao desejo do Outro materno. Dessa forma, a lei simbólica (lei do pai) interdita a mãe e, ao mesmo tempo, autoriza o sujeito ao acesso a um lugar sexuado. Na visão de Fleig (2008), há na cultura contemporânea a expressão de uma nova economia psíquica decorrente da suposição de se estar liberado da referência paterna.

As novas e múltiplas configurações da família ocidental evidenciam as mudanças nos papéis sociais do homem e da mulher, assim como a nova realidade nas relações entre os sexos. A família atual não é mais caracterizada pela “parentalidade”, mas pela descentralização do poder e por múltiplas aparências. A dominância masculina, característica do sistema patriarcal, cedeu lugar para um contexto em que a mulher tem importância. Muitas vezes, é em torno da mãe que estão as “famílias recompostas” (ROUDINESCO, 2003). Há que considerar, na nova perspectiva, as famílias “homoparentais” (constituída por um casal homossexual e seus filhos adotivos ou não). O próprio direito civil já reconhece a união civil dos casais homossexuais, garantindo inclusive o direito à adoção de filhos. Tal efetivação denota a transformação da família na contemporaneidade.

 

O sintoma e o diagnóstico psicanalítico

A psicanálise torna-se, desde sua descoberta por Freud, um balizamento de escuta para a cura dos sintomas do sofrimento. Sintomas que vêm expressar, por meio de uma metáfora, a verdade do sujeito. Há uma relação de afetos, que mantém a produção de sintomas com a verdade e que abarca um “saber” inconsciente sobre o sujeito. Desse modo, o sintoma evidencia algo que tem uma significação e que está relacionado à história de cada um. Assim, não se pode perder de vista as relações do sintoma com a estruturação subjetiva do sujeito (VITORELLO, 2011).

Para Rodulfo (apud VITORELLO, 2011), o discurso familiar é para o sujeito o “tesouro de significantes”, lugar de onde retira as significações para sua inscrição no universo simbólico. Ao salientar a importância do “mito familiar”, o autor diferencia-o de história familiar. O mito diz respeito ao lugar ocupado pela criança na família, sua posição em relação ao campo desejante dos pais, incluindo tanto os processos ou tramas imaginárias (as fantasias e o brincar) como as funções parentais (materna, paterna, dos irmãos). Muito tem sido discutido sobre as funções parentais e as novas configurações familiares na contemporaneidade. Como identificar esses conflitos no sujeito?

Na compreensão de Dor (1994, p. 9), “o diagnóstico psicanalítico remete à dimensão de um embaraço técnico no campo do inconsciente” ao se confrontar com a prática psicanalítica e sua investigação. Nessa perspectiva, há uma dificuldade de balizamento ao utilizar um método dependente de “ferramentas” subjetivas. O psicanalista trabalha com incertezas ao escutar a narrativa histórica do paciente. Uma narrativa que, por vezes, entra em ressonância com sua própria história.

Segundo Dor (1994, p. 13),

[..] diagnóstico psicanalítico difere do diagnóstico médico. Existe no diagnóstico psicanalítico um paradoxo: por um lado, a necessidade de estabelecer um diagnóstico que balize o tratamento e, por outro, a impossibilidade de fazê-lo precocemente, uma vez que ele só poderá se delinear no transcurso da análise.

O diagnóstico médico visa, inicialmente, determinar a natureza de uma afecção ou uma doença, a partir de uma semiologia. A seguir, objetiva a classificação dos sintomas, que permite localizar um estado patológico no quadro de uma nosografia. Para o autor, o ato psicanalítico não pode se apoiar prontamente na identificação diagnóstica como tal. Uma interpretação psicanalítica não pode se constituir, em sua aplicação, como pura e simples consequência lógica de um diagnóstico, já que o sintoma tem múltiplas faces.

A técnica de investigação que o analista dispõe é a associação livre do paciente e a atenção flutuante, e é na dimensão do dizer e do dito que se definirá o campo de investigação psicanalítica. Como o espaço de palavra está saturado de “mentira” e tem o imaginário como parasita, a avaliação psicanalítica é essencialmente subjetiva e deve buscar desvelar a verdade do desejo. Ao considerar as incertezas encontradas no balizamento do diagnóstico psicanalítico, leva-se em conta a singularidade, a “composição” do mundo interno e do mundo externo, da realidade e da presença do outro.

 

O estranho e a alteridade contemporânea

Em suas descobertas analíticas, Freud interessou-se pelo tema do “estranho” no início do século XX, constatando que o estranho era um tema negligenciado no ramo da estética, uma vez que o enfoque, em seu tempo, era dado ao estudo da beleza. A temática do estranho, captada por Freud, constituiu-se como um assunto gerador de polêmica e de constrangimento, o qual a sociedade, em geral, evitava e ainda evita abordar. O tema do “estranho” foi aprofundado por Freud no texto intitulado Das Unheimliche, de 1919. Após pesquisa do sentido da palavra Unheimliche (estranho), em várias línguas, Freud o definiu como assustador e familiar, que se pode inferir também como lugar estranho (que pode se articular à ideia de uma pessoa desorientada no ambiente) estrangeiro, que pode dar a ideia de alguém vindo de outro lugar (THONES; PEREIRA, 2013).

É importante ressaltar que ele buscou seu significado nos fenômenos que causam estranheza. Assim, constatou que entre os exemplos de coisas assustadoras existe uma classe em que o elemento que amedronta pode se mostrar como algo recalcado que retorna. Contudo, o estranho não é nada novo ou alheio ao sujeito, mas algo que é familiar e há muito nele instalado, sendo que somente teria se alienado de sua consciência por uma operação de recalcamento (THONES; PEREIRA, 2013). A partir disso se pensa na conexão do estranho com a alteridade, ou seja, há um enlaçamento do estranho com a diferença, com a alteridade, com o outro da relação.

O sentimento do estranho no âmbito social se apresenta como pendular, relativo e relacional; oscila entre sentimentos amorosos e hostis, entre a representação de si mesmo e a representação dos outros. Portanto, o estranho se constitui como um território minado. Muitas são as definições e as relações que se fazem em torno dessa paradoxal categoria, na qual se busca compreender sobre um afeto e uma representação. O estranho mantém íntima relação com o que é próprio, aparecendo, assim, como o duplo do mesmo.

O duplo constitui, para Freud no seu ensaio sobre o estranho, um componente psíquico de fundamental importância. Rank (apud FREUD, 2006) constata que o duplo, como negação do poder da morte, se torna uma segurança para o sujeito contra a destruição do eu. As produções literárias de ficção da época, observadas por Rank, segundo Freud em 1914, indicavam a correlação direta do escrito com o psiquismo do escritor. Freud aprofundou essa noção de relações contra a castração na linguagem dos sonhos e no narcisismo primário. A partir de Freud, a psicanálise vem desvendando a topologia do sujeito de tal forma que se pode afirmar hoje, com segurança, que toda forma de expressão do sujeito guarda relação intrínseca com o mesmo. Todas as representações se mostram por meio do enunciado do discurso e no discurso do enunciado, como afirma Lacan. Nesse sentido, o duplo ocuparia o espaço da sombra, dos fantasmas que retornam, dos reflexos perdidos, de sujeitos que na ficção procurariam persistir à morte.

Thones e Pereira (2013) evidenciam formas diferentes sobre a representação do estranho, de si mesmo em relação ao Outro desconhecido. Para esses autores, é apenas a partir de si mesmo que o sujeito pode definir o outro, porquanto seja também definido pelo outro a partir do alcance de seu próprio olhar. Assim, as formas de relação do sujeito com o outro, e vice-versa, dependem dessa condição, ou seja, da incidência do Outro sobre o sujeito e do quanto este conseguiu se tornar independente, reconhecendo-o.

As mudanças na estrutura familiar da contemporaneidade, bem como a crise no conhecimento e o fim das certezas ou verdades absolutas surgem como possíveis causas de uma desorganização social e violência sem precedentes. Tem-se a impressão de uma ruptura do laço social e o fim das referências simbólicas, o fim da função e também da imago paterna. Para Cecarelli (2010), cada época tem a sua própria leitura de mundo, não sendo uma melhor que a outra. Desse modo, uma verdade ou um comportamento dura até que outra verdade venha sobrepô-la. Em Totem e Tabu, Freud (1914) traz o conceito de Weltanschauung, como visões de mundo às quais o homem recorreu ao longo do processo evolutivo: animista, religiosa e científica. Tais visões de mundo acompanharam a necessidade de proteção através do amor para aliviar o sofrimento psíquico de cada época.

 

Considerações finais

Com os estudos freudianos, desvelou-se a falsa soberania da consciência marcada pelas forças pulsionais sob a determinação do inconsciente. Dessa forma, a psicanálise entende a psicopatologia a partir dos conflitos que se estabelecem entre o inconsciente e o consciente do sujeito, fruto de seu imperativo original. Por essa razão é chamado de psicopatologia psicanalítica. A variação ou o grau desse conflito indica o tipo de psicopatologia: as neuroses histéricas, fóbicas, obsessivas, de ansiedade; as psicoses; as perversões; as afecções psicossomáticas.

Considera-se que o modo singular de subjetivação do sujeito responde ao meio familiar e social em que ele se constitui, bem como a implicação cultural de sua época. Na atualidade, no mundo globalizado, a busca de normatização de comportamentos vem gerando uma padronização da normalidade e transformando a singularidade em anormalidade. Em vista disso, são criadas regras de procedimentos a partir de parâmetros que não levam em conta a particularidade da dinâmica pulsional do sujeito. A tão falada globalização da atualidade, ao produzir a subjetividade que lhe é própria, arrasta consigo o padecimento psíquico na forma de mal-estar, fruto das marcas da sociedade e desse momento histórico. Assim sendo, acredita-se que o sofrimento psíquico impingido à humanidade atual culminará numa reorganização para uma nova visão de mundo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Francisco de Assis Duque
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Ana Cristina de Araújo Vianna
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E-mail: anacristina.vianna@gmail.com

Recebido: 07/09/2014
Aprovado: 21/10/2014

 

 

SOBRE OS AUTORES

Francisco de Assis Duque
Bacharel em Comunicação Social - Relações Públicas, Especialista em Psicanálise e Educação, em Formação Psicanalítica no Instituto de Estudos de Psicanálise (IEP) do CPRS.

Ana Cristina de Araújo Vianna
Enfermeira, Mestre em Enfermagem pela UFRGS, em Formação Psicanalítica no Instituto de Estudos de Psicanálise (IEP) do CPRS.

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